O Núcleo de Populações em Situações de Vulnerabilidade e Saúde Mental na Atenção Básica da Fiocruz Brasília (NuPop) não estuda a população de rua, mas as equipes de saúde e os processos de trabalho específicos para essa população no Sistema Único de Saúde (SUS). Seus pesquisadores não tem a pretensão de falar por essas pessoas, pois no Brasil, há movimentos da sociedade civil organizada que representam esse segmento. Desde 2017, o NuPoP atua no ensino pesquisa e extensão e, no primeiro dia de junho, seu coordenador, Marcelo Pedra, apresentou um levantamento do trabalho realizado e das pesquisas nessa área, durante o Seminário Permanente de Pesquisa – Ação sobre a vida na situação de rua na América Latina, evento on-line organizado pela Universidade Nacional Autônoma do México.
Em sua conferência, o pesquisador apresentou dados da prefeitura do Rio de Janeiro durante a pandemia em que se verificou que boa parte das pessoas foi morar na rua devido à perda da renda, do emprego, ou da moradia e chamou a atenção para o fato de que, mesmo recebendo auxílio emergencial do governo federal, quase 70% deles permaneceram na rua. “Interessante notar que, quando precisaram de atendimento, pouco mais de 1% dos entrevistados buscam o consultório na rua, pois a imensa maioria vai até o serviço de saúde em que era atendido quando não estava nessa situação. Ao serem perguntados o que é preciso para sair da rua, a maior parte relata a necessidade de um emprego (42,8%), seguido de moradia (16%) e dinheiro (7,1%). A família é citada apenas por 4,5% dos entrevistados como algo necessário para deixar essa situação”, disse. Outra pesquisa feita na cidade de São Paulo (SP) mostrou que essa população subiu 31% durante a pandemia, que ficou mais espalhada pela cidade, com aumento expressivo no número de mulheres, apesar do perfil predominantemente masculino, em idade laboral, 70,8% negros e com baixa escolaridade.
O pesquisador trouxe resultados de sua tese, concluída ano passado, em que revisou a literatura científica sobre as estratégias de consultório na rua no Brasil e analisou o trabalho registrado no prontuário eletrônico das equipes brasileiras ao longo de um ano, de julho de 2019 a junho de 2020. Ele observou que, à época, 45% dessa população estava cadastrada formalmente no SUS, com elevação substancial do número de mulheres, o que reforçaria a necessidade de uma agenda específica da saúde da mulher. Segundo ele, o adequado é uma oferta do SUS que equilibre ações nas ruas, nas unidades básicas de saúde e nos abrigos, pois para determinados exames, como o exame ginecológico papanicolau por exemplo ou na hora de administrar certos medicamentos, será necessário ir à unidade de saúde. Outros atendimentos podem ser feitos diretamente onde a pessoa se instalou na rua. Ele verificou porém que, na região nordeste e norte do Brasil, a maior parte dos atendimentos é feita na rua, em desequilíbrio com os demais tipos de local de atendimento, o que demonstra a dificuldade do acesso dessa população a determinados procedimentos mais elaborados que necessitem de certa privacidade ou uso de equipamentos que não são transportáveis para a rua ou para o abrigo.
Ele destacou também que a equipe de consultório na rua não é de urgência e emergência, mas de cuidado ao longo da vida da pessoa e observou-se que a condição de saúde avaliada no atendimento dessas pessoas, difere muito da população em geral. A hipótese do pesquisador é de que, quando as equipes de saúde escutam que o indivíduo tem doenças relacionadas ao álcool, drogas ou doenças de saúde mental, priorizam isso e se esquecem de analisar e registrar demais problemas de saúde dessa população, tais como os de maior prevalência na população em geral, como diabetes, hipertensão, e doenças sexualmente transmissíveis, por exemplo, com registros nessa população muito abaixo da média nacional da população geral. Até a pandemia, segundo eles, a imunização dessas pessoas também não era realizada adequadamente e não se sabe se, com a pandemia, se aproveitou para regularizar a vacinação contra as demais doenças.
Histórico brasileiro
O cenário das ações públicas junto à população em situação de rua possui várias singularidades. Desde 2009, há uma Política Nacional para a População em Situação de Rua, e um Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política. O pesquisador esclareceu que há, inclusive, uma normativa nacional que estabelece o que se chama população em situação de rua no país, definida como “grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares fragilizados ou rompidos e a inexistência de moradia convencional regular”. Segundo a Política, essas pessoas usam praças, jardins, canteiros, marquises, viadutos e áreas degradadas, tais como prédios abandonados, ruínas, carcaças de veículos como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como das unidades de acolhimento para pernoite temporário ou moradia provisórios. Historicamente, o trabalho das equipes de consultórios na rua tinham foco em problemas de saúde devido ao uso de álcool e outras drogas.
Em 2011, por solicitação dos movimentos sociais, foram criadas equipes de saúde integral com abordagem multidisciplinar, para lidar com os demais problemas e necessidades dessas pessoas, com ações compartilhadas e integradas às unidades básicas, centros de atenção psicossocial, serviços de urgência e emergência e outros pontos de atenção do SUS.
O Nupop
Em 2017, o primeiro grande estudo do Núcleo teve início, com foco na revista Traços, um street paper vendido a dez reais pelas ruas do Distrito Federal, dos quais sete reais são pagos ao vendedor que vive nas ruas, conhecidos como porta-vozes da cultura. Ela não é escrita por eles, mas é estratégia de trabalho e renda. A pesquisa construiu um instrumento para avaliação da autonomia das pessoas a partir do engajamento nesse trabalho com a Traços.
O Núcleo implementou o Plano de Ação Interinstitucional de Atendimento à População de Rua no DF durante a pandemia com as equipes de consultório na rua e também nos abrigos da capital federal. Os pesquisadores também desenvolveram uma plataforma digital de georreferenciamento on-line para ofertas e serviços para essa população e construção de sistema virtual de gerenciamento de casos dessas pessoas entre o SUS e o SUAS, financiado pelo Programa Inova Fiocruz. Entre outras ações, foi oferecido apoio on-line na área de saúde mental e atenção psicossocial na cidade de Goiás Velho (GO) e no DF, com atendimento remoto por telefone ou chamada em vídeo e em breve será lançado relatório final do censo da população em situação de rua em parceria em parceria com o governo do DF.
O Núcleo também sistematizou o trabalho com a população em situação de rua no contexto da pandemia na atenção primária em saúde em todos os estados brasileiros, em parceria com o Banco Interamericano de Desenvolvimento. A expectativa é lançar uma publicação com os resultados até o fim do ano. Espera-se iniciar brevemente uma estratégia de supervisão clínico – institucional do trabalho das equipes no DF, em parceria com outro setor da Fiocruz Brasília, o Núcleo de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas (Nusmad).
A tese do pesquisador, intitulada “As práticas dos consultórios na rua: perspectivas para o monitoramento e avaliação do campo” pode ser acessada aqui.