Entre 24 e 26 milhões: este é o número de mortes que foram evitadas por meio da introdução ou uso contínuo de 10 vacinas, entre 2011 e 2020, em 94 países de renda média ou baixa, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS). A importância das vacinas foi evidenciada também durante a pandemia: estratégia mais promissora de enfrentamento da Covid-19, a vacinação tem permitido a retomada gradual das atividades sociais e econômicas. Apesar de todos os benefícios cientificamente comprovados, existem pessoas e grupos que se opõem à vacina e contestam sua obrigatoriedade. Artigo na edição atual nos Cadernos Ibero-Americanos de Direito Sanitário (CIADS) discute essa questão, analisa ações e recursos contrários à vacinação obrigatória e mostra por que, conforme o Supremo Tribunal Federal (STF), a vacinação compulsória é constitucional, derrubando argumentos do movimento antivacina. O artigo sustenta, a partir de análise documental e revisão bibliográfica, que os interesses coletivos devem prevalecer sobre os individuais.
A recusa ou a hesitação de tomar as vacinas disponíveis é um fenômeno que tem preocupado as autoridades sanitárias por se tratar de uma grande ameaça à saúde mundial. Um dos principais argumentos utilizados por pessoas ou grupos contrários às vacinas é que cada um deve ser livre e ter autonomia para deliberar e fazer suas próprias escolhas, o que, segundo eles, incluiria não se vacinar. Ocorre que esse comportamento coloca em risco não apenas o indivíduo que decide não se vacinar, mas toda a coletividade. Foi a partir desse entendimento que a Lei n° 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, estabeleceu, entre outras estratégias de combate à pandemia, a vacinação contra a Covid-19 como sendo compulsória – uma medida que não constituiu uma novidade, já que a vacinação obrigatória é histórica e legalmente adotada no país.
Isso não significa dizer, porém, que as pessoas são obrigadas a se vacinar mediante uso da força ou de ameaça de que serão presas. É verdade que foi a vacinação forçada contra a varíola, no início do século XX, que culminou no episódio conhecido como Revolta da Vacina, em 1904. Só que hoje a obrigatoriedade da vacina se efetiva de formas diferentes, como em medidas que restringem o acesso das pessoas não vacinadas à escola, ao trabalho e a outros espaços. Tais medidas buscam um equilíbrio entre a liberdade individual e a proteção coletiva.
Contudo, elas também geram repercussão entre aqueles que compreendem a liberdade individual como um direito absoluto. Nesse contexto, destacam-se as Ações Diretas de Inconstitucionalidade nº 6.586 e nº 6.587, que questionaram a obrigatoriedade da vacina de Covid-19 expressa na Lei n° 13.979. Também chegou ao STF o Agravo de Recurso Extraordinário nº 1.267.879, caso de uma família que pleiteava o direito de não vacinar o filho com as vacinas obrigatórias do Programa Nacional de Imunizações (PNI) por convicções filosóficas e ideológicas.
A decisão do STF, nessas situações analisadas no artigo, foi no sentido de reafirmar a constitucionalidade da Lei e da obrigatoriedade da vacinação, salientando que esta deve ser implantada com base nos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. Ou seja, não deve ser implantada por meio da força ou de medidas invasivas, e sim de forma indireta – quando as pessoas não vacinadas são impedidas de realizar determinadas atividades ou frequentar determinados lugares. A decisão do STF ressalta ainda requisitos para implantar a vacinação compulsória, como as evidências científicas a respeito das vacinas, a ampla informação sobre sua eficácia, segurança e eventuais contraindicações, o acesso universal e gratuito aos imunizantes, e o respeito à dignidade e aos direitos humanos.
Em relação ao caso da família, o julgamento do STF também foi a favor da obrigatoriedade da vacinação, apontando que “o exercício do poder familiar não permite que pais, embasando-se em convicções filosóficas e ideológicas, coloquem em risco a saúde dos seus filhos, o que caracteriza inobservância do princípio do melhor interesse da criança”. O estudo conclui que o STF “reforçou o entendimento de que a vacinação compulsória ou obrigatória é uma medida razoável, já adotada no Brasil há tempos e, inclusive agora, como medida de combate à Covid-19”.
O artigo “Implicações da autonomia na recusa de vacinação contra a Covid-19: reflexões a partir do entendimento do Supremo Tribunal Federal” é assinado por uma equipe multidisciplinar formada por pesquisadores da Fiocruz e da Universidade Federal Fluminense (UFF) e por estudantes do Programa de Pós-Graduação em Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva (UFRJ, Uerj, UFF e Fiocruz).
CIADS é uma publicação do Programa de Direito Sanitário (Prodisa) da Fiocruz Brasília.