Entre idas e vindas do Rio de Janeiro a Brasília, ele construiu sua trajetória com a Fiocruz, com contribuições nas áreas de planejamento estratégico e formação de recursos humanos em saúde, entre outras. Nesse percurso, percebe a vocação institucional como centro formador de profissionais para o Sistema Único de Saúde (SUS). Destaca também o potencial das articulações – com o Ministério da Saúde, a Universidade de Brasília (UnB) e o Congresso Nacional, só para citar alguns exemplos –, sempre com foco na defesa da integridade e dos princípios do SUS. Partícipe da criação da Universidade Aberta do SUS (UNA-SUS) e hoje seu consultor, Marcos Mandelli esteve à frente da Fiocruz Brasília durante um curto período, entre 2000 e 2001. Nesta entrevista da série especial “Fala aê – 45 anos da Fiocruz Brasília”, ele fala das sementes lançadas e das conquistas alcançadas pela Fundação no Distrito Federal, do apoio logístico ao papel em decisões técnicas e políticas.
Como a sua trajetória se encontra com a da Fiocruz, em especial a da Fiocruz Brasília?
Houve várias interseções, em vários momentos. Eu saí de Brasília para trabalhar na Fiocruz no Rio de Janeiro, sem nunca ter participado de nada na Fiocruz Brasília. Fiz minha trajetória no Rio de Janeiro, assumi a área de planejamento da Fiocruz e durante sete anos exerci essa função de coordenação. Houve, então, uma demanda do Ministério da Saúde por uma consultoria técnica para a implantação de seu Departamento de Ciência e Tecnologia (Decit). O Ministério, que, à época, tinha José Serra à frente da Pasta, procurou a Fiocruz buscando profissionais que pudessem apoiar esse processo, e o meu nome foi indicado. Eu já estava há sete anos à frente do planejamento da Fiocruz e tenho essa questão: acho que as pessoas, depois de muito tempo fazendo a mesma coisa, começam a ser repetitivas e já não têm tanta criatividade e motivação. Eu já estava meio desanimado. E topei vir para Brasília ajudar na montagem desse Departamento. Nesse processo de criação do Decit, que veio a ser dirigido por Beatriz Tess, fiquei muito próximo de Lenita Nicoletti, que coordenava o escritório da Fiocruz em Brasília e que, na sequência, saiu da Fiocruz para um pós-doutorado na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Faltavam nove ou dez meses para o final do mandato do Eloi Garcia como presidente da Fiocruz, e ele me perguntou se eu poderia dirigir o escritório de Brasília durante esse tempo. Foi assim que ingressei na Fiocruz Brasília.
Uma trajetória marcada pela conexão entre Rio e Brasília…
De nascimento eu sou do Rio Grande do Sul, gaúcho, mas vim para Brasília aos 11 anos de idade, me formei aqui, na UnB, e trabalhava aqui em Brasília. Em determinado momento, Mario Hamilton e Carlos Morel me convidaram para ir para o Rio compor um grupo de estudos que estava pensando o planejamento estratégico da Fiocruz. Isso foi no início dos anos 1990. Depois, no ano 2000, foi quando assumi o escritório da Fiocruz em Brasília, que, até pouco antes, ainda tinha um quadro técnico incipiente e era vista apenas como unidade de apoio logístico.
Como foi essa experiência como diretor da Fiocruz Brasília?
Lenita e eu já vínhamos conversando muito sobre o papel que a Fiocruz Brasília poderia exercer nas articulações com o Ministério da Saúde. O processo de desenvolvimento do Departamento de Ciência e Tecnologia em Saúde do Ministério começou a criar um laço bastante estreito: a Fiocruz Brasília passou a ser vista como uma interlocutora importante, que tinha voz e era ouvida nas questões técnicas e políticas. Havia aqui também o potencial de articulação com a UnB, e já conversávamos com Sergio Arouca e Eleutério Rodriguez Neto sobre um grande projeto em comum com a UnB, que, mais tarde, se materializou na instalação da própria sede da Fiocruz Brasília aqui no campus da UnB. Outra coisa que se discutia muito com o Arouca era o fortalecimento da interlocução com o Congresso Nacional, compreendendo uma maior proximidade com o Poder Legislativo como uma oportunidade de melhor defender os princípios do SUS.
