“Aprendi aqui o exercício da coletividade, essência da democracia e do SUS”

Fernanda Marques 17 de dezembro de 2021


Para finalizar a série especial de entrevistas Fala aê – 45 anos da Fiocruz Brasília, conversamos com a diretora da Unidade, Fabiana Damásio. Ela chegou à capital federal em 2010, para cursar o doutorado em psicologia na Universidade de Brasília (UnB), e, quando já planejava retornar a Salvador, foi surpreendida com a convocação, no concurso público da Fiocruz Brasília, para a vaga de analista de gestão de ensino. Apenas dois meses após seu ingresso na instituição, já coordenava a Escola de Governo e, em 2017, assumiu a Direção da Unidade.

 

De lá para cá, foram vários desafios na condução e consolidação de um projeto institucional coletivo, e também muitas conquistas – como o processo de credenciamento da Fiocruz como Escola de Governo e a realização do curso de saúde mental e psicossocial para quase 70 mil trabalhadores e trabalhadoras da saúde, em plena pandemia de Covid-19, na modalidade EAD. Nesta entrevista, Fabiana fala também de seu compromisso com uma atuação cada vez mais integrada com o território, voltada, sobretudo, às populações em situação de maior vulnerabilidade e à redução das desigualdades sociais.

 

https://youtu.be/JkfC4uLZfQw

 

Como você veio trabalhar na Fiocruz Brasília?

Cheguei a Brasília em março de 2010 para fazer o doutorado em psicologia na UnB. Antes de vir para cá, em Salvador, eu trabalhava com avaliação em saúde ocupacional, fazia pesquisa no campo da saúde mental e trabalho e fui coordenadora de atividades de um curso de psicologia em uma instituição de ensino superior privada. Quando vim para Brasília, eu estava em um momento de reavaliação e de mudança na minha trajetória profissional. Foi nesse contexto que surgiu o concurso da Fiocruz, foi o único que fiz, porque me identifiquei com a instituição e com a vaga para analista de gestão de ensino, pois eu tinha interesse em atuar com políticas públicas. Com essa intenção fiz o concurso para a Fiocruz Brasília. Eram duas vagas e fiquei em terceiro lugar. No final de 2011, eu já tinha completado todos os créditos do doutorado e estava retornando para Salvador, mas me ligaram dizendo que um dos aprovados havia desistido e que eu poderia assumir a vaga. Assim, após todos os trâmites, ingressei na Fiocruz Brasília em 8 de março de 2012.

 

Você tinha alguma informação da Unidade antes de prestar o concurso?

O conhecimento anterior que eu tinha sobre a Fiocruz era lá de Salvador, onde, ainda no meu processo de graduação, participei de um projeto de iniciação científica sobre violência nas escolas. Foi ali que conheci a literatura da pesquisadora Maria Cecília Minayo. Lembro que eu ia para a biblioteca da Fiocruz Bahia localizar os artigos publicados pela professora Maria Cecilia, uma vez que naquele tempo ainda não tinha fácil acesso à internet.

 

Qual a sua primeira atribuição na Fiocruz Brasília?

Quando cheguei, a Escola de Governo Fiocruz – Brasília estava sendo instalada, buscando a sua identidade. Em maio de 2012, dois meses após a minha chegada, a então coordenadora da Escola foi para o Ministério da Saúde. E o diretor da Fiocruz Brasília na época, Gerson Penna, me convidou para assumir a Coordenação Operacional da Escola de Governo. Foi um desafio, apesar da minha experiência anterior de oito anos dedicados à educação. Havia cursos isolados, cursos dos programas, como o de Direito Sanitário e o de Alimentação e Nutrição, e a formação em Vigilância Sanitária para servidores da Anvisa já estava na 13ª turma. Mas faltava um amálgama e era necessário que nós construíssemos um projeto coletivo de Escola.

 

Como foi feita essa construção?

