“A Zika requer toda a atenção dos gestores”

Fernanda Marques 8 de outubro de 2021


Em abril de 2015, o vírus Zika (ZIKV) foi identificado pela primeira vez no Brasil e, retrospectivamente, constatou-se que os primeiros casos de Zika já vinham ocorrendo em cidades do Nordeste desde o final de 2014. Em outubro de 2015, especialmente na Região Nordeste, foi detectado o crescimento do número de bebês nascidos com microcefalia e outras malformações, logo relacionadas à transmissão congênita (durante a gestação) do ZIKV, condição clínica que posteriormente foi denominada de Síndrome Congênita do Zika. Diante da necessidade de entender melhor o espectro clínico dessa síndrome e seus impactos sobre as crianças acometidas, foi estruturada a “Plataforma de Vigilância de Longo Prazo para a Zika e Suas Consequências”, coordenada pelo Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde (Cidacs/Fiocruz Bahia), em parceria com o Ministério da Saúde, por meio da Secretaria de Vigilância em Saúde. O projeto conta com a participação da Fiocruz Brasília, de outras unidades desta Fundação e de outras instituições de ensino e pesquisa.

 

As atividades desta Plataforma vêm sendo desenvolvidas em torno de cinco eixos integrados. Na série de divulgação científica “Fala aê, pesquisador – Especial Plataforma Zika”, os coordenadores de cada eixo apresentam os principais resultados de suas pesquisas e como eles podem contribuir para a implementação de soluções em saúde pública. Na primeira entrevista da série, a pesquisadora Maria Glória Teixeira, professora aposentada do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia, comenta o trabalho do eixo de estudos epidemiológicos da Plataforma Zika. Este eixo desenvolve estudos longitudinais de longo prazo para definir o espectro da microcefalia/Síndrome de Zika Congênita e seu impacto epidemiológico sobre a saúde e condições de vida das crianças acometidas, por meio da construção de uma plataforma integrada de diferentes bases de dados administrativos nacionais, sociais e de saúde.

 

Quais os objetivos do eixo de estudos epidemiológicos?

O nosso objetivo geral é estudar, a longo prazo, o que aconteceu (ou vem acontecendo) com as crianças que nasceram de 2015 a 2017, período que foi de maior ocorrência de Síndrome Congênita do Zika (o que não significa que a síndrome não ocorra mais atualmente). Felizmente, dispomos no SUS de uma série de Sistemas de Informações e, a partir deles, podemos conhecer de forma mais ampla e consistente as consequências dessa Síndrome sobre a saúde daquelas crianças.

Algumas questões deveriam ser investigadas, tais como: A gestante teve Zika no curso da gestação? Ela teve exantema (manchas vermelhas no corpo)? O bebê nasceu com algum problema neurológico? Tratava-se de um evento novo e pouco conhecido, além de haver muita dificuldade para se realizar o diagnóstico específico. Desse modo, a confirmação do diagnóstico pode não ter sido feita para algumas crianças, possivelmente, a maioria delas nascidas com problemas associados ao vírus da Zika. Como vamos encontrar essas crianças? Cruzando os dados dos diferentes Sistemas de Informações de saúde. Por exemplo, você pode encontrar crianças nascidas entre 2015 e 2017, sem diagnóstico de Síndrome Congênita do Zika, mas que foram posteriormente internadas por problemas neurológicos, e suspeitar tratar-se de casos associados à Zika. Crianças nascidas na mesma época, sem o diagnóstico e que morreram com menos de um ano de idade por causa neurológica também são casos suspeitos de Síndrome Congênita do Zika. Existem muitas perguntas de investigação que a gente não consegue responder no curso da epidemia. Somente depois isso se torna possível, com o acompanhamento dessas crianças. Felizmente, o SUS tem vários Sistemas de Informações, como o de internação hospitalar, o de nascidos vivos e o de mortalidade, por meio dos quais se pode construir uma coorte para seguimento de longo prazo e, a partir dela, desenvolver estudos epidemiológicos, isto é, fazer o acompanhamento de um grande conjunto de crianças nascidas no mesmo período, com ou sem a Síndrome.

