Cuidado e acesso à saúde da população em situação de rua foi tema de debate

Nathállia Gameiro 7 de maio de 2021


Especialistas defendem o mapeamento dessa população para uma melhor organização dos serviços de saúde e uma atenção integral

 

Preconceito, violência e estigma são algumas situações que a população em situação de rua passa diariamente. A constatação foi feita por profissionais de saúde durante a 6ª Sessão Temática do Mestrado Profissional em Saúde da Família (ProfSaúde), realizada na manhã desta quinta-feira (6/5).

 

Acesso à saúde, fortalecimento de vínculo e fortalecimento de políticas públicas foram algumas necessidades elencadas para o atendimento a essa população, que cresceu 140% de 2012 para cá, chegando a quase 222 mil pessoas, em março de 2020, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Com a pandemia do novo coronavírus, especialistas acreditam que este número tenha aumentado ainda mais.

 

Segundo o estudo do Ipea, o perfil prevalente é de homens negros, jovens e de baixa escolaridade: 81,5% estão em municípios com mais de 100 mil habitantes, principalmente nas regiões Sudeste (56,2%), Nordeste (17,2%) e Sul (15,1%).

Já a Pesquisa Nacional sobre População em Situação de Rua de 2008 mostra que os principais motivos de saída para a rua são problemas na relação com álcool e outras drogas (35,5%), desemprego (29,8%) e desavenças familiar es (29,1%). O que não quer dizer que a volta para casa é um desejo da maioria: 46,5% declararam preferência por dormir na rua e 43,8%, em albergues.


O psicólogo sanitarista e pesquisador Marcelo Pedra, integrante do Núcleo de Pesquisa em População de Rua (Nupop) da Fiocruz Brasília, ressaltou que os profissionais e trabalhadores da saúde precisam analisar os dados com cautela, pois qualquer conclusão antecipada compromete a capacidade de aproximação, escuta e organização dos serviços de saúde. “Não podemos partir do pressuposto de que a rua é algo a ser superado. É uma população heterogênea, são relações complexas e isso nos traz a necessidade de avaliar os casos”, completou.

Para ele, o alto nível de exigência dos acolhimentos institucionais e dos serviços de saúde, como não poder fumar no local, não poder entrar depois do consumo de bebida alcoólica ou substância psicoativa, ou ainda não poder entrar descalço e sem camiseta, afastam essa população. “É importante pensar as estratégias de acesso e permanência nos serviços. As pessoas vão preferir as ruas se os espaços institucionais tiverem alto nível de exigência para que elas permaneçam”, comentou.

Pedra destacou que a Política Nacional para a População em Situação de Rua, criada em 2009, foi um grande marco. Contudo, ela apresenta muitos termos morais que devem ser problematizados por não garantirem a definição do que é população em situação de rua, um grupo tão heterogêneo.

Os dados da pesquisa de 2008 mostram ainda que a oferta de família não é interessante para mais da metade dessa população, por não ser um espaço de proteção ou acolhimento; 51,9% possuem um parente na cidade; 70,9% exercem atividade remunerada, sendo que apenas 15,7% pedem dinheiro como principal meio para a sobrevivência. Além disso, a maioria (79,6%) consegue se alimentar pelo menos uma vez ao dia. “Precisamos avaliar se trabalho, família e alimentação, que estão na boca das equipes de saúde, são interessantes para a população em situação de rua”, afirmou Pedra.

Para a psicóloga e diretora da Fiocruz Brasília, Fabiana Damásio, diante da complexidade, é preciso mapear a população em situação de rua em cada cidade e município brasileiro, para que os serviços de saúde sejam organizados da melhor forma e os desafios superados. “A situação de vida foi agravada com a pandemia. Com isso, precisamos reforçar a necessidade de analisar o ambiente social, fazer a articulação entre a análise dos dados de saúde e da sociedade, para reconhecer a multidimensionalidade da vulnerabilização da população em situação de rua. Organizar, reconhecer o papel das equipes e propor reflexões e medidas que possam contribuir para o enfrentamento das realidades”, destacou.

