A confusão entre os conceitos de sedação paliativa e eutanásia é comum, e veio à tona recentemente, na pandemia da Covid-19, durante a crise de Manaus, onde faltaram balões de oxigênio e os médicos precisaram sedar pacientes que se encontravam em intenso sofrimento respiratório.
Quando um paciente está numa situação de grande sofrimento porque apresenta sintomas graves para os quais as terapêuticas possíveis não surtem efeito, é lícito, ético e técnico oferecer a ele a sedação paliativa, que traz alívio ao adormecer e reduzir a consciência da pessoa enferma. Aplicada de forma correta e cuidadosa, esta conduta busca conforto para o paciente, mas é também cercada de riscos, até mesmo pela gravidade do quadro da doença. Embora exista um risco de morte, a sedação paliativa não deve ser confundida com a eutanásia – uma prática proibida no Brasil que consiste numa morte provocada deliberadamente com o intuito de eliminar o sofrimento.
A possibilidade da sedação paliativa, contudo, não pode justificar a falta de investimentos para que os recursos adequados, indicados e devidos estejam disponíveis para os pacientes. A temática é discutida em artigo da última edição da revista Cadernos Ibero-Americanos de Direito Sanitário (Ciads), publicação do Programa de Direito Sanitário (Prodisa) da Fiocruz Brasília. No trabalho, a autora Maria Elisa Villas-Bôas, professora da Universidade Federal da Bahia (Ufba), analisa a qualificação ético-legal da sedação paliativa, distinguindo-a de outras condutas, a partir de um estudo exploratório bibliográfico.
Nesta entrevista da série “Fala aê”, a pesquisadora comenta importância dos cuidados paliativos e de se conhecer os conceitos, destaca a responsabilidade acerca da sedação e coloca em debate a crise ocorrida em Manaus, fazendo uma crítica aos processos que levam à chamada mistanásia, isto é, a morte evitável causada por falta de recursos. A entrevistada desta semana é graduada em Direito e em Medicina, possui especialização em Pediatria, mestrado e doutorado em Direito Público.
O que motivou o estudo sobre aspectos éticos e jurídicos da sedação paliativa?
Maria Elisa Villas-Bôas: Vivemos tempos de muitas e rápidas informações, mas muitas delas equivocadas, truncadas, provocando julgamentos morais acerca de situações de que pouco se sabe de fato. O estudo que motivou o artigo foi desencadeado pela percepção de que, no auge da angústia gerada pela pandemia e agravada pela situação de escassez, ainda se ampliava o sofrimento coletivo com assimilações indevidas entre conceitos envolvendo o fim de vida. Isso fez aumentar o preconceito acerca de condutas paliativas que se têm tentado cuidadosamente explicar e difundir no conhecimento social, pela importância que elas têm para os pacientes graves e suas famílias.
O que é sedação paliativa, quando e de que forma deve ser utilizada?
Maria Elisa Villas-Bôas: A sedação paliativa consiste, de forma resumida, em se recorrer à sedação – que reduz a consciência e a interação – como forma de aliviar sintomas graves que não responderam às outras tentativas terapêuticas possíveis. Ela pode ser utilizada de forma intermitente (o paciente intercala períodos de sedação e vigília) e não apenas como sedação terminal, quando o desfecho de morte se aproxima de forma inexorável, e a sedação é a única maneira de esperar por ele sem a dor e o sofrimento dos sintomas refratários. Veja que, em qualquer dos casos, o objetivo da sedação não é causar ou antecipar a morte, mas paliar, amenizar sintomas que não se conseguem conter com outros fármacos ou recursos. Para tanto, ela deve ser conduzida da forma mais cuidadosa possível, de maneira a minorar os riscos de, pela vulnerabilidade mesma da condição do enfermo, vir a antecipar de modo evitável eventual desfecho de morte.
Por que chamar a sedação paliativa de sedação terminal pode causar confusão?