 

Vocês também vão comparar os dados das crianças nascidas entre 2001 e 2014 com os das crianças nascidas a partir de 2015?

Sim, construímos uma coorte de nascimentos ocorridos nos 14 anos anteriores à epidemia de Síndrome Congênita do Zika, para compararmos e analisarmos alguns parâmetros. Mas ainda não temos os resultados comparativos, porque se trata de um processo bastante demorado. De 2001 a 2014, nasceram 24 milhões de crianças no Brasil. Processar esses bancos de dados não é uma tarefa corriqueira. Essas grandes bases de dados – Big Data – são de uma riqueza muito grande, e trazem respostas a perguntas não só sobre Síndrome Congênita do Zika. Até 2014, observamos, por exemplo, muitos nascimentos por cesariana e muitas crianças com baixo peso ao nascer. No curso da epidemia de Zika, houve uma melhora muito grande na captação de dados pelo formulário do Sistema de Informação sobre Nascidos Vivos (Sinasc), o que vem permitindo detectar um maior número de casos de síndromes congênitas. O SUS trabalhou, melhorou seu sistema de notificação e hoje se conhece melhor a ocorrência dessas síndromes. Milhares de crianças são acometidas por síndromes congênitas, mas, diante da população como um todo, essa condição é relativamente rara, então é necessário ter um sistema sensível e profissionais bem treinados para o registro dos casos. A gente sabe que houve casos de Síndrome Congênita do Zika na África, mas é de ouvir falar, porque não há registro, e isso reforça a importância dos Sistemas de Informações, algo que avançou muito no SUS. No futuro, além dos sistemas do SUS, seria importante trabalhar também com os sistemas de informação da Educação, para podermos acompanhar e avaliar o desempenho no aprendizado dessas crianças.

 

As crianças serão acompanhadas por 30 anos?

Hoje estamos acompanhando crianças até os 5 anos de idade. Informações de mais longo prazo são importantes, mas isso depende de continuidade de investimentos em ciência e tecnologia.

 

Como preparar o SUS para as consequências da Zika?

Nós identificamos o problema e informamos nossos resultados à Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde e seus gestores. Nossas pesquisas apontam para a necessidade de ampliação dos serviços de atendimento às crianças com deficiências, porque o problema é maior do que foi diagnosticado. Esse é o alerta! Se essas crianças nasceram com problemas graves, elas já estão buscando os serviços do SUS, com ou sem diagnóstico de Síndrome Congênita do Zika. Mas queremos chamar a atenção para situações específicas que podem reduzir a morbimortalidade (doenças e mortes). Por exemplo, observamos que a grande maioria das crianças com Síndrome Congênita do Zika morre devido a infecções respiratórias ou septicemia (infecção generalizada). Uma criança com problemas neurológicos, em geral, apresenta disfagia, isto é, vomita com mais frequência, aspira o alimento e ele vai para o pulmão, então essa criança faz pneumonia com mais facilidade. As famílias e equipes de saúde devem ficar muito atentas. Normalmente, quando uma criança tem febre, ela fica apenas em observação nas primeiras 24 ou 48 horas, antes que se faça algum exame ou medicação específica. No caso de crianças com Síndrome Congênita do Zika ou outra síndrome neurológica, elas devem ser imediatamente atendidas, internadas, iniciar a terapêutica adequada, porque com muito mais frequência elas vão fazer uma infecção grave e podem ir a óbito. Isso é muito importante para alertar e orientar a assistência a essas crianças.

 

Como pode ser feita essa orientação às equipes de saúde?

Recentemente, eu e outra componente da nossa Plataforma, a pesquisadora Lavínia Schuler-Faccini, tivemos a satisfação de contribuir como especialistas na elaboração de um Manual de atenção à criança com Síndrome Congênita do Zika, uma publicação do Ministério da Saúde. Fico feliz em ver que as nossas pesquisas têm uma repercussão direta para a atenção à saúde da população.