A Escola de Governo em Brasília já nasceu centenária, se considerarmos a história da Fiocruz.  Então, precisávamos fazer valer essa nossa vocação histórica. Sempre que eu lia o documento da Escola, uma frase me chamava a atenção: “uma Escola de toda a Fiocruz”. Era esse o desafio: como o nosso grupo de docentes poderia construir de forma colaborativa um projeto agregador e que afirmasse nossa identidade e vocação. Uma Escola sempre em movimento, aberta para processos de transformação da realidade e, no campo da saúde coletiva, reconhecendo a educação como parte integrante do Sistema Único de Saúde (SUS). Essa construção era um desejo e um compromisso de todos que estavam presentes naquele momento na Unidade. Foi assim que, nas reuniões de planejamento conduzidas pela Direção da Unidade, definimos que o Mestrado seria o nosso projeto coletivo agregador e começamos a construí-lo. Cada colega trouxe suas contribuições e chegamos ao desenho do Mestrado em Políticas Públicas em Saúde, um campo abrangente que congregava toda a diversidade do que era produzido aqui em pesquisa, assessoria técnica e educação. Pensar o Mestrado foi pensar aquilo que nos ancorava e nos dava unidade. Foi o caminho escolhido para construir nossa identidade como Escola.

 

Como concilia as atividades de gestão, ensino e pesquisa?

Essa triangulação é muito forte na Fiocruz, por ser uma instituição de ciência e tecnologia, que atua de forma sistêmica frente às demandas do SUS. Na nossa dinâmica de sala de aula, a gente ouve e faz articulações com os estudantes, que, em sua maioria, atuam com as políticas sociais e de saúde. Ao conversar com um pesquisador ou pesquisadora sobre o cotidiano institucional, a minha compreensão é outra porque eu também faço pesquisa. Embora hoje a minha prioridade seja a gestão, um campo complementa o outro, não vejo como dissociá-los. Hoje tenho alguns orientandos e participo de disciplinas do Mestrado. Também atuo no grupo de pesquisa sobre saúde mental e atenção psicossocial para populações em situação de vulnerabilidade social e em situações de emergências sanitárias. Já no campo da gestão, além das demandas cotidianas, um dos importantes compromissos da nossa Unidade é o suporte estratégico à Presidência da Fiocruz, que demanda uma articulação com os poderes executivo, legislativo e judiciário. A triangulação desses conhecimentos e práticas é extremamente benéfica para o exercício da gestão.

 

Do início da sua gestão até agora, qual ação profissional sua você considera de maior realização pessoal?

Três fatos foram especialmente importantes para mim. O primeiro foi o credenciamento da Fiocruz como Escola de Governo junto ao Ministério da Educação, processo iniciado em 2015 e concluído em 2017, que garantiu a oferta e a certificação de cursos lato sensu pela Fundação. Eu já estava na Direção da Escola de Governo Fiocruz – Brasília e tive clareza da magnitude do campo da educação na Fiocruz como um todo. A gente precisou reunir ampla documentação para apresentar nosso pleito ao MEC. Me dediquei a conhecer a fundo a história da educação na Fiocruz em nível nacional. Atividades como acompanhar a Comissão Própria de Avaliação (CPA) e participar da construção do Plano de Desenvolvimento Institucional (PDI) me deram a dimensão do quanto a educação é uma vocação histórica e uma potência da Fiocruz. O segundo fato foi ter assumido a Direção da Unidade. Eu tinha cinco anos de atuação e precisei me aprofundar sobre a instituição, desde o seu modus operandi, seus processos administrativos, dimensão da equipe de trabalho e função de cada um dos setores, até os principais desafios do projeto estratégico da Unidade. Para mim, essa experiência tem sido um valioso aprendizado, uma grande oportunidade para, junto com as pessoas que aqui trabalham, podermos avançar na construção do nosso projeto institucional, tendo em vista o fortalecimento do SUS. Por fim, outro fato muito mobilizador para mim foi a experiência do curso de saúde mental e atenção psicossocial na Covid-19, no ano passado. Apesar do momento difícil, ter a oportunidade de conciliar a gestão e o trabalho com a psicologia na sua essência foi muito gratificante. A saúde mental é questão central na pandemia: foi muito importante a Fiocruz Brasília se engajar nessa agenda, fortalecendo o campo em um momento de grave crise sanitária e humanitária. Tivemos condições de dialogar sobre saúde mental e atenção psicossocial com mais de 69 mil trabalhadores e trabalhadoras da saúde, contribuindo para as políticas públicas e para a construção de ações efetivas no SUS.