Maria Elisa Villas-Bôas: Porque a sedação na fase de terminalidade do paciente é apenas um dos usos possíveis da sedação paliativa. Ainda existe o preconceito de que a sedação terminal tem o escopo de provocar a morte de forma deliberada e, dessa forma, ela seria uma conduta ilícita no ordenamento jurídico brasileiro. Ocorre que a terminalidade aí referida não foi causada pela sedação, cuja função fundamental é paliar. A sedação foi chamada de terminal apenas em menção ao estado atual do paciente, que se aproxima de modo iminente e inevitável do momento da morte, em virtude da própria doença de base, cujos efeitos a sedação objetiva minorar, sem a intenção de causar o óbito.
Por que a sedação paliativa não deve ser confundida com a eutanásia e outras condutas relacionadas à terminalidade e à morte?
Maria Elisa Villas-Bôas: A eutanásia consiste, segundo o entendimento mais frequente, em uma morte provocada deliberadamente, com o fim de eliminar o sofrimento do enfermo, como solução em si. A ideia da provocação deliberada da morte seria o destaque de vedação em nosso ordenamento. Ou seja, na eutanásia, a morte seria o “remédio” último. Já na sedação paliativa, a intenção não é levar à morte, mas suspender os sintomas, como dor, vômitos etc., que já não são mais controláveis por outros meios, ainda que, para isso, seja preciso adormecer e reduzir a consciência do paciente, a fim de paliar, amenizar sua situação. Na fase de terminalidade – que, como visto, decorre do quadro ou doença de base, e não da sedação –, pode acontecer que o paciente, já em processo de morrer inevitável, não consiga mais sair da sedação. É um risco que precisa ser informado e prevenido, mas isso não significa que a sedação seja feita com o objetivo de eutanásia. A sedação paliativa bem indicada e bem conduzida se acha no campo da chamada ortotanásia, no sentido da morte a seu tempo, da forma mais natural possível, combatidos os sintomas que levam a um processo de morrer mais sofrido desnecessariamente.
Em que medida a sedação paliativa integra o conjunto dos chamados cuidados paliativos?
Maria Elisa Villas-Bôas: Ela é um recurso, uma forma de conduta, de cuidado, que objetiva a paliação, o alívio dos sintomas, a promoção do maior bem-estar possível para o paciente, mesmo quando não se possa mais curá-lo, de modo que ele possa viver seus momentos restantes com o maior conforto que se possa viabilizar. Os cuidados paliativos não são importantes apenas para o paciente terminal, mas, para este, eles são ainda mais essenciais, pois são o que de mais eficiente se pode prover para combater o sofrimento, em um quadro que não responde a outros recursos. Nesse contexto, a sedação tem lugar como a alternativa mais intensa de paliação, pois suspende a consciência, como forma de combater os sintomas para os quais as outras tentativas terapêuticas possíveis já não façam efeito. Não é o que se deseja idealmente, mas pode ser o meio de que se dispõe para amenizar o desconforto da fase final, em um processo inexorável de morrer.
Para o uso da sedação paliativa, é necessário, antes, que o paciente ou seu familiar assine o termo de consentimento livre e esclarecido. O que é fundamental que os profissionais expliquem aos pacientes e suas famílias acerca desse procedimento?
Maria Elisa Villas-Bôas: Como em regra acontece com qualquer procedimento sanitário, as condutas têm riscos potenciais que precisam ser explicados ao paciente ou, se este não tiver condição de compreender e decidir, ao seu responsável legal. No caso da sedação, tanto mais evidente essa necessidade prévia, na medida em que se suprime a consciência do paciente, ainda que temporariamente. Além disso, em pacientes já tão debilitados pela enfermidade, o risco de morte está sempre presente e ampliado – a depender da gravidade dos sintomas a serem combatidos, a dose terapêutica para sedar a dor, por exemplo, pode situar-se já próxima de uma dose perigosa para a vida, ou a própria resposta do organismo fragilizado pode acelerar involuntariamente esse perigo. O paciente e sua família precisam estar cientes dos riscos ao escolherem entre a dor ou a sedação, na falta de outras opções eficazes. É de se recordar sempre, contudo, que esclarecer acerca dos riscos não significa se eximir de agir com a maior cautela e responsabilidade possíveis na realização da conduta de sedação. É isso que distingue o chamado duplo efeito (consequência danosa involuntária) da eutanásia propriamente dita (no sentido de um resultado deliberado).
