Agosto de 2003.
No início da seca, antes dos ipês amarelos começarem a florir, ela chegou, com o marido e os dois filhos, a Brasília, essa terra que era ainda uma incógnita para quem só havia vindo uma vez à capital federal, para dar uma palestra sobre museus no auditório do Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Ao longo desses quase 20 anos no Distrito Federal, a arte-educadora e pesquisadora em saúde pública Luciana Sepúlveda esteve sempre aberta para as surpresas e desafios de trabalhar a educação, a arte, a cultura e a saúde na Fiocruz Brasília, que ela considera uma instituição “gulosa”. Trabalhando em um espaço acolhedor e produtivo, ela entende que sua área permite convergência, abertura e tessitura de conhecimentos, e está na fronteira entre culturas e propostas de diálogo.
Nesta entrevista para o “Fala aê – 45 anos da Fiocruz Brasília”, ela conta os bastidores e sua trajetória no serviço público na Fiocruz, que ela define como “um manifesto à ciência voltada para a saúde de todos, sem deixar ninguém de fora”.
Como você começou a trabalhar na Fiocruz?
A inauguração do Museu da Vida, na Fiocruz do Rio de Janeiro, em 1999, foi determinante para que eu, arte-educadora, com doutorado na França em Museologia da Ciência, adentrasse o campus de Manguinhos para iniciar minha trajetória na Fundação. Ao retornar daquele país, cheguei como bolsista recém-doutora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e permaneci com contrato de trabalho até ser aprovada como servidora, em concurso de pesquisadora em saúde pública, atuando na área de avaliação e estudos de público, educação e popularização da ciência no Museu da Vida da Casa de Oswaldo Cruz, desde 2002.
Atualmente, qual o seu cargo? Já teve quais outros cargos na Fiocruz Brasília?
Estou desde 2018 na Direção Executiva da Escola de Governo Fiocruz – Brasília. Anteriormente, já havia atuado como Coordenadora de Programas e Projetos e, quando cheguei em Brasília, minha primeira impressão do quadradinho foi aquela de um antropólogo de botequim, admirando uma forma estranha de vida urbana, com seus códigos e regras ainda percebidos sob a lente embaçada dos estereótipos. Vim para Brasília a reboque do meu cônjuge. Nunca imaginara antes mudar para cá. Tudo em Brasília foi surpresa e conquista! Lá se vão 18 anos. Na Fiocruz Brasília, fui, paulatinamente, compondo uma área de educação e pesquisa voltada para popularização da ciência, educação e promoção da saúde, como apoio às atividades de promoção da saúde na educação básica. Fizemos análise das políticas voltadas para este fim e, ainda, projetos que buscaram fortalecer a participação juvenil, a integração intersetorial e a relação entre cultura, arte e saúde, por meio do Programa de Educação, Cultura e Saúde (PECS). Este Programa foi de 2004 até 2021, quando foi mesclado ao Laboratório de Educação e Mediação Tecnológica em Saúde para formar um novo grupo de pesquisa e educação: o Jacarandá!
Conte alguma situação que te marcou durante o trabalho na Fiocruz Brasília.
Muitas coisas me marcaram. Era uma unidade pequena, mas “gulosa”. Fui bem acolhida e parecia que tudo era possível aqui. Tudo o que propúnhamos era abraçado! Uma lembrança cheia de emoção diz respeito ao desenvolvimento do Fórum Ciência e Sociedade (FCS) em Brasília, em 2004. O Fórum, que posteriormente se tornou tecnologia educacional cadastrada no Ministério da Educação, foi criado para intensificar e ampliar o diálogo entre a pesquisa de ponta e os adolescentes. O projeto, iniciado no Rio em 2002, no Museu da Vida, tinha uma rede carioca e francesa de parceiros. Aqui em Brasília tudo era novo. Não tinha museu nem auditório. Parceiros da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e da Universidade de Brasília (UnB) foram conquistados nos primeiros 12 meses de trabalho. Lembro das visitas às escolas, que me permitiram conhecer um pouco do Distrito Federal para além do Plano Piloto. As regiões administrativas de Gama, Guará e Taguatinga foram o berço de parte da turma de jovens participantes do Primeiro FCS de Brasília.
