O Brasil ultrapassara a marca de 600 mil mortes por Covid-19 e o impacto da pandemia na saúde mental era um tema que ganhava cada vez mais relevo. Era outubro de 2021 e um grupo de residentes do segundo ano da Fiocruz Brasília desembarcava em Paraty (RJ) para um mês de estágio bem diferente do que poderiam imaginar quando, ainda no período pré-pandêmico, se candidataram a uma vaga da Residência Multiprofissional em Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas. Uma psicóloga, uma assistente social e uma enfermeira haviam deixado a seca de Brasília e agora enfrentavam dias chuvosos na pequena cidade fluminense. As horas de avião e ônibus foram cercadas de todos os cuidados para prevenir a contaminação pela Covid-19. E o percurso ainda não tinha terminado. O acesso ao local onde realizariam parte de suas atividades precisava ser feito a pé e havia muita lama. Mas as vivências e os aprendizados adquiridos durante alguns dias ali fizeram cada desafio valer a pena. “Eu nunca tinha pisado em uma terra indígena. Foi muito marcante conhecer toda aquela riqueza cultural e poder desmistificar algumas questões”, conta Juliana Pinho, a psicóloga do grupo. Assim como outros oito residentes da Fiocruz Brasília, Juliana participou do projeto “Intervenções territoriais e comunitárias em saúde mental”, concluído agora em junho de 2023.
O projeto foi realizado pelo Observatório de Territórios Sustentáveis e Saudáveis da Bocaina (OTSS), em parceria com o Núcleo de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas (Nusmad) da Fiocruz Brasília. Fruto de uma articulação entre a Fiocruz e o Fórum de Comunidades Tradicionais de Angra dos Reis, Paraty e Ubatuba (FCT), o OTSS, desde 2009, funciona como um espaço de produção de conhecimentos a partir do diálogo entre saberes tradicionais e científicos, com vistas ao desenvolvimento de estratégias que promovam sustentabilidade, saúde e garantia de direitos para comunidades tradicionais em seus territórios. O projeto de saúde mental foi um dos contemplados no Edital Territórios Sustentáveis e Saudáveis do Programa Inova Fiocruz. Além dos povos indígenas, a iniciativa envolveu também quilombolas e caiçaras – denominação dada a populações tradicionais dos litorais do Sudeste e do Sul formadas pela miscigenação entre indígenas, portugueses e escravos africanos. “Essa parceria com o OTSS foi fundamental para proporcionar aos nossos residentes a oportunidade de trabalhar com questões de cultura e sustentabilidade, e de contribuir para intervenções em saúde mental”, afirma o coordenador do Nusmad, André Guerreiro.
Conforme explica uma das coordenadoras do projeto e colaboradora do Nusmad, Helena Rodrigues, mesmo antes da Covid-19, o Fórum de Comunidades Tradicionais já sinalizava demandas relacionadas a questões de saúde mental. E a situação se agravou durante a pandemia. “A Covid-19 acaba por exacerbar e trazer mais à tona os problemas de saúde mental das comunidades”, afirma. O objetivo do projeto, então, era realizar ações comunitárias e territorializadas em saúde mental, buscando desenvolver tecnologias de cuidado e atenção psicossocial que considerassem as especificidades da região. E é aqui que os residentes entram em cena. “Eles contribuíram na etapa de diagnóstico: fizeram o reconhecimento das comunidades, realizaram entrevistas com as populações, visitaram os serviços públicos de saúde do município, conversaram com trabalhadores”, explica Helena. Essas atividades possibilitaram compreender tanto os sofrimentos presentes nas comunidades como os fluxos de cuidado dentro da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS).