 

Se fosse resumir o seu trabalho na Fiocruz Brasília em uma frase, qual seria e por quê?

A Fiocruz tem sido a minha grande escola de saúde, de política, de diversidade e, principalmente, de cidadania. Eu não me vejo hoje fazendo outra coisa a não ser me dedicar à instituição. Aprendi aqui o exercício da coletividade, essência para a construção de um projeto democrático de país.

 

O que ainda não fez na gestão, mas ainda deseja fazer?

O meu desejo é cada vez mais atuar para construir agendas integradas de pesquisa e promover espaços coletivos de trabalho, consolidando a pauta da equidade e a convivência entre gerações. A construção de projetos que envolvam a turma mais jovem e os veteranos, para mim, é um dos caminhos de sustentação do SUS. Eu também anseio por uma atuação cada vez mais conectada com o território, com entregas concretas e efetivas. Com a nossa capacidade de atuar local e nacionalmente, podemos construir modelos de gestão inovadores, que contribuam para o fortalecimento das articulações intersetoriais no território.

 

Qual o maior desafio?

É o desafio da iniquidade, das desigualdades sociais, econômicas e de saúde. Para enfrentá-lo, precisamos direcionar nossas práticas para que elas cheguem, primeiro, às populações de maior vulnerabilidade social. E que elas possam não só chegar, mas também permitam construir espaços de autonomia e condições de vida mais dignas. Sergio Arouca já falava, lá na 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986, que saúde é democracia, e hoje a gente segue fazendo essa afirmação. Saúde é exercício da justiça social. Em pleno século 21, a gente ainda se depara com dados alarmantes no Brasil: 20 milhões de pessoas passando fome e metade da população em situação de insegurança alimentar. É nosso compromisso, como instituição estratégica de Estado, seguir construindo respostas efetivas de enfrentamento dessa dura realidade.

 

Quais as principais contribuições da Unidade para o fortalecimento do SUS?

Uma das principais contribuições da Fiocruz Brasília para o SUS é a atuação no campo da Atenção Primária à Saúde (APS), por meio das nossas ações de formação, seja pela Universidade Aberta do SUS (UNA-SUS), com os programas de provimento, seja pela nossa Escola de Governo Fiocruz – Brasília, com as residências multiprofissionais e médica e com a oferta de cursos livres. Avançamos no uso de tecnologias educacionais, contribuindo para a capilaridade dos processos formativos e o aperfeiçoamento dos processos colaborativos nas diversas estratégias de formação. Fortalecemos a educação popular em saúde. Além disso, temos atuado no campo da vigilância em saúde, buscando estabelecer a interlocução com a APS e contribuir para o desenvolvimento de ações que viabilizem a construção de respostas rápidas frente às demandas dos territórios e às emergências sanitárias. Está no cerne da nossa atuação valorar as articulações entre as Unidades da Fiocruz, com outras instituições parceiras e com a sociedade civil como caminho de promoção de territórios saudáveis e sustentáveis e de defesa dos direitos humanos, equidade e saúde. É importante também reiterar que a educação e a comunicação têm sido campos de conhecimento e de práticas transversais que, associadas ao desenvolvimento da pesquisa, contribuem para que os temas ancorados por nossos programas e núcleos apoiem de forma efetiva a ampliação do direito à saúde. Assim, o legado da Unidade impulsiona o caminho a ser trilhado, de modo coletivo, para enfrentar os desafios do SUS, reforçando a importância da construção de uma sociedade com mais equidade e justiça social.