“A vacinação tem que ser parte de um grande plano para enfrentar a doença”

Fernanda Marques 18 de junho de 2021


Seja no conhecimento das características de uma doença na população, seja na elaboração de estratégias para enfrentá-la, os estudos epidemiológicos são fundamentais para guiar o planejamento das ações em saúde. Entre essas estratégias, destaca-se a vacinação, que se tornou um ponto de pauta central neste momento da pandemia de Covid-19. Em um momento ainda de escassez de vacinas, os desafios para se colocar em curso uma matriz de prioridades são analisadas nesta entrevista com o sanitarista Claudio Maierovitch, coordenador do Núcleo de Epidemiologia e Vigilância em Saúde (NEVS) da Fiocruz Brasília.

 

Neste “Fala aê, pesquisador”, Maierovitch destaca também a necessidade de considerar os determinantes sociais da saúde, e enquadrar em um critério de prioridade as parcelas da população com piores condições de renda e moradia, e menor acesso aos serviços de saúde e às políticas públicas. Ressalta ainda a importância do SUS para assegurar a distribuição das vacinas com universalidade e equidade, e defende investimentos, sobretudo, para fortalecer a Atenção Básica e reorganizar o sistema de saúde. “Não falo em reorganizar apenas quando acabar esta pandemia, mas ainda na vigência da pandemia”, disse. Confira a entrevista completa a seguir.

 

Como a epidemiologia contribui para um plano de vacinação?

Claudio Maierovitch: Qualquer plano para enfrentar uma doença em escala populacional exige estudos epidemiológicos. A vacinação é tipicamente um instrumento guiado pela epidemiologia, tanto no conhecimento das características da doença na população, das faixas etárias mais atingidas, das formas de transmissão e das condições de risco, como na definição das melhores estratégias para o controle da doença, conforme suas características. Por exemplo: se a melhor estratégia é vacinar as crianças no primeiro mês ou ano de vida; se há necessidade de reforço dessa vacinação; se os problemas maiores decorrentes da doença são em crianças ou adultos etc. Tudo isso tem que ser levado em conta, de acordo com as especificidades de cada população, para que se possa elaborar um plano de enfrentamento da doença, incluindo a estratégia de vacinação.

 

Como se elabora um plano de vacinação?

Claudio Maierovitch: Uma estratégia de controle de uma doença é mais abrangente do que um plano de vacinação. Quando falta essa estratégia mais ampla, o plano de vacinação aparece como uma coisa em si mesma, e isso traz uma dificuldade inicial até para definir os objetivos desse plano. Podemos ter um plano de vacinação que visa a eliminar uma doença, reduzir sua frequência ou diminuir o número de internações e mortes. Pode ser que essas coisas caminhem juntas, mas pode ser que não. Por hipótese, se 90% das mortes ocorrem em pessoas com mais de 60 anos de idade, então, se todas as pessoas com 60 anos de idade ou mais forem vacinadas, haverá uma grande redução das mortes, mas é provável que a circulação do vírus não se altere muito. Se 80% da circulação do vírus se dá por conta das atividades dos jovens, também por hipótese, vacinando os jovens de uma maneira rápida, é possível reduzir a circulação do vírus e, com isso, também reduzir a quantidade de internações e mortes nas pessoas mais velhas. Tudo tem que ser avaliado na hora em que se traça um plano de controle de uma doença, e a vacinação é um componente muito importante.

 

E como isso acontece no caso da Covid-19?

Claudio Maierovitch: No caso da Covid-19 no Brasil, na falta de uma estratégia nacional mais ampla bem definida, o plano de vacinação nasce um pouco copiando estratégias de outros países, já sabendo da sua incapacidade para atingir rapidamente um número grande de pessoas. Busca, então, reduzir o agravamento da doença, internações e mortes, e, portanto, volta-se para aqueles grupos da população que têm maior chance de desenvolver doença grave ou letal, o que foi praticamente a escolha em todas as partes do mundo, inclusive devido à escassez de vacinas. Após os idosos e os profissionais de saúde na linha de frente da assistência, foram sendo definidos outros critérios de prioridade.