 

Que outras recomendações você destacaria?

Observamos que as crianças morriam com maior frequência na Região Norte e em localidades com poucos leitos de UTI neonatal. UTI neonatal é fundamental para evitar óbitos por síndromes congênitas neurológicas. Destaco ainda a importância do estímulo neurocognitivo precoce, não a partir do primeiro ano de vida, mas já a partir do nascimento. Essas crianças precisam de centros de reabilitação: elas nascem com menos neurônios e com neurônios danificados, mas têm neurônios passíveis de serem estimulados, o que pode melhorar o processo de cognição e motor. Mas não conseguimos verificar se as crianças estão recebendo esses estímulos, porque o nosso sistema de informação ambulatorial não registra o Código da Classificação Internacional de Doenças (CID). Independentemente do diagnóstico confirmado de Síndrome Congênita do Zika ou não, essas crianças e suas famílias precisam estar amparadas do ponto de vista da atenção à saúde e das questões socioeconômicas, inclusive com acesso ao Benefício de Prestação Continuada (BPC). A Zika foi uma tragédia, mas contribuiu para termos um olhar diferenciado para as crianças que têm síndromes neurológicas congênitas por todas as causas.

 

O vírus da Zika chegou ao Brasil vindo da Polinésia Francesa?

Sim, conforme os estudos de genômica. Existe um banco de dados internacionais, o GenBank, onde pesquisadores de todo o mundo depositam as sequências genéticas dos vírus. Uma pesquisadora da nossa equipe analisou todas as sequências do vírus Zika, depositadas neste banco, e verificou a data e a cidade de origem, conseguindo refazer o trajeto a partir dos tipos de mutação semelhantes. É um trabalho complexo. O restante da equipe contribuiu na interpretação dos dados. Nossa plataforma é multidisciplinar.

 

O vírus da Zika já circulava no Brasil antes de 2015?

Se olharmos para trás, vamos encontrar alguns poucos casos de malformações congênitas que se suspeita terem sido produzidos pelo ZIKV em 2014. Toda vez que um novo vírus chega a uma população, ele precisa de um tempo para ganhar força de transmissão. No caso do ZIKV, transmitido por um vetor (mosquito Aedes aegypti), esse tempo pode ser um pouco maior. Realmente já haviam casos de uma doença exantemática aguda em cidades da Região Nordeste desde o segundo semestre de 2014. Embora haja suspeita de nascimentos com Síndrome Congênita do Zika, é difícil confirmar, porque, como foi um pequeno número, não houve modificação do padrão de ocorrência das malformações congênitas. É importante lembrar que a grande maioria dos casos de Síndrome Congênita do Zika não foi diagnosticada laboratorialmente.

 

Como classificar os casos de Síndrome Congênita do Zika sem a participação de especialistas?

Estamos lançando mão da técnica de Machine Learning ou “Aprendizado de Máquina”. Há casos de Síndrome Congênita do Zika notificados com muitas das suas características, como dados epidemiológicos, perímetro cefálico, malformações etc., além dos exames realizados, como ressonância magnética e ultrassom, que não são procedimentos feitos de forma corriqueira em muitos municípios brasileiros. Inclusive, o resultado desses exames não é simplesmente positivo ou negativo, mas uma descrição da qual se podem extrair palavras-chave. A partir da análise de todos os dados, em geral, são especialistas que definem quais os casos que correspondem ao diagnóstico da Síndrome Congênita do Zika. Como recentemente foi publicado um artigo na revista Lancet com uma árvore de decisão para orientar a classificação de casos dessa Síndrome a partir das informações disponíveis, o pesquisador principal do trabalho, utilizando “Aprendizado de Máquina”, transformou essa árvore de decisão em um algoritmo capaz de ser lido pelo computador. Esse algoritmo foi testado com os 1.501 primeiros casos de Síndrome Congênita do Zika notificados no Registro de Eventos em Saúde Pública (RESP) e o resultado foi o mesmo obtido manualmente com a árvore de decisão, ou seja, o resultado foi o mesmo quer usando o cérebro humano, quer usando a máquina. Depois, o algoritmo foi aplicado a todo o banco de dados do RESP. Essa análise ainda não está concluída, mas tem demonstrado boa sensibilidade e especificidade do algoritmo. Por que isso é importante? Porque, se a criança nasce no interior da Região Norte, ela não vai contar com todos os especialistas para fechar o diagnóstico. Porém, qualquer profissional de saúde pode aplicar o algoritmo e dizer se é um caso confirmado, muito provável, suspeito ou descartado de Síndrome Congênita do Zika. Hoje, no RESP, existem muitos casos sem o diagnóstico definitivo, porque não se dispõe de especialistas para “fechar” o diagnóstico. O pesquisador responsável pelo desenvolvimento do algoritmo está preparando um tutorial para facilitar o uso desse programa de computador, ou seja, está descrevendo um passo a passo que explica como usá-lo na rede de serviços de atenção à saúde. 