Quando pacientes que poderiam se beneficiar de um tratamento não recebem este tratamento porque faltam recursos (como oxigênio, no caso de Manaus, durante a pandemia), seria correto o uso da sedação paliativa?
Maria Elisa Villas-Bôas: Correto em que sentido? Lícito? Técnico? Ético? Foi o que o texto buscou explicar. A sedação paliativa não deve ser vista como opção à oferta do tratamento adequado, indicado e devido. Se existe tratamento com potencial efetivo de resposta, cabe ao médico ofertá-lo. No caso em exame, contudo, essas opções estavam ausentes. Eram pacientes em angústia respiratória sem oxigênio – o que de mais básico poderia haver nesse caso. Os médicos não criaram essa situação, mas se depararam com ela. O que tinham diante de si eram pacientes que, embora potencialmente tratáveis com outros recursos, não tinham como dispor desses meios. A sedação paliativa podia ser, então, o único recurso a seu alcance para amenizar o desconforto crescente. Nesse caso, a sedação paliativa, usada com toda a cautela possível, podia ser a única opção disponível para os profissionais, não com o intuito de causar a morte piedosa – expressão pela qual também já se conheceu a eutanásia –, mas de reduzir e combater a angústia irrefreável, que minava as já escassas condições respiratórias do enfermo, numa insólita realidade em que havia sedativos, mas não balões de oxigênio. Nesse sentido era o que se tinha ao alcance para fazer. Enfrentar cuidadosamente o risco do duplo efeito, amenizar a situação emergencial – e torcer para que os recursos chegassem a tempo…
Nas situações em que, por falta dos recursos necessários ao tratamento, é feita a sedação paliativa, dentro das exigências da boa prática clínica, mas o paciente não resiste e morre, o médico não pode ser punido, pois ele agiu de forma correta. Entretanto, não caberia investigação acerca da falta de recursos (como oxigênio) e, conforme o caso, a punição dos gestores?
Maria Elisa Villas-Bôas: Decerto que se deve apurar a responsabilidade administrativa que possa ter causado situação de franca mistanásia, isto é, morte por implicação social, em última análise, evitável em outras circunstâncias, fora e antes de seu tempo, por carências que não deveriam acontecer.
Você afirma, no artigo, que não se deve converter a sedação terminal em uma opção de política pública em casos evitáveis. Poderia comentar essa afirmação?
Maria Elisa Villas-Bôas: A possibilidade de sedar o paciente para combater sintomas graves e incontroláveis em condição de terminalidade é uma conduta potencialmente lícita, ética e técnica, quando inexistem alternativas outras de paliação a esses sintomas. Isso não quer dizer, entretanto, que não se deva investir na disponibilização dos recursos necessários para evitar que a situação se torne terminal.
No artigo, você faz uma crítica às notícias que circularam acerca do uso da sedação paliativa, na pandemia, durante a crise de falta de oxigênio em Manaus. Quais as suas recomendações para uma melhor cobertura jornalística nesses casos?
Maria Elisa Villas-Bôas: O que estamos aqui a fazer. Pesquisar, consultar profissionais que estudam a temática, olhar os diferentes ângulos da questão, analisar os conceitos e seus usos, evitar os julgamentos sociais tão precipitados dos últimos tempos e as manchetes bombásticas que pouco esclarecem e mais reforçam preconceitos, podendo lançar por terra anos de esforços na difusão de conhecimentos efetivamente necessários à sociedade.
Maria Elisa Villas-Bôas é professora da Universidade Federal da Bahia (Ufba) e autora do artigo “Considerações ético-legais sobre a sedação paliativa: a discussão que a pandemia trouxe à tona no norte do Brasil”, publicado na edição de abril/junho de 2023 dos Cadernos Ibero-Americanos de Direito Sanitário (Ciads).