 

Que critérios?

Claudio Maierovitch: Em parte, aproveitou-se o conhecimento existente em relação às campanhas anuais contra a gripe para eleger grupos reconhecidamente mais frágeis. Foram incluídas as pessoas com doenças crônicas ou fatores de risco. Pode ser que vários de nós pensemos que não há dúvida de que determinado grupo é prioridade (professores, motoristas de ônibus etc.), mas outros pensarão diferente. Existem muitas possibilidades e houve pressões políticas, e isso pode distanciar a vacinação de seus objetivos iniciais. Quando a definição nacional de prioridades é muito abrangente, acaba que não há prioridade, porque, se todo mundo é prioritário, então ninguém o é de fato.

 

E os planos de vacinação podem ser diferentes em cada município?

Claudio Maierovitch: É de se esperar que haja detalhamento conforme algumas situações locais, como, por exemplo, a presença de aldeias indígenas ou quilombolas, ou a existência de grandes frigoríficos, onde se registrou significativa multiplicação da transmissão. Mas as diretrizes gerais do plano de vacinação deveriam ser definidas nacionalmente. Embora seja importante preservar a autonomia municipal em vários aspectos, inclusive na sua forma de organização, funcionamento das unidades de saúde e distribuição de postos ou equipes volantes, a base epidemiológica é muito semelhante no país inteiro e ela deveria ser a grande orientadora para a definição do plano.

 

O que é preciso levar em conta nessa definição?

Claudio Maierovitch: A noção de quem está mais ou menos exposto, e do que é mais ou menos essencial, não é uma questão simples. Existem profissionais que trabalham diretamente no atendimento a pessoas com a doença e, portanto, estão expostos a um maior risco de adoecer; outros profissionais, embora não tão expostos, também são essenciais, porque, se faltarem, também vão desfalcar a assistência à saúde em questões urgentes. Um exemplo bem ilustrativo são os trabalhadores diretamente envolvidos na produção de vacinas. Esse grupo é muito essencial, embora não tenha uma condição específica de risco ou exposição à Covid-19: não trabalham no atendimento a pessoas com a doença, mas, se a produção de vacinas for afetada, isso prejudica a vacinação de todos os grupos. É necessário que uma matriz de eleição de prioridades leve em conta: certas características das pessoas que se associam à possibilidade de ter doença grave ou morrer; o grau de exposição das pessoas ao vírus por conta de suas atividades; e o seu grau de essencialidade.

 

De que forma os determinantes sociais da saúde compõem essa matriz?

Claudio Maierovitch: Esse é um dos aspectos em que a epidemiologia pode ajudar muito: enxergar além das características biológicas, individuais e ocupacionais, e identificar outros indicadores que podem mostrar quais grupos precisam de mais atenção. Sabe-se hoje que as pessoas que desenvolvem doença grave e morrem de Covid-19, em sua maioria, vêm de camadas mais pobres da população, por uma série de razões, mas principalmente porque são indivíduos muito expostos, que precisam sair de casa diariamente, muitas vezes trabalhadores informais, que dependem dessa atividade cotidiana para colocar comida dentro de casa. Em geral, têm piores condições de nutrição e de habitação, com muitas pessoas morando na casa e dormindo no mesmo cômodo, e também piores condições de transporte, o que leva a uma grande exposição. Ao mesmo tempo, têm mais dificuldade de acesso à informação, aos serviços de saúde e a qualquer estratégia de proteção. Portanto, na matriz de prioridades, são necessários critérios que deem mais atenção aos estratos sociais de menor renda.

 

E o que se pode afirmar sobre a cobertura vacinal nas regiões mais pobres?

Claudio Maierovitch: Em geral, nessas regiões, é mais difícil atingir as coberturas vacinais desejadas, o que exige uma avaliação e um planejamento da equipe de saúde daquele território para adotar medidas que chamem a população a comparecer ou que melhorem o acesso, ampliando o horário de funcionamento dos postos de vacinação ou trabalhando com equipes volantes, que vão até as pessoas para vaciná-las. Cada população merece um olhar e um plano específicos para se atingir uma cobertura elevada.