E a experiência na UNA-SUS?
Depois desses meses como diretor da Fiocruz Brasília, voltei para o Rio, porém, em 2010, eu estava novamente em Brasília, porque fui partícipe do processo de criação da Universidade Aberta do SUS (UNA-SUS). Fiquei um tempo no período da implantação, depois fui para a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) e hoje estou aqui de novo, trabalhando na UNA-SUS. A Escola de Governo Fiocruz – Brasília tem uma vocação e um potencial enormes na capacitação de profissionais para o SUS, o que tem tudo a ver com a UNA-SUS, seja do ponto de vista tecnológico, seja do filosófico. Nessa correlação entre ambas, a minha visão de futuro é a de um grande centro formador.
A capacitação é uma das vocações da Fiocruz Brasília, junto à UNA-SUS?
Sim, a gente tem uma grande capacidade de formar trabalhadores. Já são mais de 500 mil matrículas em nove cursos de EAD sobre Covid-19. Desde o início da pandemia, a gente já tinha cursos sendo ofertados e profissionais se capacitando, demonstrando uma capacidade muito grande de dar respostas com agilidade, eficiência e qualidade. E isso pode ser mais bem explorado para a capacitação também de gestores em saúde.
Em uma entrevista por ocasião dos 40 anos da Fiocruz Brasília, você destacou o papel da instituição na consolidação do SUS, inclusive em momentos de crise. Como vê essa atuação no contexto atual?
A Fiocruz exerceu um papel de liderança muito forte no processo de construção do SUS e esse mesmo caminho deve ser seguido para a consolidação do Sistema. A gente não pode perder de vista que esse processo está permanentemente ameaçado. Por mais que exista um reconhecimento e referências elogiosas ao SUS, ele está sendo constantemente atacado, na mira daqueles que o veem como um obstáculo aos interesses de alguns setores e que defendem a privatização da saúde. Hoje, a coisa se complica ainda mais: a pandemia já é uma grande crise e, junto com ela, nossas conquistas democráticas, que foram fruto de uma batalha de muitos anos, estão sendo colocadas em risco. Na pandemia, houve demonstrações inequívocas dos acertos do SUS, e os desacertos que existem não podem ser tomados como motivos para desacreditá-lo e, sim, para que continuemos construindo-o e aprimorando-o continuamente. Alguns problemas que vieram à tona na pandemia são resultado de decisões errôneas tomadas no passado. Em função de uma análise muito superficial e meramente econômica, decidiu-se não investir no setor farmoquímico brasileiro e comprar insumos da Índia e China. Só que, do ponto de vista estratégico, quando acontece uma crise como a atual pandemia, o país fica dependente de insumos básicos para a produção de vacinas, porque não tem uma indústria farmoquímica que possa dar respostas. É uma questão de planejamento de médio e longo prazo, que gera emprego, renda e, acima de tudo, segurança. Por isso insisto que precisamos estar sempre vigilantes em defesa do SUS e das nossas conquistas constitucionais.
Quais as suas reflexões em relação aos três eixos que estruturam a comemoração dos 45 anos da Fiocruz Brasília?
No eixo da solidariedade, vejo como muito importante a interação da Fiocruz Brasília com movimentos da sociedade civil, assim como um engajamento do nosso coletivo de trabalhadores junto ao nosso entorno. Se a gente começa no micro, isso se reflete no macro. Quanto à amorosidade, a gente vive num ambiente muito bom aqui na Fiocruz Brasília, num clima de muito respeito. E, por fim, abrir o leque de opções e ver mais longe do que a nossa visão normalmente alcança: isso para mim é criatividade – criar o novo, fazer diferente e valorizar também a estética e a organização das coisas, o que favorece o nosso bem-estar no trabalho, acredito.