 

Quais as correlações entre Zika, Dengue e Chikungunya?

São três doenças diferentes, causadas por vírus diferentes, transmitidos pelo mesmo vetor, o Aedes aegypti, e que podem ocorrer em um mesmo espaço e mesma população, simultaneamente. Não bastasse isso, elas podem ter sinais e sintomas muito parecidos. Todas três cursam com febre, podem causar exantema e dores no corpo (em geral, a Chikungunya é mais associada a dores articulares e a Zika provoca mais prurido ou coceira). No curso da epidemia de Zika, de 2015 até 2017, aplicando um modelo matemático, observamos que houve mais casos de Dengue descartados do que nos anos anteriores. Esses casos descartados, em que a suspeita de ser Dengue não se confirmou, possivelmente, eram casos de Zika. Isso significa que a epidemia de Zika, em alguns municípios, foi muito maior do que se registrou oficialmente. A pesquisa concluiu que a curva epidêmica de Zika influenciou a curva epidêmica de Dengue e vice-versa (o mesmo não ocorreu em relação à Chikungunya). A Vigilância em Saúde tem que ficar atenta: um caso negativo de dengue deve ser investigado para Zika pois, se o vírus da Zika está circulando, é preciso fazer uma intensa campanha educativa voltada para gestantes e mulheres em idade fértil, alertando para o risco de ocorrência de malformações congênitas, caso elas adquiram a doença no curso da gestação.

 

Quais as recomendações aos gestores das esferas federal, estadual e municipal?

Além de campanha permanente para gestação segura, é necessário capilarizar o atendimento às crianças com Síndrome Congênita do Zika, já que elas precisam de fisioterapia, estímulo para neurodesenvolvimento e outros serviços especializados. Mesmo que o gestor municipal queira implementar esses serviços, ele não vai conseguir se não tiver os recursos. Os Manuais e as Notas Técnicas são muito importantes, mas a disponibilidade dos serviços e de profissionais capacitados para o atendimento no nível local são fundamentais. Os recursos não podem ficar concentrados apenas nas grandes capitais ou nos grandes centros urbanos. Os gestores e técnicos da Vigilância em Saúde dos três níveis de gestão devem trocar informações e pensar em estratégias para capilarizar as ações. Nossas pesquisas são para informar os gestores sobre o que pode ser desenvolvido, além do que já é feito.

 

Como evitar o esquecimento da Zika no contexto da Covid-19?

Nossa grande luta é para reduzir as desigualdades sociais, aprimorar e fortalecer o SUS. Não é à toa que a Covid-19 atinge muito mais a população negra e pobre, assim como ocorreu com a Síndrome Congênita do Zika. Existem associações de mães que se uniram e buscam melhores condições de vida, por meio da demanda por políticas públicas e controle social. Essa luta não pode ser individual, ela é coletiva. A Zika congênita é relativamente rara, mas é de uma gravidade tão grande que requer um acolhimento cuidadoso e ações muito especiais, pela repercussão que causa na vida das crianças, das famílias e na esfera comunitária. A Zika requer toda a atenção dos gestores.

 

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