Os residentes foram divididos em três grupos e cada equipe participou em um momento diferente. Juliana integrava a segunda equipe. O grupo que foi antes dela havia trabalhado, principalmente, junto à população quilombola. “Nós trabalhamos mais com os indígenas e os caiçaras, com quem fizemos as entrevistas. Conhecemos a dinâmica do território, como eles se relacionavam e dividiam as tarefas, como trabalhavam, como preparavam a comida, como era a escola deles”, lembra. “A forma como eles se relacionam com tudo ao redor é diferente; conseguem articular o trabalho e a natureza com sustentabilidade, para que não ocorram desequilíbrios. São três populações bem distintas vivendo tão perto uma da outra, unidas por uma relação harmoniosa entre elas e o meio ambiente”, descreve.
Essa harmonia, contudo, sofre várias ameaças externas. São muitos os conflitos presentes no território. “As pressões da exploração do turismo e do pré-sal, os riscos da usina nuclear de Angra dos Reis, a grilagem de terras e a invasão de áreas de preservação ambiental estão entre as causas desses conflitos, que atingem os modos de vida e geram sofrimento para os povos tradicionais naquele território”, enumera Helena. “As comunidades costeiras viviam de pesca artesanal, mas os peixes sumiram devido à circulação dos grandes navios petroleiros e da presença da pesca industrial”, exemplifica.
A essas questões veio ainda se somar a Covid-19. Apesar de ter trabalhado de forma mais próxima com os indígenas e os caiçaras, Juliana também participou de atividades com os quilombolas e, em uma dessas ocasiões, percebeu os efeitos negativos da pandemia. “Estávamos conversando com a comunidade sobre as dificuldades e, em uma roda de conversa com mulheres, elas falaram como estava desgastante o trabalho, o cuidado com os filhos e com a família, os problemas com o marido”, diz a psicóloga. O diagnóstico feito pelo projeto, com o auxílio dos residentes, mostrou que havia uma demanda reprimida por cuidado em saúde mental, que poderia ser acolhida na Atenção Primária à Saúde (APS), mas as Unidades Básicas de Saúde (UBS) não tinham expertise para esse atendimento. “A gente, então, focou os esforços do projeto no fortalecimento da APS para atender às demandas de saúde mental das comunidades”, destaca Helena.
Os residentes não participaram diretamente da segunda etapa do projeto, mas suas percepções e análises do território contribuíram para o planejamento das próximas ações. Junto à Secretaria de Saúde de Paraty, as equipes do Fórum de Comunidades Tradicionais e da Fiocruz começaram a construir estratégias para que as necessidades de saúde mental das diferentes populações fossem atendidas pelo SUS, otimizando a própria estrutura do município. As equipes de Saúde da Família das UBS passaram a atuar de forma mais articulada com as equipes do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) e outros trabalhadores da saúde mental. “A discussão dos casos pelas equipes e a supervisão clínica estão entre as estratégias adotadas. A abordagem é feita a partir da perspectiva do sofrimento, considerando o contexto e os modos de vida da pessoa, e não a partir do diagnóstico de uma doença mental. O vínculo estabelecido entre a APS e o CAPS facilita o cuidado compartilhado”, comenta Helena.
Para a coordenadora do projeto, outro importante legado da iniciativa foi levar o tema da saúde mental para outros espaços de discussão. “Está em fase de elaboração um plano de contingência para situações de catástrofe que inclui a atenção à saúde mental. Essas situações trazem a emergência do choque, mas outras questões de saúde mental demoram um tempo para aparecer, porque, de imediato, surgem as preocupações com acesso a alimentos, água etc. Em relação à Covid-19, várias questões de saúde mental estão se manifestando agora”, afirma. “O OTSS tem uma tradição de trabalho muito orgânico com os movimentos sociais e com os territórios de populações tradicionais. E tem um passo importante agora que é entrar nas políticas públicas institucionalizadas e mudar um pouco o jeito de pensar as intervenções”, avalia a coordenadora de Promoção da Saúde da Vice-Presidência de Ambiente, Atenção e Promoção da Saúde (VPAAPS) da Fiocruz, Adriana Castro, em vídeo que sintetiza os principais resultados do projeto “Intervenções territoriais e comunitárias em saúde mental”.