No ano seguinte, organizamos um Fórum em Paris, levando para lá 12 jovens e dois professores de escolas públicas, um do Rio e outro do Distrito Federal. Um ato de coragem, regado pelo apoio da Casa de Oswaldo Cruz e da Fiocruz Brasília. Tivemos financiamento institucional e do governo, pois a atividade entrara na agenda cultural do Ano do Brasil na França! Ainda hoje lembro de cada detalhe. Eu, que morei sete anos por lá, percebia o país de um modo totalmente novo, pelos olhos daqueles jovens. Alguns foram ver o mar pela primeira vez naquele litoral, em Montpellier. Também era a primeira vez que andavam de avião. As delegações do Rio e Brasília se conheceram nos arredores da capital francesa e ocuparam com energia e coragem os auditórios e salas de reunião, os dormitórios e refeitórios onde debatíamos, dia e noite, com os jovens das escolas agrícolas francesas e seus professores, mas também com renomados pesquisadores da Fiocruz e do Muséum d’Histoire Naturelle, questões sobre a sustentabilidade, o uso adequando de recursos hídricos e a biodiversidade em cada território, na França e no Brasil. Testemunhar a riqueza do diálogo geracional, cultural e epistêmico foi uma experiência enriquecedora! A ciência pode e deve ser debatida por todos e cada um de nós! Ao final do Fórum, éramos um grande único grupo de jovens, de todas as idades, enredados pelas culturas e pelo debate. Depois daquele FCS, muitos outros se seguiram, o último em 2020, online, sobre as arboviroses na pandemia da Covid-19.
Do início até hoje, o que você considera como ponto alto do seu serviço público?
Não acho que tenha um único ponto alto. Toda vez que vejo jovens, jovens adultos, profissionais do SUS ou de outras políticas sociais se dispondo a construir conhecimento, olhando para seu território ou local de trabalho para propor soluções, a partir das experiências educacionais que oferecemos, sinto que meu trabalho faz alguma diferença. Pode parecer cliché, mas de fato acredito que a educação, ao longo da vida, é estratégica para embasar as transformações em disputa na implementação das políticas públicas. Compartilhar o que aprendemos também faz parte. Acho importante falar sobre a dimensão das políticas públicas que se materializam cotidianamente, em Brasília, na gestão de projetos e termos de cooperação junto aos Ministérios e outros atores do Executivo, Legislativo ou Judiciário. Aqui vivemos política de uma forma diferenciada e daqui vemos o país com maior generosidade.
Como a Covid-19 alterou seu trabalho na Fiocruz Brasília?
Tanto como gestora quanto como pesquisadora e educadora, meu trabalho se modificou profundamente com a pandemia da Covid-19. Na gestão, fomos provocados a garantir que nossas atividades de educação fossem mantidas. Precisamos readequar as atribuições e a forma de trabalho para todos. Muita aprendizagem, com a escuta, a flexibilidade, o acolhimento das necessidades do outro e o cuidado. Me senti mais próxima da gestão central e percebo a equipe técnica e docente mais integrada e muito disposta, embora, às vezes, sobrecarregada. Na pesquisa, tivemos que renegociar prazos. Na educação, aprendemos e tomamos coragem para melhor lidar com as tecnologias disponíveis, com a adoção da modalidade remota emergencial. Houve, ainda, a aceleração das ofertas em educação a distância, já em curso em 2019. Apesar da dor, conseguimos, pelo trabalho, construir sentido para atravessar a crise.
Como a construção e execução do Projeto Político Pedagógico da Escola de Governo Fiocruz – Brasília se insere no contexto dos 45 anos da nossa unidade?
A construção e publicação de nosso Projeto Político Pedagógico (PPP) marca o amadurecimento da educação, como eixo estruturante da unidade. O documento, que se pretende vivo e dinâmico, reflete valores, princípios, diretrizes e abordagens compartilhadas sobre como nós fazemos e pensamos a educação aqui. Registra, igualmente, nossas perspectivas para o futuro e, por isso, é um direcionador, um documento que deve nos acompanhar no dia a dia da gestão e da realização das atividades educacionais. É uma marca do caminhar, mas também constitui um dispositivo que nos situa entre passado, presente e a construção de um futuro comum para a educação.
