Dado foi apresentado durante evento online com pesquisadores da Fiocruz, que abordaram as necessidades de cuidados com a saúde mental durante o teletrabalho
Nathállia Gameiro
A mudança brusca de rotina que a pandemia causou na vida e no trabalho das pessoas trouxe impactos também para a saúde mental. É o que mostra um estudo realizado pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e publicado pela revista The Lancet. De acordo com o artigo, os casos de depressão aumentaram 90% e o número de pessoas que relataram sintomas como crise de ansiedade e estresse agudo mais que dobrou entre os meses de março e abril deste ano.
Preocupada com a saúde mental dos colaboradores, a Fiocruz promoveu, nesta quarta-feira (12/8), o evento Diálogos com os trabalhadores da Fiocruz: Saúde mental e trabalho na pandemia. Risco de contaminação, medo de contaminar a família e colegas de trabalho, redução significativa de postos de trabalho e desemprego foram algumas situações citadas pelos especialistas como desencadeadoras de depressão, ansiedade e outros danos psicológicos.
Os problemas de saúde mental no trabalho estão ligados a três pilares: tempo, espaço e condições. A afirmação foi feita pela diretora da Fiocruz Brasília, Fabiana Damásio. Para ela, ao analisar o tempo, percebe-se uma ausência de limites entre trabalho e vida pessoal e o entrecruzamento do trabalho com as atividades domésticas. A psicóloga lembrou que as questões das desigualdades sociais eclodem neste momento quando nos deparamos com a pandemia, em que os espaços físicos foram transferidos para redes comunicacionais como mídias sociais, plataformas virtuais e tecnologias para garantir que essas redes permaneçam.
O terceiro pilar é a condição de trabalho remoto que, para Damásio, tem sido um grande desafio, assim como a retomada das atividades presenciais e a garantia da convivência segura. Ela destacou que é preciso estar atento à regulação social do trabalho, pois pode causar interferências nas redes colaborativas que se formam como caminho de proteção social e funcionam como redes de apoio e contribuem para estratégias dos problemas de saúde mental que surgem.
“Precisamos pensar nos problemas de saúde mental como problema de saúde pública, assim como o luto. Cada categoria profissional é acometida por um conjunto de eventos que depende da natureza do seu trabalho”, disse. A pandemia aumentou a intensidade das atividades de colaboradores das unidades de assistência e reorganizou os espaços de colaboradores da educação, gestão e pesquisa com o teletrabalho e de equipes e espaços de laboratórios, transformou salas de aula em plataformas com a educação remota e emergencial e os espaços de gestão passaram a ocupar todo o espaço das nossas casas – salas, quartos e cozinhas. “Há uma porosidade da membrana que separa a casa do trabalho. Este é um dos eventos que podem trazer consequências para o trabalhador, que acaba sendo integralmente ocupado pelo seu tempo de trabalho, pela quantidade de tarefas, e vive na ausência de sociabilidade. Precisamos reconhecer que as categorias estão expostas a eventos que levam à exaustão e impactam diretamente no modo de levar a vida e na capacidade de dar respostas”, disse.
A pesquisadora mencionou que a OMS (Organização Mundial da Saúde) já aponta aumento dos índices de suicídio, depressão, preocupação, medo, ansiedade, da violência doméstica, fragilidade das redes de proteção e uso abusivo de álcool e outras drogas. “É a constatação de que há uma dor presente em todas essas situações que vêm sendo presenciadas, até mesmo a ausência de sociabilidade”, completou.
Para Damásio, as ações internas e externas da Fiocruz refletem que o tema é uma prioridade da instituição, a partir da tese 11, que reafirma a saúde como um direito, além do reconhecimento da diversidade e a necessidade de garantir a equidade nos serviços prestados ao público e no cotidiano das ações dos trabalhadores em todas as unidades. De acordo com ela, as pautas foram ampliadas, colocando como premissa básica o cuidado, a convivência segura e ações no enfrentamento à Covid-19.
A psicóloga citou as estratégias de cuidado com os trabalhadores da saúde desenvolvidas pela Fiocruz Brasília, como o suporte aos trabalhadores que atuam na linha de frente do novo coronavírus, as 20 cartilhas de saúde mental com orientações aos trabalhadores sobre como agir em determinados temas e que contou com o trabalho de 145 pesquisadores e técnicos da Fiocruz, as oito edições do programa Conexão Fiocruz Brasília, o teleatendimento psicológico que está sendo organizado com a OPAS/OMS para trabalhadores e população, além do Curso Nacional de Atenção Psicossocial e Saúde Mental na Pandemia covid-19, com mais de 70 mil inscritos.
“É o reconhecimento do coletivo como uma unidade que precisa ser permanentemente ressignificado com a participação dos gestores e trabalhadores para discutir as questões sanitárias, sociais, econômicas e ecológicas. O novo sujeito trabalhador é um sujeito de direito, reflexão e de ação colaborativa. O que é necessário construir para garantir a dignidade no trabalho?”, questionou.
