Dos 127.396 novos casos de hanseníase reportados à Organização Mundial da Saúde (OMS), 19.195 ocorreram na região das Américas e 17.979 no Brasil. Ou seja, foram notificados em nosso país 93,6% dos novos casos de hanseníase das Américas. Os dados correspondem ao ano de 2020 e estão no último Boletim Epidemiológico de Hanseníase, publicado em janeiro de 2022 pela Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde. “O Brasil ocupa o segundo lugar entre os países com maior número de casos no mundo, atrás apenas da Índia”, destaca a publicação.
Para analisar esses números, alunos da disciplina Pesquisa Básica de Interesse Médico, coordenada pelo professor André Nicola, da Faculdade de Medicina da UnB, conversaram com o doutor em medicina tropical Gerson Penna, médico dermatologista, pesquisador e professor da Universidade de Brasília (UnB) e da Fiocruz Brasília.
Com uma produção que soma mais de 200 trabalhos científicos, Penna está entre os cientistas do mundo que, na última década, mais contribuíram para o estudo das chamadas doenças negligenciadas, que atingem as populações mais vulneráveis e que, historicamente, não têm recebido a necessária atenção de governos, empresas e sociedade. Nesta entrevista, o ex-diretor da Fiocruz Brasília, que também já foi secretário de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, comenta os desafios para o controle dessas doenças negligenciadas, em especial a hanseníase.
O que fez com que o Brasil atingisse o segundo lugar no ranking de países que mais registram novos casos de hanseníase?
Gerson Penna: Analisamos dados de mais de 143 milhões de brasileiros e verificamos que menor acesso à saúde, renda familiar mais baixa e insegurança alimentar são fatores que predispõem à hanseníase. A doença também está associada a um componente genético – a deleção de um pedaço de um cromossoma –, conforme estudos do pesquisador Marcelo Mira, da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Mas esse componente genético não significa que a pessoa obrigatoriamente vai ter a doença, apenas a deixa mais suscetível, pois hoje sabemos que todas as doenças são multifatoriais, causadas por fatores biológicos, genéticos e socioeconômicos. Eu postularia que o Brasil, em muitos aspectos, está próximo dos países com menor desenvolvimento social: cerca de 70 milhões de brasileiros – pouco mais de um terço da população – não têm acesso à água encanada nem ao esgotamento sanitário. O Brasil ocupar o segundo lugar no ranking de países que mais registram novos casos de hanseníase está relacionado aos determinantes sociais da saúde.
Seria possível a erradicação da hanseníase?
Gerson Penna: Em toda a história da Humanidade, doenças somente são erradicadas por vacina. Existem diferenças entre controle, eliminação e erradicação de uma doença. A Humanidade só viu, até então, uma doença ser erradicada: a varíola. Naquela época, havia pouco mais de cinco bilhões de pessoas no mundo e foram necessários seis anos para vacinar a população mundial. Já como doença eliminada de alguns países temos como exemplo o sarampo. Ele havia sido eliminado, inclusive, do Brasil, mas depois voltou, devido à diminuição das coberturas vacinais favorecida pela grande quantidade de fake news, que fazem os responsáveis não levarem as crianças para serem vacinadas. A situação de controle, por sua vez, é o que a gente busca para a hanseníase. A meta é ter apenas 1 caso a cada 10.000 habitantes, mas não será alcançada enquanto não houver desenvolvimento social. Há mais de 100 anos, a Noruega mostrou que foram necessários 30 anos de desenvolvimento social para acabar com a hanseníase naquele país.
Por que a prevalência de casos de hanseníase é diferente entre as cidades brasileiras?
Gerson Penna: As regiões brasileiras mais pobres têm maior prevalência das doenças da pobreza, não só da hanseníase, como de outras doenças negligenciadas (leishmanioses, malária, esquistossomose etc.). São doenças de populações negligenciadas, o que tem também uma relação muito evidente com o não investimento da indústria farmacêutica. Porque o grande comprador de medicamentos e outros insumos para essas doenças é só o governo, já que as pessoas atingidas são pobres e não constituem um mercado consumidor interessante. Foi a partir dessa negligência social da indústria farmacêutica que se cunhou o termo doenças das populações negligenciadas. Eu faço parte de um instituto virtual do CNPq que se chama Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia das Doenças Negligenciadas. Além da luta por melhores condições de habitação, saneamento, água e segurança alimentar, é necessário investir em pesquisa e desenvolvimento e acabar com essa hegemonia da indústria farmacêutica de só fabricar aquilo que dá lucro. Neste momento, o mundo está discutindo exatamente equidade e justiça social. Nossa cobertura vacinal cresce e a incidência de Covid-19 cai, mas há países na África que ainda têm 2% ou menos de cobertura vacinal. Porque países que não têm dinheiro não compram vacina. O ebola foi descoberto em 1976, mas o medicamento para essa doença foi feito há apenas três anos, quando o deslocamento de pessoas e cargas tirou o vírus da África e o levou para lugares ricos. Foi só aí que a indústria farmacêutica desenvolveu o medicamento.
Quais os caminhos para o Brasil avançar no enfrentamento da hanseníase e de outras doenças negligenciadas?
Gerson Penna: Os caminhos, inequivocamente, são investimento social, justiça e equidade. Temos que dar para a pessoa o que ela precisa. Esse é o conceito de equidade social: três pessoas de alturas diferentes vão assistir a um jogo de futebol que ocorre do outro lado de uma cerca; a pessoa mais baixa não consegue ver, a de estatura média vê um pouco e a mais alta enxerga tudo; mas, se você coloca um banco alto para a pessoa mais baixa e um banco médio para a de altura média, todas vão conseguir ver o jogo. Desde 1988, o texto da Constituição prevê isso, mas nunca foi regulamentada, por exemplo, a taxação de grandes fortunas. Então, existe uma acumulação enorme de riqueza na mão de poucas pessoas. Quem paga mais imposto quando compra um litro de leite, um morador de rua ou um de nós? O morador de rua, que não tem renda, se ele receber cinco reais, vai gastar tudo para comprar um litro de leite, enquanto muitos nem percebem o preço de um litro de leite.
Como o seu trabalho contribui para o entendimento e combate das doenças negligenciadas?
Gerson Penna: As pesquisas realizadas mudaram o tratamento e o risco de hanseníase no mundo todo. Sou dermatologista e trabalhei a vida inteira em serviço público. Sou formado em duas áreas: vida acadêmica, com estágio de pós-doutoramento, e gestão (fiz treinamento com o professor chileno Carlos Mattos, considerado o “papa” da gestão de alta complexidade e planejamento estratégico). Durante mais de 12 anos, em momentos diferentes, estive em cargos de gestão de alta complexidade no Ministério da Saúde, onde, entre outras atividades, ajudei a criar a gerência de DST/Aids na então Divisão Nacional de Dermatologia Sanitária. Por essa oportunidade, e pelo fato de minha formação ter sido toda no serviço público, paga com contribuição dos cidadãos, eu tinha a responsabilidade social de colocar minhas pesquisas todas voltadas para as necessidades sociais, como o enfrentamento das doenças negligenciadas.