O mote dos 45 anos da Fiocruz Brasília traz as palavras amorosidade, solidariedade e criatividade. Pode contar como essas três palavras se conectam com o seu trabalho na instituição?
Nossa instituição é um manifesto à ciência voltada para a saúde de todos, sem deixar ninguém de fora. Exercitamos a solidariedade em diversas dimensões. A visão do coletivo orienta as políticas institucionais, da gestão de pessoas à construção de respostas a editais. Já a perspectiva da educação para fortalecer o SUS remete a um projeto de relação solidária entre pessoas, grupos e o Estado, que pensamos solidário. A forma como buscamos ser inclusivos e dialogar com as características e necessidades de todos são atos de amor. Esta amorosidade remete à coragem. Coragem de doar, coragem de receber, coragem de se questionar. A educação não dá frutos sem amorosidade. A escuta e o cuidado com todos e cada um, no cotidiano das relações de trabalho ou na relação pedagógica, são manifestações amorosas. A criatividade, por sua vez, permeia o encontro entre ciência, sabedoria e arte. É práxis e prática reflexiva. Nos projetos territorializados, na construção de nossas experiências educacionais, na condução de nossas pesquisas, somos criativos. É na fronteira das variadas falas sobre o mundo que buscamos sair da caixinha, construir soluções. A criatividade habita em tudo o que fazemos aqui.
Há algo novo nos seus planos de trabalho que tem muito interesse em executar?
É necessário ampliar a acessibilidade na Escola de Governo Fiocruz – Brasília: manter o Coletivo pela Acessibilidade e Inclusão da Pessoa com Deficiência, estabelecido em 2020, aprimorar a escuta, saber responder à diversidade de necessidades que as pessoas têm para estudar, aprender, compartilhar suas ideias. Ainda, na Escola, pretendemos credenciar um curso de doutorado junto à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e fortalecer uma rede muito ativa de instituições educacionais no DF, voltadas para a educação em saúde, como o Instituto Federal de Brasília (IFB), a UnB e a Fundação de Ensino e Pesquisa em Ciências da Saúde.
Gostaria também de retomar a Rede Saúde e Cultura, que movimentou o Brasil inteiro, em articulação com a antiga política dos Pontos de Cultura. Fizemos editais de integração para que os pontos de cultura se reconhecessem e fossem reconhecidos como espaços de saúde, realizamos capacitação e encontros para mobilizar estas redes intersetoriais. Em decorrência da Rede Saúde e Cultura, construímos no Distrito Federal um projeto de ocupação cultural pela saúde, que propunha que as contrapartidas culturais dos projetos ganhadores de editais no DF pudessem ser realizadas em equipamentos, de saúde ou não, voltados para a promoção da saúde.
Outra ação futura será um observatório para acompanhar e promover a reflexão sobre as ações de educação e promoção da saúde junto à comunidade escolar, crianças, adolescentes e jovens. A ideia é valorizar as pesquisas do INEP e IBGE, dentre outros, que tratam da saúde na escola, como a PENSE, analisando dados secundários. Além disso, propor instrumentos de coleta de dados mais específicos e mobilizar redes de pesquisa, com encontros locais, regionais, nacionais e internacionais, intercâmbio e compartilhamento de achados e propostas. Constituir acervo sobre documentação que trate das políticas públicas voltadas para o binômio saúde e educação na escola, onde possamos compreender os processos e fatores intervenientes nas formas como promovemos saúde, mobilizamos a vigilância e a prevenção junto aos jovens e suas famílias, compartilhamos visões de saúde, educação e sua imbricação ao longo do tempo. Estes projetos estão aguardando disponibilidade de tempo e que outros colegas se contaminem com eles; e, talvez, um país com governantes mais sensíveis para a importância da ciência, da educação e da cultura na vida e na saúde de todos nós desde a infância.