Saúde mental antes da pandemia
A coordenadora de Saúde do Trabalhador da Fiocruz, Sônia Gertner, afirmou que a saúde mental já aparecia em destaque antes da pandemia, e agora o tema eclodiu. “Estamos o tempo todo perguntando como o trabalhador vai lidar com o trabalho e as questões relacionadas ao medo, riscos e aumento de possibilidade de contrair a doença”, afirmou. Para ela, todos estão se reinventando a cada dia, seja na forma de trabalhar ou de lidar com os sentimentos e as situações em casa, são todos aprendizes. Sônia destacou que a pesquisa vem sendo cada vez mais valorizada, e que o momento exige mais atenção às questões que impactam a maior parte do Brasil, especialmente as questões sociais.
Como estávamos antes da pandemia? Este foi o questionamento feito pelo psicólogo Marcello Rezende, do Núcleo de Saúde do Trabalhador (NUST) da Fiocruz. Ele fez o resgate histórico da saúde mental no trabalho antes da pandemia, apontando que a OMS e organismos internacionais já apresentavam, há duas décadas, o crescimento de distúrbios psicológicos, assim como o Fórum Econômico Mundial, que no último ano abordou a solidão, ansiedade e depressão como riscos para a economia.
Para ele, as mudanças começaram com a Revolução Industrial. O contrato de trabalho ficou mais flexível, passamos a viver de forma mais acelerada, o que afetou nossos modos de agir, pensar e nossas experiências cotidianas. “Cada vez mais é valorizado o instantâneo, transitório e a superficialidade. Aliado a isso, principalmente na última década, as mídias sociais na palma da mão têm gerado uma sobrecarga sensorial que dificulta nossa reflexão sobre questões fundamentais da vida”, explicou. Marcello citou ainda a busca incessante da felicidade em ações que muitas vezes nos distanciam dela e das outras pessoas, associando felicidade ao consumo instantâneo.
O psicólogo citou ainda que, nas últimas duas décadas, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) vem chamando atenção para os riscos psicossociais no trabalho, que, em função das mudanças globais e econômicas, tem cada vez mais reduzido os empregos estáveis e aumentado os empregos temporários e informais. Segundo Rezende, a consequência dessa realidade é um trabalho competitivo com diminuição do apoio social e tensões dentro do emprego, dificuldade maior entre o equilíbrio da vida pessoal e o trabalho, e um número grande de afastamentos por saúde mental.
Para atender as demandas de saúde mental dos colaboradores da instituição, independente do vínculo e incluindo as unidades regionais, a Coordenação de Saúde do Trabalhador (CST) criou uma rede de psicólogos voluntários da equipe, para dar suporte psicológico contínuo para os trabalhadores e familiares durante a pandemia e atendimento psiquiátrico. O pico de atendimentos foi atingido em maio. As principais questões foram as dificuldades com a mudança de rotina e isolamento, além do luto na família. Após cinco meses de distanciamento social, Marcello acredita que o cansaço tem sido o sentimento mais comum neste momento.
“É difícil saber exatamente como o trabalho está afetando nossas vidas agora porque estamos vivenciando uma situação excepcional, com questões pessoais e familiares devido ao isolamento social. É um momento passageiro e não tenho dúvida que não voltaremos ao que éramos antes, no trabalho”, afirmou.
E o depois?
Um nevoeiro ou uma neblina densa e longa no meio da estrada, que se estende mais do que o previsto. Foi assim que a psicóloga do Nust Luciana Cavanellas definiu o momento que estamos enfrentando. “É quando você perde a visão instantaneamente e deixa de enxergar um pouco à frente, mas você precisa continuar. Como agimos? A primeira coisa é testar nossos recursos e usar outros sentidos para ampliar a percepção. Ao mesmo tempo, você se sente conectado com os outros porque todo mundo está vivendo a mesma coisa. Não saber o que vem a frente é muito ruim e angustiante, mas não estamos sós”, descreve.
Luciana disse que nesses momentos a fronteira individualista é rompida e passamos a nos abrir a algo que afeta a todos. Para ela, o que faz as pessoas continuarem é a confiança de que vai passar. “É hora de abrir olhos, nariz e ouvidos, mesmo que protegidos, e descobrir novos modos de seguir, até porque no modo antigo já estávamos cansados, tristes, medicados e adoecidos. Podíamos nos dizer saudáveis antes da pandemia, como indivíduos e como sociedade?”, questionou. Para ela, este é o momento que precisamos pensar em como queremos no mundo, revalorizando a vida e o trabalho e buscando transformar perdas e dores em mudanças, com novos olhares e construção conjunta.
O Brasil atingiu a marca de 100 mil mortes causadas pelo novo coronavírus no último sábado, dia 8 de agosto. Em homenagem e respeito às vítimas da doença, a coordenadora-geral de Gestão de Pessoas (Cogepe), Andrea Carvalho, pediu um minuto de silêncio. “Não podemos minimizar e nem normalizar essas mortes. Cada vida para nós importa. É importante lembrar e fazer uma homenagem, porque esta situação é absurda”, ressaltou.
O luto foi um dos temas abordados durante a live. A diretora da Fiocruz Brasília destacou que este deve ser considerado um problema de saúde pública. Ela lembrou de uma das ações realizadas pelo Serviço de Gestão do Trabalho (Segest) da Fiocruz Brasília, a roda de conversa “Conviver com o luto”, com a psicóloga Elaine Alves, doutora e pós-doutora com ênfase em perdas e lutos, emergências e desastres pela Universidade de São Paulo (USP). Elaine abordou as diferentes situações e tipos de luto, em contextos mais particulares e que atinge, atualmente, populações inteiras. Saiba mais sobre o evento aqui