Relato de Waldir Campelo da Silva (dezembro/2024)
Há alguns anos iniciei minha trajetória, num terreiro de Matriz Africana.
Aliás a existência do Terreiro, que chamamos de Canzuá Ogum e Iansã se deve, em parte, a minha iniciação juntamente com mais 3 pessoas, que são minhas irmãs de barco, como chamamos.
Me iniciei na Nação Angola, mas em nossa casa, não louvamos apenas aos Jinkisis, nossas Divindades, também conhecidas pelos nomes de Orixás e Voduns, em outras Nações. Temos como rito também louvarmos as entidades da Umbanda, uma vez que foi o berço da maioria, senão, de todos os filhos da Casa.
Essa iniciação e convivência com outras pessoas de outras Casa irmãs, me colocaram em contato com outras realidades, as quais sabia existir, mas nunca as tinha vivenciado de uma forma tão próxima.
Preconceitos, Racismo, ações agressivas contra as comunidades de Matrizes Africanas, medo, enfim, situações que colocam em risco a integridade de membros dos vários Terreiros seja de Candomblé e/ou de Umbanda, bem como os próprios simpatizantes e frequentadores.
Em 2022, por meio de um contato com a vice-diretora da Fiocruz Brasília e coordenadora do Programa de Alimentação (Palin), Denise Oliveira e Silva, tive a oportunidade de participar do início do Projeto Ecoilê. Naquela ocasião, o projeto contava com 4 Espaços Sagrados e um processo de trabalho voltado, principalmente, para o reconhecimento desses territórios.
Agora em 2024, retorno ao projeto, que atualmente envolve 7 Terreiros situados em Planaltina (DF e GO), Ceilândia, Gama e Sobradinho.
A proposta do projeto consiste na realização de sete Cartografias Sociais, com o objetivo de (re)conhecer os territórios de cada Comunidade de Terreiro de Matriz Africana e o próprio Terreiro. O foco está em levantar as necessidades, carências, virtudes e olhar para o Sagrado de cada comunidade, considerando-o como um elo importante, que pode – ou poderia – interceder pelo coletivo.
Vejo isso como uma excelente oportunidade de estreitar o contato com outros Terreiros e observar suas realidades. A metodologia da Cartografia Social, baseada na Agenda 2030 e nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), contempla também fatores relacionados aos ODS 18 – Igualdade Étnico-Racial, ODS 19 – Arte, Cultura e Comunicação, e ODS 20 – Povos Originários e Comunidades Tradicionais. Além de propor um panorama da situação atual, a metodologia pode contribuir para o fortalecimento das ações desenvolvidas pelas Casas e para o reconhecimento da Cultura Afro-religiosa das Comunidades de Matrizes Africanas, promovendo o respeito a todos os membros da comunidade afrodescendente – homens, mulheres, crianças e idosos.
“Iaia… Eu preciso do Sol, Eu preciso da Lua Eu preciso é de Exu Se Deus quiser eu vou lhe proteger Eu vou cuidar de mim, prá cuidar de você.” |
“O chão que eu piso, seja de terra batida ou de areia, cimento, de madeira, de piso é o chão do meu Sagrado.
É ali que bato minha cabeça em reverência ao meu Sagrado. É ali que danço e me encanto com seus rodopios, seus atos, seus ilás. É ali que entoo minhas rezas em forma de cantos, agradeço e peço pelo seu Axé e sua força para me sentir nutrido pelo amor que Eles têm por nós.
Esse chão que piso descalço, pois não ouso nele entrar calçado nem com a mais simples sandália, é a representação do meu corpo. Se o Sagrado habita em mim, quando para ele renasço, então esse corpo que uso também é um espaço sagrado.”
Foi ao entrar nos Espaços Sagrados que a equipe se deparou com as realidades de cada Terreiro e sua convivência com a comunidade ao seu redor. Foi ali que se deu conta de que essas comunidades são, para muitas pessoas, um ponto de busca de auxílio e apoio.
A partir dos Espaços Sagrados, conseguimos perceber a realidade dos territórios nos quais estão instalados. As dificuldades, as necessidades e as virtudes, expressas nas maneiras como lidam com as adversidades, se tornaram evidentes. Também vimos suas carências, determinadas por problemas externos ao Terreiro, como a falta de transporte público, unidades de saúde ou outros recursos essenciais. Esses problemas interferem diretamente na rotina do Terreiro, podendo ser classificados como ameaças externas ou, até mesmo, internas. Essas fragilidades, ou vulnerabilidades, como define a metodologia trabalhada, precisam ser compreendidas, atentando sempre para o fato de que o Sagrado pode ser um ponto de interseção com todas essas questões.
Foi nesses Espaços que testemunhamos o olhar curioso dos filhos de Santo, atentos às falas, aos questionamentos e às observações, trazendo seus próprios conhecimentos e saberes adquiridos ao longo da vida, mas também através dos ensinamentos dos mais velhos e de suas Zeladorias. Um saber que, evidentemente, só pode ser adquirido por quem vive essa experiência. Não está nos livros, por mais esclarecedores que sejam, e não se encontra em conversas sociais, nem mesmo entre os mais velhos. Esses ensinamentos estão guardados nos segredos dos quartinhos dos santos, conhecidos como Roncó.
São essas falas, conhecimentos e saberes que desenham o mapa e expressam a vida de cada Espaço Sagrado e seu entorno. Cada canto, por menor que fosse, tornou-se real cada vez que um marcador colorido (ou “Pin”, como chamamos) era colocado. Cada um desses cantos conta uma história — seja de realização ou de frustração —, mas, independentemente disso, traz consigo um pedaço da vida daquele Sagrado. E, acima de tudo, carrega a esperança de ver melhorias, o reconhecimento e o fortalecimento da afro-religiosidade das Matrizes Africanas, o respeito a essas comunidades e a valorização de seus Terreiros.
Uma certeza, porém, permanece: as raízes de cada Terreiro foram plantadas com muita força e profundidade. Pessoas podem vir e ir, crescer, se desenvolver ou até se dispersar, mas aquele Asé, plantado em cada coração e mente, jamais sairá dali.
O que se viu nesses Espaços Sagrados, foi acolhimento, gratidão e o sentimento de que todos são iguais. Fomos tratados como iguais, acolhidos e agradecidos.
Os rumos ainda são incertos, pois o que lhes cabia foi realizado. Agora, depende do que será feito com toda a história contada pelos Pins, pelas falas, pelos contos, silêncios, olhares e agradecimentos.
Uma certeza, porém, permanece: as raízes de cada Terreiro foram plantadas com muita força e profundidade. Pessoas podem vir e ir, crescer, se desenvolver ou até se dispersar, mas aquele Asé, plantado em cada coração e mente, jamais sairá dali.
“Quando renascemos para o Santo, transformamos nosso corpo em Espaço Sagrado.”
Waldir de Kassambura
Sobre o autor
Waldir Campelo da Silva, é psicólogo, tarólogo e Tata Ndengue (Pai Pequeno) Kassamburá de uma casa da Matriz Africana, Canzuá de Ogum e Iansã e bolsista da Fiocruz Brasília, atuando no Colaboratório nos Projetos de Periferia Saudável e EcoIlê.
“Dê Letras à Sua Ação” busca divulgar artigos assinados por colaboradores e estudantes da Fiocruz Brasília sobre iniciativas relacionadas a seus trabalhos ou de seus colegas. Os relatos são de responsabilidade de seus autores.