O Hospital de Base é o maior da rede pública do Distrito Federal e atende toda a população do DF, do entorno, além de estados vizinhos para procedimentos de alta complexidade. O hospital passou por mudança no modelo de gestão em 2018, de administração direta para serviço social autônomo, e começou a ser chamado de Instituto Hospital de Base, gerido pelo Instituto de Gestão Estratégica em Saúde do Distrito Federal (IGESDF).
Neste modelo, os recursos também são repassados pelo governo, mas contam ainda com regulamentos próprios para aquisição de bens e serviços e contratações de profissionais. O contrato prevê metas e resultados e a fiscalização é feita pela Secretaria de Saúde do Distrito Federal (SES/DF).
Além do Hospital de Base, o IGESDF faz a gestão do Hospital Regional de Santa Maria (HRSM) e das unidades de pronto atendimento (UPAs) de Brazlândia, Ceilândia, Ceilândia II, Gama, Núcleo Bandeirante, Paranoá, Planaltina, Recanto das Emas, Riacho Fundo II, Samambaia, São Sebastião, Sobradinho e Vicente Pires.
A nutricionista clínica hospitalar Juliane Mártir, em sua dissertação do Mestrado Profissional em Políticas Públicas de Saúde da Escola de Governo Fiocruz-Brasília, buscou analisar os indicadores de produtividade e de qualidade do Hospital de Base nos dois anos anteriores e nos dois primeiros anos da implementação do IGESDF. Foram avaliados os indicadores de internações clínicas e cirúrgicas, o número de cirurgias em oncologia, o tempo médio de permanência hospitalar e a mortalidade. O resultado obtido é de que o desempenho atual se encontra mais insatisfatório que o anterior, sob gestão direta da SES/DF. Confira abaixo alguns trechos da entrevista para o Fala aê, mestre, produto da Comissão de Divulgação Científica da Fiocruz Brasília.
Além da administração direta, quais os modelos de gestão de serviços públicos de saúde existentes no Brasil?
Juliane Mártir: Existem os modelos de Serviço Social Autônomo, como da Rede SARAH sob gestão da Associação das Pioneiras Sociais; e do Hospital de Base do DF e das Unidades de Pronto-Atendimento (UPAs), sob gestão do IGESDF; de Empresa Pública/Estatal, como os hospitais universitários federais sob gestão da EBSERH; e a Organização Social de Saúde, como muitos hospitais de São Paulo, Bahia, Rio de Janeiro, Goiás, do Hospital da Criança de Brasília José Alencar sob gestão do Instituto do Câncer Infantil e Pediatria Especializada (ICIPE) e até mesmo a atenção primária à saúde de alguns municípios como Rio de Janeiro (Instituto de Atenção Básica e Avançada à Saúde – IABAS, VIVA RIO), São Paulo (Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina – SPDM) e Fortaleza (Instituto de Saúde e Gestão Hospitalar – ISGH).
Qual o modelo do IGES-DF e quais os mecanismos de controle e avaliação do Instituto?
Juliane Mártir: O modelo do IGESDF é denominado Serviço Social Autônomo (SSA), pessoa jurídica de direito privado sem fins lucrativos. Os mecanismos de controle se dão, em teoria, pelo cumprimento das metas estabelecidas no contrato de gestão, porém, mesmo com desempenho caracterizado como insatisfatório em 2018/2019, não houve aplicação de penalidades, seja porque não há cláusulas previstas no contrato e termos aditivos ou porque não houve a recepção por parte do gestor direto para os relatórios analíticos das comissões de acompanhamento da execução do contrato.
O que justifica o crescimento dos modelos de gestão indireta?
Juliane Mártir: A justificativa para o crescimento e ao mesmo tempo fracasso dos modelos de gestão indireta reside no subfinanciamento crônico do SUS, em todos os níveis de atenção e em todos os entes federativos. Um círculo vicioso se forma em que o subfinanciamento crônico promove resultados epidemiológicos ruins, então governo e prestadores de serviços implementam modelos de gestão super descentralizados, com autonomia gerencial e orçamentária local, produção e lucro ganham foco em vez de desenvolvimento de territorialização, região de saúde e rede de atenção, economia em saúde, planejamento respaldado por resultados epidemiológicos, fortalecimento de planos de cargos e carreiras no e para o SUS, valorização de ensino, pesquisa e educação permanente em cada unidade SUS. Progressivamente, as metas pactuadas em contratos de gestão vão sendo descumpridas, pois a folha de pagamento dos altos cargos de diretoria e gestores indiretos, dos salários de profissionais de saúde, que embora muito menor ao de servidores efetivos são em número maior e da prestação de serviços de maior tecnologia vão se tornando insustentáveis, já que não se resolve o problema de dívidas contraindo mais dívidas. Dessa forma o resultado que reinicia o círculo é que a administração direta tem de retomar a gestão de um SUS ainda mais escasso e enfraquecido.
Quais os mecanismos de controle e avaliação dos modelos de gestão indireta?
Juliane Mártir: O contrato de gestão é o principal instrumento pelo qual se dá o controle e a avaliação dos serviços contratados, pois neste documento e em seus termos aditivos há o estabelecimento de metas de produção e de desempenho pactuadas entre a administração direta e indireta, em que os percentuais de alcance resultarão em faixas conceituais de desempenho. Uma comissão de fiscalização do contrato é designada e deve receber e analisar os relatórios emitidos pela gestão contratada anualmente. Tanto os relatórios de gestão (da gestão contratada) quanto os relatórios analíticos (da comissão de fiscalização) devem (ou deveriam) ser apresentados nos conselhos de saúde, pois estes caracterizam o mecanismo de controle social no SUS.
