Na sala do Zoom, mais de uma centena de participantes acompanhavam atentos os depoimentos dos colegas sobre o trabalho desenvolvido ao longo de oito meses na Comunidade de Práticas em Atenção Primária à Saúde e População em Situação de Rua no Contexto da Covid-19 (ComPAPS). O terceiro encontro da ComPAPS, realizado no final da tarde desta quarta-feira (25/5), foi também o encerramento do projeto, mas apenas o encerramento ‘protocolar’. A contar pelas experiências compartilhadas e o interesse manifestado durante o evento on-line, as atividades da Comunidade, articulada em 24 Núcleos Estaduais, terão continuidade e desdobramentos com foco em fortalecer e aprimorar as políticas e serviços destinados ao cuidado das populações em situação de rua. Esse trabalho é fundamental, em especial diante das consequências da pandemia de Covid-19, que aprofundou as vulnerabilidades sociais e fez aumentar o número de pessoas e famílias em situação de rua – levantamento feito na cidade de São Paulo mostrou um crescimento de 31% em dois anos.
“A ComPAPS é uma rede de experiências e trocas, uma mobilização do coletivo em torno de estratégias de cuidado voltadas à população em situação de rua, para que, com base na solidariedade e nos princípios do Sistema Único de Saúde (SUS), possamos construir condições mais dignas e justas para essa população”, definiu a diretora da Fiocruz Brasília, Fabiana Damásio, que integra o Comitê Gestor do projeto, ao lado do professor Francisco Campos, também da Fiocruz Brasília, e de Flávio Álvares, do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems). Segundo Fabiana, os desafios são muitos, mas a potência das pessoas envolvidas na construção da ComPAPS também é. Lembrando os versos de Roda Viva, de Chico Buarque – “A gente toma a iniciativa / Viola na rua, a cantar” – , a diretora reforçou a importância de persistir com um trabalho que é, ao mesmo tempo, exigente e afetuoso.
A ComPAPS é fruto de uma parceria entre a Fiocruz e o Conasems, com financiamento do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e da Fundação Rockefeller, e apoio do Movimento Nacional da População de Rua. Uma Comunidade de Práticas está relacionada à aprendizagem em grupos sociais, nos quais as pessoas se engajam e assumem compromissos com base em um interesse compartilhado. No caso da ComPAPS, o objetivo foi envolver técnicos, gestores e pesquisadores das áreas da saúde, da assistência social e outras que atuam com populações em situação de rua, e conhecer as estratégias desenvolvidas na pandemia de Covid-19, de modo a sistematizar reflexões sobre o tema e multiplicar boas práticas. E existe a possibilidade de disseminar essas experiências não só no Brasil, como em outros lugares do mundo, como sugeriu a representante do BID, Márcia Rocha. “Outros países estão discutindo as lições aprendidas pelo setor saúde na pandemia. Podemos expandir o compartilhamento da ComPAPS em um intercâmbio internacional”, afirmou.
Representante do Movimento Nacional da População de Rua, Vanilson Torres ressaltou a importância da prática da escuta. “A ComPAPS aprofundou o debate. A população de rua foi ouvida e se buscou conhecer a realidade dessas pessoas, que são sujeitos com histórias. As demandas são imensas: saúde, água, habitação, trabalho. E a ComPAPS não irá resolver todos esses problemas. Mas o diálogo que ela abre é muito importante. É uma longa caminhada, como a BR-101, do Rio Grande do Norte ao Rio Grande do Sul”, comparou. “E que nesse caminho a gente consiga contagiar corações e mentes para ações de acesso da população de rua à saúde e às políticas públicas”, concluiu. Charles Tocantins, vice-presidente do Conasems, concordou que é fundamental assegurar, de fato, a universalidade e a equidade do SUS. “Os serviços existem e estão disponíveis, mas é preciso que estejam também acessíveis a todos”, frisou.
Assista ao vídeo da ComPAPS, exibido durante o evento
A dinâmica da ComPAPS
Com entre 8 e 30 membros, cada Núcleo Estadual da ComPAPS teve um facilitador, que recebeu formação não só para mediar encontros on-line, mas também para planejar, mapear atores, preparar o ambiente remoto, organizar os roteiros das reuniões, aplicar métodos para seleção de problemas e construção de soluções, e documentar todo o processo. Cada Comunidade estadual fez uma trajetória própria e teve, pelo menos, seis encontros, resultando em diversos produtos de conhecimento, como relatórios e propostas de ação (algumas já implantadas), além de podcast, vídeo e outras publicações. Em dezembro do ano passado, a Compaps passou a integrar a plataforma IdeiaSUS, onde parte do trabalho desenvolvido pelos grupos pode ser encontrado. Na apresentação dos resultados, Márcia Muchagata, especialista em políticas públicas e gestão governamental da Fiocruz Brasília e uma das coordenadoras nacionais da ComPAPS, destacou o potencial transformador dessa iniciativa: conforme levantamento realizado juntos aos participantes, mais de 75% afirmam ter adaptado ou modificado suas estratégias ou práticas de trabalho como efeito da Comunidade; e 85% acreditam que seu trabalho está mais articulado após o projeto.