 

Segundo Fabiana, olhar para as dimensões da pobreza, alimentação, moradia, educação e racismo é importante para o reconhecimento de que a vulnerabilidade tem as dimensões individuais e coletivas. Também é preciso estar atento aos determinantes sociais e ambientais para pensar na intervenção dos profissionais de saúde, na compreensão do processo de adoecimento e nos cuidados da saúde.

 

Para garantir o acesso e o direito à saúde dessa população na saúde, especialistas defenderam ainda que sejam criadas políticas públicas para interferir nos determinantes do processo de saúde e doença; a sistematização de informação para permitir o vínculo com os serviços; a diminuição das formas de violência enfrentadas todos os dias; e articulação e trabalho coletivo de equipes multiprofissionais da saúde, assistência social, educação e segurança pública para uma atenção integral.

 

Atualmente, cerca de 45% das pessoas em situação de rua estão cadastradas no e-SUS (dados coletados dos prontuários eletrônicos) e a população feminina cresceu de 18% para 34,7%, o que chama atenção para a necessidade de inserção da saúde da mulher nas agendas das equipes de saúde. Apesar dos desafios que persistem, “quando observamos os dados, conseguimos ver o papel e o compromisso das equipes em promover o acesso da população em situação de rua a serviços de saúde”, disse Fabiana. Nas regiões Centro-Oeste e Sudeste, há um maior equilíbrio entre os locais dos atendimentos: rua, unidades básicas de saúde e abrigos. Já nas regiões Nordeste e Norte, prevalecem os atendimentos nas ruas, geralmente feitos pelas equipes de Consultório na Rua.

 

Pedra criticou que o percentual de atendimentos em questões de álcool e outras drogas é muito maior do que outros, como em tuberculose, infecções sexualmente transmissíveis, saúde mental, hipertensão, hanseníase e saúde sexual e reprodutiva. “Parece que o discurso da droga tem um grau de captura muito significativo, pelo menos para essa agenda em especial. Isso nos leva à reflexão sobre a necessidade de as equipes estarem preparadas para acolher, tratar e reabilitar, com as possibilidades de atenção e cuidado possíveis à atenção básica”, completou. A baixa taxa de vacinação também preocupa o pesquisador. Para ele, a imunização como forma de cuidado pode ser uma estratégia de aproximação, vinculação e legitimação da equipe de Consultório na Rua junto à população em situação de rua.

 

Durante o evento, as mestrandas Bianca Nogueira, Lia Pérez e Marla Niag apresentaram as pesquisas e o trabalho que cada uma está realizando sobre o tema em suas regiões: Rio de Janeiro, São Paulo e Bahia. Elas mostraram o histórico e a consolidação de políticas públicas para a população em situação de rua, as principais dificuldades enfrentadas pelos profissionais de saúde, a experiência de uma unidade básica de saúde no atendimento a essa população com sintomas de Covid-19, e o atendimento e cuidado a gestantes em situação de rua.

 

ProfSaúde

O Mestrado Profissional em Saúde da Família (ProfSaúde) é produzido em rede por 22 instituições públicas de ensino superior no Brasil, lideradas pela Fiocruz. Voltado para profissionais da atenção primária, as turmas são compostas por médicos, dentistas e enfermeiros.

 

A diretora da Fiocruz Brasília, Fabiana Damásio, destacou que o Mestrado nasceu da ideia de avançar na qualificação de médicos e médicas para atuarem na atenção primária à saúde, e se expandiu para outros profissionais, no aprimoramento das práticas colaborativas, para unir esforços e dar respostas às diversas emergências sanitárias presentes nos territórios.

 

A coordenadora institucional do ProfSaúde e pesquisadora da Fiocruz Brasília, Kellen Gasque, afirmou que é fundamental para o SUS o debate sobre a população em situação de rua, suas demandas e especificidades, e as necessidades das políticas públicas se organizarem para interagirem com essa população. “Queremos apresentar e discutir possibilidades, saberes e práticas com essas sessões temáticas”, disse.

 

A 6ª sessão temática foi realizada online e pode ser assistida aqui. O próximo debate, que será sobre A pandemia da Covid-19, as práticas de saúde baseadas em evidências e a produção de conhecimento no SUS, já tem data marcada: 8 de julho, às 9h30, no canal da Fiocruz no Youtube.