 

Esse aspecto reforça a importância dos trabalhadores da saúde da Atenção Básica?

Claudio Maierovitch: Exatamente. Uma das grandes lacunas nesse período todo da pandemia foi a falta de prioridade e de investimento na Atenção Básica em saúde. Muito se falou em equipamentos para hospitais, ativação de hospitais de campanha, leitos de terapia intensiva etc. Mas pouco foi dito sobre o necessário fortalecimento da Atenção Básica, que perdeu muitos trabalhadores ao longo dos últimos anos, de todas as categorias profissionais, mas particularmente agentes comunitários de saúde. Na Atenção Básica, estão os serviços de saúde que atuam para reduzir a transmissão e tornar mais efetiva uma campanha de vacinação. São os trabalhadores da Atenção Básica que informam adequadamente as pessoas sobre a doença e a vacina, tiram as dúvidas de quem hesita em se vacinar e orientam sobre o retorno. Outra lacuna enorme durante todo esse tempo foi a falta de campanhas nacionais de informação para esclarecimentos sobre a Covid-19 e a vacinação.

 

É importante que as vacinas contra a Covid-19 sejam ofertadas somente pelo SUS?

Claudio Maierovitch: A vacina é poderosíssima, é o principal meio de proteção que existe. Só que, até agora, ela chegou para uma parcela ainda pequena da população. Nós estamos tentando controlar uma pandemia que está atingindo a população inteira, principalmente as pessoas que têm menos condições de se proteger, as mais pobres, com outras doenças, que vivem em localidades de menor acesso às políticas públicas. Essas pessoas devem ser enquadradas em um critério de prioridade. Estamos falando da necessidade de que o recurso vacina seja oferecido de maneira universal e atendendo às necessidades das pessoas mais fragilizadas por alguma razão. Se entregarmos ao mercado a forma como as vacinas são distribuídas no país, essa distribuição será guiada pelo dinheiro, pela capacidade que as pessoas têm de pagar pela vacina: teremos uma sequência de prioridades que, provavelmente, será inversa às necessidades. A população mais rica será rapidamente vacinada, enquanto as parcelas da população com menos acesso a tudo terão acesso ainda menor à vacina. Caso a vacina já estivesse amplamente suprida para as pessoas em geral, até poderíamos pensar em algum tipo de participação do mercado nessa distribuição, como já acontece para outras vacinas, o que pode ser visto como uma distorção, mas que não compromete o acesso para o conjunto da população. Contudo, no momento em que faltam vacinas, qualquer outra ideia de distribuição que não seja pela SUS compromete a universalidade e a equidade.

 

Qual a principal lição que se pode tirar de todo esse processo?

Claudio Maierovitch: Certamente vamos aprender muito na medida em que consigamos reorganizar o sistema de saúde neste futuro próximo. Não falo em reorganizar apenas quando acabar esta pandemia, mas ainda na vigência da pandemia, fortalecendo a Atenção Básica, assegurando mais transparência nas ações, revendo o funcionamento dos serviços de saúde, investimento em estratégias de comunicação e garantindo que, diante de qualquer situação ameaçadora para a saúde pública, existam planos de emergência e que eles sejam postos em prática em todas as suas dimensões, incluindo contratação de profissionais, aquisição e disponibilidade de equipamentos e insumos. Há necessidade também de sistemas de informação que funcionem melhor do que os atuais, e que possam melhor orientar o planejamento e a execução das ações. A vacina não é uma bala mágica, a vacinação tem que ser parte de um grande plano para enfrentar a doença e diminuir suas consequências. Sempre é tempo que se faça esse plano, que se ponha em curso outras práticas e abordagens, em especial a disponibilidade de testes para diagnóstico, a rápida identificação de casos, o trabalho contínuo das equipes de saúde no monitoramento desses casos e seus contatos, e o apoio para que as pessoas consigam fazer o isolamento, de modo a reduzir a transmissão da doença em cada território.

 

Leia mais

“Fala aê”: confira todas as entrevistas da nossa série de divulgação científica