Entre os problemas selecionados para discussão nas Comunidades estaduais, estão a incompletude do ciclo vacinal, a impossibilidade de acesso às medidas sanitárias protetivas, a ausência de estratégias para atendimento durante a pandemia, a descontinuidade de serviços e a fragilidade da intersetorialidade, entre outras questões que se agravaram diante do aumento das populações em situação de rua. As Comunidades funcionaram também como espaços de construção de soluções, como campanhas de vacinação, melhoria dos registros e organização dos fluxos de atendimento. Para a formulação dessas soluções, os participantes tiveram o auxílio de especialistas, que ajudaram a compreender as dinâmicas e a avaliar as iniciativas propostas. Mais de 30 boas práticas foram sistematizadas. O trabalho prossegue agora com a ampliação das ações de divulgação dessas práticas.
Alexandre Trino, professor da Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e um dos mentores da ComPAPS, chamou atenção para o potencial dos grupos que se formaram no âmbito do projeto. “É preciso manter essas redes aquecidas, e chamar outros atores, para aprimorar e induzir políticas. Dar sustentabilidade a essas Comunidades é fortalecer a política dos Consultórios na Rua. E sabemos o quanto uma equipe de Consultório na Rua pode se sentir isolada, e quantas barreiras difíceis de furar ela enfrenta no sistema de saúde”, pontuou. Desafios que também foram lembrados por Valcler Rangel, coordenador do IdeiaSUS. “A universalidade do SUS bate em muitos obstáculos, mas a experiência da ComPAPS demonstra que é possível superá-los, e então as políticas ganham outra dimensão para realmente promover saúde e vida”, completou.
Experiências de quem faz a ComPAPS
Com mediação do psicólogo Thiago Pithon, profissionais de diferentes estados que participaram da ComPAPS compartilharam algumas de suas experiências durante o projeto. José Sueldo de Queiroz, moderador da ComPAPS do Rio Grande do Norte, contou que o grupo escolheu o tema da imunização, devido à falta de registros e informações sobre a real situação da população em situação de rua em relação à vacinação da Covid-19. “Tivemos trocas muito ricas em que foram sugeridas e discutidas estratégias que podem ser realizadas para resolver esse problema”, disse. Aline da Mata de Jesus, participante da ComPAPS de Goiás, compartilhou experiência semelhante, como o uso de tablets pela equipe de Consultório na Rua para registro de informações dos vacinados, além de ações de educação em saúde com escuta ativa da população em situação de rua. “A Comunidade trouxe uma chuva de ideias para aperfeiçoar o serviço e o cuidado”, resumiu.
A multiplicidade de olhares sobre o tema foi destacada também por Mirna Teixeira, moderadora da ComPAPS do Rio de Janeiro. Entre os aprendizados do grupo, ela citou a importância das práticas de acolhimento e a necessidade de maior integração entre as equipes de Consultório na Rua e os equipamentos da assistência social. Sublinhou, ainda, o trabalho realizado para que as populações em situação de rua tomassem conhecimento da Covid-19, sua gravidade e formas de prevenção, apesar dos muitos desafios, como a falta de locais para a higiene básica, além do agravamento da fome. Maísa Carvalho Moreira, participante da ComPAPS do Tocantins, chamou atenção para o aumento das populações em situação de rua no contexto da Covid-19. “Encontramos famílias inteiras na rua”, lamentou. Para ela, a Comunidade foi um espaço de acolhimento e escuta dos profissionais que atuam com essas populações, onde puderam dialogar com outros serviços, estreitar laços e definir fluxos para melhorar o atendimento e beneficiar as pessoas que estão vivendo nas ruas.
O último depoimento foi de Daiane da Silva de Farias, participante da ComPAPS do Paraná, que atua em um município onde não há equipe de Consultório na Rua. Foi desenvolvido, então, durante dois meses, um projeto piloto de atendimento a pessoas em situação de rua que viviam em uma praça, envolvendo a equipe de uma Unidade Básica de Saúde (UBS) e também parceiros da assistência social e da saúde mental. Os serviços de saúde ofertados incluíram atendimento médico e odontológico, vacinação, coleta de preventivo, exames laboratoriais e testagem rápida (Covid-19, sífilis, hepatite e HIV). “Aparentemente, foi um projeto simples, mas muito importante. Não podemos desistir dessa população, tão negligenciada e esquecida. Precisamos garantir seu acesso ao direito à saúde”, defendeu.
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Para saber mais, acesse alguns dos produtos de conhecimento do projeto: