“Eu sou mais um na sua estatística, debaixo do plástico a morrer. Eu não sou visto, eu sou um lixo, atrapalho e sujo a sua vista. Só como o que me dão ou reviro lixo em exaustão. Ser andarilho da vida, estar à margem do mundo, em bancos, fachadas, becos e vielas. Ser invisível pelo que se vive. Apesar da minha insignificância ou do que em mim gera em ti repugnância, sou ser humano. Humano das ruas, nuas e cruas.” Esses trechos marcantes, escritos pela poeta Daya Larissa, falam sobre uma parte da vida de pessoas em situação de rua e foram lidos durante o 1° Encontro de Equipes de Consultório na Rua do Centro-Oeste, com o tema Intercâmbios dialógicos: construindo uma clínica inventiva e afetiva. O evento teve início nesta segunda-feira (6/6).
Até sexta-feira (10/6), o evento reúne trabalhadores da gestão estadual de saúde e das equipes de Consultórios na Rua, movimentos sociais e instituições de ensino e pesquisa que atuam com a população em situação de rua no Distrito Federal, Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. O objetivo é levantar e apresentar temáticas e possíveis soluções para os desafios do cuidado em saúde dessa população, principalmente no contexto pós-pandêmico, com o aumento de pessoas nas ruas. A programação do evento foi construída a partir das demandas mais recorrentes elencadas pelas equipes, buscando a melhoria do serviço prestado.
Durante a mesa de abertura do evento, a diretora da Fiocruz Brasília, Fabiana Damásio, destacou que o aumento da população em situação de rua em muitas regiões do país demanda uma atenção maior e a construção de ações articuladas e fortalecidas junto ao SUS, para o acolhimento e a ampliação do cuidado. A psicóloga definiu o 1º Encontro como um momento de trocas com vistas a garantir a efetividade do cuidado dessa população, contribuindo para a formação de uma grande rede do Centro-Oeste. “Que essa iniciativa sirva como ponto de partida para a realização de outras em todo o Brasil. Vamos juntos pensar em caminhos possíveis para reiterar a importância do SUS no cuidado à população em situação de rua, estabelecendo redes de solidariedade e construção coletiva”, afirmou Fabiana.
Para o psicólogo e pesquisador da Fiocruz Brasília Marcelo Pedra, os serviços de saúde, em suas abordagens de assistência, podem ampliar as barreiras de acesso e os preconceitos, e reproduzir estigmas já impostos à população em situação de rua. “Fazer trabalho com essa população não tem nada a ver com sensibilização e conscientização, mas com clínica, resolutividade e ação política dos atores envolvidos. Temos que avançar na garantia do acesso e na oferta de atenção e cuidado de forma resolutiva”, afirmou Marcelo, que integra o Núcleo de Populações em Situações de Vulnerabilidade e Saúde Mental na Atenção Básica (Nupop).
O pesquisador destacou o conceito ampliado de saúde como elemento necessário para a sustentação do Sistema Único de Saúde (SUS), assim como a ideia de que a saúde é uma condição política e social determinada por aspectos de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso à terra e a serviços de saúde. “É fundamental para as nossas práticas, para as ações de saúde com a população que atendemos, ampliar o olhar sobre os determinantes e os condicionantes do processo saúde-doença. Cidadania, direitos e SUS estão interligados e essa ideia precisa ser sustentada no nosso dia a dia”, disse.
Para que o assistencialismo não tome o lugar da garantia de direitos, Marcelo pontuou que os profissionais de saúde precisam pensar o conceito de saúde como processo civilizatório, de justiça social e autonomia, e facilitar a entrada e a permanência das pessoas no serviço de saúde. Ele ressaltou a força dos movimentos sociais nas mudanças, como a migração para o modelo de Consultório na Rua, a recusa de associar a população em situação de rua sempre com álcool e outras drogas, e a oferta de um atendimento integral.
O sanitarista acredita que a promoção da cidadania realizada pelas equipes de Consultório na Rua precisa abranger direitos sociais básicos, cultura, lazer, trabalho e renda, habitação, segurança alimentar e direito à cidade. Para isso, essas equipes precisam, assim como todas as equipes, antecipar dimensões do sofrimento que emergem a partir das relações com o capital, o mundo do trabalho e as questões de gênero, classe, machismo, racismo, misoginia e LGBTQIA+fobia. Segundo ele, é preciso agir com o direito à saúde articulado a outras políticas públicas, como as de assistência social, educação e segurança pública, e lidar também com redução de danos, reabilitação, promoção da saúde, prevenção de doenças, articulação com a rede local, reforço da atenção básica como porta de entrada do SUS, coordenação do cuidado e práticas baseadas em evidências.
Outros aspectos elencados como essenciais pelo pesquisador são a ocupação de forma igualitária dos três espaços de atuação das equipes de saúde: na rua; na rede local, em parceria com a equipe de abordagem social; e nas Unidades Básicas de Saúde (UBS), garantindo o direito de que a pessoa em situação de rua entre na Unidade como qualquer outro cidadão. “Se a equipe ficar somente na rua, isso diminui o acesso e a resolutividade do serviço prestado. É fundamental que aproveitemos ao máximo o trabalho de múltiplas tecnologias de intervenção, como atendimentos individuais e em grupo, visitas na rua e oficinas. É fundamental também uma equipe multiprofissional, com enfermeiro, psicólogo, assistente social, terapeuta ocupacional, médico, educador físico, dentista, arte-educador, agente social, técnico de enfermagem e técnico em saúde bucal. Tudo isso que podemos fazer é importante que se faça na rua e nas UBS, uma vasta carteira de serviços na Atenção Primária à Saúde para ter ocupação da cidade e garantia de acesso”, explicou.
Para lidar com as novas situações pós-pandemia, o agravamento da situação econômica e social do país e o aumento nas ruas de pessoas e famílias que não tinham histórico de situação de rua, ele indica estratégias de transferência de renda que possam garantir o mínimo à população; ações céleres para ter a adesão dessas pessoas e evitar que passem mais tempo nas ruas; ampliação das ofertas de acolhimento institucional e abrigo na perspectiva de baixa exigência; ampliação das estratégias de trabalho e renda; e construção de estratégias de habitação e moradia que não sejam só o acolhimento institucional. “É fundamental que essa agenda política de garantia de direitos se desloque do assistencialismo e garanta o que está colocado na lei. Se a gente quer, de fato, fazer alguma coisa, precisamos ter o que o SUS chama de responsabilidade sanitária e incorporar o elemento político da clínica na nossa ação direta com a população”, finalizou.
Para o conselheiro nacional de saúde do Movimento Nacional da População de Rua, Vanilson Torres, as políticas públicas para a população em situação de rua se tornam assistencialistas quando funcionam de forma pontual e isolada, sem ter como meta a emancipação dessas pessoas. Ele afirmou ainda que a efetivação dos direitos dessa população só existirá com políticas estruturantes e intersetoriais no campo da saúde, moradia, educação, trabalho e renda, e segurança alimentar. “O que vemos são retrocessos disfarçados de políticas públicas”, opinou. Programas de combate à pobreza, qualificação e capacitação dos profissionais de saúde, diminuição da interferência de gestores e governos locais sobre a atuação dos trabalhadores, e espaços de participação direta dos movimentos sociais foram algumas das recomendações de Vanilson.
Ele também comentou o histórico das políticas públicas no Brasil e a redução de investimentos, com perdas de direitos e aumento da desigualdade social. Abordou ainda a realidade da população em situação de rua, destacando a invisibilidade para as políticas públicas, mas a visibilidade para a opressão e o aprisionamento. De acordo com o conselheiro, a população em situação de rua não é inserida nas políticas públicas por diversos motivos, entre eles o preconceito. Sobre o processo de implementação dos Consultórios na Rua, lembrou que foi necessário muito diálogo para mostrar aos governantes que essa população não tem necessidades relacionadas somente à saúde mental e ao uso de álcool e outras drogas, mas também problemas pulmonares, dentários e cardíacos, por exemplo, que demandam mais atenção. “A pessoa em situação de rua é uma pessoa como qualquer outra. Somos seres humanos passíveis de todos os determinantes de saúde”, defendeu.
Para o secretário de Saúde de Pirenópolis (GO) e diretor financeiro do Conselho Nacional de Secretarias municipais de Saúde (Conasems), Hisham Mohamad Hamida, esses debates fortalecem o trabalho das equipes de Consultório na Rua em todo o país. “Essa estratégia faz diferença”, destacou.
Assista aqui o painel Políticas públicas: garantia de direitos ou assistencialismo?