Quais fontes de dados foram utilizadas na pesquisa? Quais indicadores hospitalares (de produtividade e qualidade) foram analisados na pesquisa?
Juliane Mártir: Para a pesquisa foram utilizados dados secundários do Sistema de Informações Hospitalares (SIH), inseridos e computados na Base de Dados do SUS -DATASUS e Sala de Situação do DF, bases de dados oficiais e abertas. Como indicadores de produtividade, selecionamos número de internações, número de cirurgias gerais e número de cirurgias oncológicas. Já os indicadores de desempenho analisados foram tempo de permanência hospitalar, taxa de mortalidade geral, taxa de mortalidade específica em oncologia.
O conjunto de indicadores analisados na pesquisa e o período da análise (2016 a 2017 e 2018 a 2019) são suficientes para avaliar e comparar o desempenho do HB-DF sob a gestão direta da SES-DF e sob a gestão do IGES-DF?
Juliane Mártir: Os indicadores selecionados são considerados os principais utilizados, seja na prática da gestão em saúde ou em estudos que tiveram o mesmo objetivo. Ainda, os indicadores elencados para a pesquisa tiveram metas pactuadas no contrato de gestão, exceto os indicadores relacionados à mortalidade geral e de cirurgias em oncologia e taxa de mortalidade em oncologia. Ressalta-se neste ponto que, embora o HBDF seja a principal referência nesta especialidade na rede de saúde do DF e entorno para apoio diagnóstico e terapêutico, até 2019 não se tinham metas pactuadas no contrato de gestão.
Com relação ao tempo de análise, este não pôde ser considerado suficiente, principalmente pelo fato de se ter incluído o primeiro ano de gestão indireta, tempo esse em que, embora houvesse metas para serem cumpridas, esperava-se que fosse de adaptação a novas normas e isso poderia ser capaz de influenciar na atenção à saúde e consequentemente nos resultados de produtividade e desempenho.
Houve divergências entre os resultados da pesquisa e as conclusões dos relatórios do Instituto? Se houve divergências, a que elas podem ser atribuídas e qual o seu significado?
Juliane Mártir: Sim, encontramos divergências e se faz necessário discutir o que isso pode significar. Para o indicador tempo médio de permanência hospitalar, tanto o DATASUS quanto a Sala de Situação do DF retornam valores mês a mês menores que os declarados pelo IGESDF. Soma-se a isso que a meta pactuada para o indicador foi menor que 14 dias e que foi plenamente alcançada no biênio pós IGESDF. Já para o indicador de mortalidade, o IGESDF declarou valores médios menores aos encontrados na pesquisa. Podemos concluir, portanto, que a meta de tempo médio de permanência tenha sido estabelecida de forma superestimada e a taxa de mortalidade, que nem fora pactuada, poderia ser estabelecida no futuro de forma subestimada. O significado é que o alcance de meta de permanência não reflete em melhor desempenho na realidade, seja por estar o indicador superestimado, seja por não ser analisado em conjunto com a mortalidade, pois um tempo de permanência reduzido às custas de maior mortalidade não condiz com melhor desempenho hospitalar.
Quais limitações do seu estudo devem ser consideradas?
Juliane Mártir: O tempo de análise foi a principal limitação, porém devido à pandemia de Covid-19, não se podia trabalhar com quatro anos antes e quatro anos após a implementação do IGESDF, e ainda excluindo o primeiro ano (2018) como estava previsto no desenho original do projeto de pesquisa, pois a partir de março de 2020, um Decreto determinava a não obrigatoriedade de cumprimento das metas de gestão até o controle da pandemia.
Outras limitações foram o conjunto de indicadores, que embora abrangesse os principais indicadores utilizados para a prática de gestão e estudos anteriores, não contemplou todos os indicadores previstos no contrato de gestão, independentemente de haver metas pactuadas.
Ainda, embora talvez possa ser compreendido não como limitação, mas como uma lacuna: muitos dados da pesquisa divergiram dos apresentados nos relatórios de gestão do Instituto, que por sua vez não foram checados nos relatórios analíticos pelas comissões de acompanhamento de execução do contrato sob a justificativa de que o IGESDF deixou de usar, a critério próprio, as bases de dados estabelecidas no contrato, então os resultados da pesquisa não puderam guardar correspondência com estes relatórios analíticos.
De que maneira a conclusão do seu estudo pode contribuir para as discussões entre gestores, governo e comunidade, e para a tomada de decisões em relação ao SUS no DF?
Juliane Mártir: Há algumas maneiras que poderiam movimentar mais as discussões a respeito do desempenho do IGESDF no HBDF no biênio 2018/2019 a partir da conclusão de nossa pesquisa, como tornar a pesquisa amplamente divulgada para a comissão de acompanhamento do contrato, para profissionais de saúde atuantes no Hospital e para conselheiros de saúde do DF. E para despertar o interesse e até mesmo uma maior responsabilização dos gestores (direto e indireto) e governo executivo e legislativo, o tema em tese poderia continuar a ser investigado dentro do programa de Mestrado em Políticas Públicas em Saúde da EGF-Brasília.
Juliane Aparecida Mártir Silva é autora da dissertação intitulada “Produtividade e qualidade do atendimento do Hospital de Base antes e após a implementação do Instituto de Gestão Estratégica em Saúde do Distrito Federal – IGESDF”, aprovada em 6 de maio de 2022 no Mestrado Profissional em Políticas Públicas em Saúde da Escola de Governo Fiocruz-Brasília, sob a orientação da professora Érika Camargo.
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Fotos: Agência Brasília