O atendimento socioeducativo é regulamentado pela Lei nº 12.594/2012, que institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase) e envolve a execução das medidas socioeducativas, aquelas destinadas a adolescentes ou jovens que apresentem relação com o cometimento de atos infracionais. O atendimento pode ocorrer em meio aberto (no caso das medidas de liberdade assistidas ou prestação de serviços à comunidade), em regime de restrição (semiliberdade) ou de privação de liberdade/meio fechado (internação). Participam desse atendimento profissionais designados de acordo com o tipo de medida, envolvendo principalmente equipes técnicas multidisciplinares e educadores sociais (meio aberto) ou socioeducadores (meio fechado), que se diferenciam por sua atuação direta.
Sobre o assunto, conversamos com Larissa Camerino, que, em sua dissertação do Mestrado Profissional em Políticas Públicas em Saúde da Fiocruz Brasília, pesquisou sobre a atenção em saúde e os cuidados a adolescentes privados de liberdade. A assistente social analisou os prontuários da unidade socioeducativa Dom Bosco, localizada em Fortaleza (CE), e realizou um mapeamento do perfil de adolescentes autores de ato infracional, no qual se destacam elementos de vulnerabilidade e risco social como vínculos familiares fragilizados, defasagem escolar e uso de substâncias psicoativas. Acompanhe um pouco do trabalho da pesquisadora na série “Fala aê, mestre”!
Qual é o objetivo das medidas socioeducativas?
Larissa Camerino: As medidas socioeducativas relacionam-se ao processo de responsabilização pelo cometimento do ato infracional, em proposta de compreensão das consequências desse ato e em desaprovação da conduta. Em 1990, com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), ocorreu uma mudança real de paradigma em relação aos direitos desse público, reforçando um caráter “duplo” das medidas socioeducativas (punitivo e pedagógico), em consonância com o conceito de pessoas em condição peculiar de desenvolvimento e que, portanto, não podem receber tratamento mais gravoso do que dado a adultos. Logo, a execução das medidas precisa conciliar não apenas um processo de responsabilização, mas condições para a não reincidência.
Como acontece os processos de saúde, doença e cuidados com os adolescentes privados de liberdade dentro do sistema socioeducativo?
Larissa Camerino: A execução das medidas em meio fechado, com adolescentes privados de liberdade, é de competência estadual, sendo normatizadas pela Lei do Sinase e pelo próprio ECA. No caso dos processos de saúde, doença e cuidados, há definição de diretrizes por meio de uma Política Nacional de Atenção Integral à Saúde de Adolescentes (Pnaisari), voltada para jovens em conflito com a lei, em regime de internação e internação provisória. Ainda pouco conhecida, tanto pelos operadores do sistema socioeducativo como pelos próprios trabalhadores e gestores da saúde pública, destacando o enorme estigma que o atendimento a adolescentes autores de ato infracional ainda carrega, herança de um contexto menorista e violador de direitos.
Qual a importância da atenção integral no âmbito do atendimento socioeducativo?
Larissa Camerino: A execução das medidas socioeducativas, por normativa, rege-se por princípios garantidores de direitos, sem que, para isso, exima-se de seu caráter de responsabilização. A atenção integral à saúde no âmbito do atendimento socioeducativo está previsto no Art. 60 da Lei do Sinase e apresenta diretrizes de ações de promoção, prevenção de agravos e recuperação da saúde em consonância com demais ações socioeducativas, visando aspectos tanto de desenvolvimento de um protagonismo juvenil como de fortalecimento de vínculos familiares e comunitários, objetivando um retorno mais amparado desses jovens quando de sua desinstitucionalização e visando romper ciclos violadores que possam, inclusive, ter relação direta com as práticas delituosas.
O que te motivou a estudar este tema em seu mestrado?
Larissa Camerino: A política socioeducativa ainda é permeada por estigmas, por desconhecimento de processos e por compreensões retrógradas, alicerçadas em uma concepção menorista e meramente punitiva, de que o(a) jovem autor de ato infracional se torna como que menos “digno/a” de direitos. Em um sistema em que as nossas internações têm cor, raça e gênero definidos muito antes do cometimento dos delitos, abordar sobre direitos desses jovens é antes de mais nada, afirmá-los enquanto sujeitos de direitos e trazer à discussão as diversas omissões vivenciadas em paralelo. O enfoque em um conceito ampliado de saúde nessa discussão é um convite à reflexão sobre o papel social que, enquanto trabalhador/a nesse sistema, se reproduz e como podemos melhorá-lo.
Como seu trabalho pode auxiliar em futuras políticas públicas para a melhoria do sistema socioeducativo no âmbito do SUS?
Larissa Camerino: A atenção integral à saúde de adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa, como dito, é regida por legislações direcionadas e bem-intencionadas. Seja o próprio ECA, a Lei do Sinase ou a portaria que estabelece a Pnaisari, trazem os elementos de garantia de acesso à saúde por meio de referência ou contrarreferência no âmbito do SUS, além de estruturação de unidades, inclusão de informações em sistemas de notificação, formação de equipes específicas para esse atendimento, etc. Espero, com esse trabalho, despertar para a importância de se compreender o socioeducativo em suas especificidades e potências, entendendo que a normativa precisa se transformar em um fazer cotidiano, fincado em territórios vivos e com compromisso coletivo para uma real intervenção.
Larissa de Almeida Morais Camerino é autora da dissertação intitulada “Processos de Saúde, Doença e Cuidados a Adolescentes Privados de Liberdade: a Importância da Atenção Integral no Âmbito do Atendimento Socioeducativo”, aprovada em 29 de novembro de 2022 no Mestrado Profissional em Políticas Públicas em Saúde da Escola de Governo Fiocruz-Brasília, sob a orientação da professora Jakeline Ribeiro Barbosa.
Confira aqui as outras entrevistas da série de divulgação científica