Do preconceito ao protagonismo: evento aborda desafios e contextos da saúde mental

Nathállia Gameiro 22 de fevereiro de 2019


Nathállia Gameiro

 

Núcleo de Saúde Mental Álcool e Outras Drogas, da Fiocruz Brasília, apresentou pesquisa sobre o protagonismo dos usuários nos CAPS do DF

 

“Nosso objetivo não tem que ser a cura, tem que ser a autonomia e o autocuidado do usuário”, destacou o sociólogo Paulo Delgado durante a abertura da II Jornada Acadêmica de Saúde Mental Interdisciplinar, em que participaram profissionais de saúde, residentes, usuários da Saúde Mental e familiares. O evento foi realizado nos dias 21 e 22 de fevereiro na Universidade de Brasília (UnB) campus Ceilândia, por estudantes da Residência Multidisciplinar em Saúde Mental da Escola Superior de Ciências da Saúde (Escs). Pesquisadores do Núcleo de Saúde Mental Álcool e Outras Drogas, da Fiocruz Brasília, integraram mesas de debate e a comissão científica do evento.

 

Da política ao cuidado pela família. Esses foram alguns pontos destacados por Delgado, ex-deputado federal e autor da Lei 10.216/2001, conhecida como Lei da Reforma Psiquiátrica, que redireciona o modelo de atenção em saúde mental, afastando-se das internações psiquiátricas para o cuidado em liberdade e garantindo proteção e direitos aos pacientes portadores de sofrimento mental. Paulo lembrou que foram mais de 30 anos de debate até a formulação da lei, que passou por diferentes governos em seus 18 anos de existência. 

 

O sociólogo lembra que as pessoas com transtorno mental ainda sofrem com o julgamento da sociedade, e por isso muitos defendem o tratamento com internações. Para ele, antes de falar é preciso conhecer primeiro o hospício, pois sem conhecer, não é possível entender o grau de aniquilamento pelo qual o interno passa. “O doente mental é parte da sociedade e nenhuma autoridade médica, judiciária ou policial pode estar instituído do poder de tirar dele a cidadania. A doença não interdita a cidadania de ninguém”, ressaltou. Ele defende que o tratamento é mais efetivo perto da família do que dentro de uma instituição fechada e lembrou que os profissionais de saúde precisam oferecer cuidado e acolhimento também aos familiares.

 

O tratamento feito apenas com medicamentos foi outro ponto criticado por Delgado. “Água com açúcar dado com amor às vezes faz mais efeito que remédio dado com desprezo”, disse. Para ele, a sociedade está adoecendo sem perceber por causa da pressão da vida.  “Há a ideia de que um problema mental corresponde ao circuito: doença, bactéria, droga, leito, cama e isolamento. Esse roteiro é equivocado no tratamento de doença mental porque ela não é contagiosa. A medicina quando é de mercado, é de matar”, completou.

 

Durante as mesas de debate, dois nomes importantes da Reforma Psiquiátrica foram lembrados: Franco Basaglia e David Capistrano por sua coragem e ousadia de liderar uma mudança na abordagem do sistema de saúde mental.

 

Franco, um psiquiatra italiano, dirigiu um hospital psiquiátrico e foi precursor do movimento de reforma psiquiátrica italiano conhecido como Psiquiatria Democrática, para  transformar os estabelecimentos de internações em comunidade terapêutica. A Lei nº 180, de 1978, conhecida como Lei Basaglia, estabeleceu a abolição dos hospitais psiquiátricos na Itália e está vigente atualmente. 

 

Os resultados na Itália influenciaram uma geração de profissionais da saúde mental no Brasil. O político e médico David Capistrano, foi um dos mais ativos participantes na luta por um novo modelo assistencial em Saúde Mental e defensor da política pública que estabelecia o usuário como protagonista. Em 1989, ele fechou o primeiro hospital psiquiátrico do Brasil, a Casa de Saúde Anchieta, hospital de 200 leitos cadastrados e quase 500 internos.

 

“Não falem de nós sem nós”

 

Durante o evento, a psicóloga Bárbara Coelho Vaz, do Núcleo de Saúde Mental Álcool e Outras Drogas da Fiocruz Brasília, apresentou pesquisa realizada pela Fiocruz Brasília sobre o protagonismo dos usuários nos CAPS do DF. O estudo levantou as principais barreiras e facilitadores da implementação de ações e estratégias de fortalecimento do protagonismo e de garantia de direito dos usuários desenvolvidas em dois CAPS voltados ao cuidado de pessoas com sofrimento mental grave.

 

A frase “Não fale de nós sem nós”, lema dos usuários da Rede de Atenção Psicossocial, foi citada com a intenção de trazer para o centro da pauta uma discussão teórica e clínica do manejo e cuidado discutidos sem ouvir os usuários.

 

A falta de espaços de diálogo e o não reconhecimento do protagonismo dos pacientes por alguns trabalhadores foram barreiras encontradas durante a pesquisa. “Doeu ver que as pessoas estão tão envolvidas nos seus processos e cotidiano, na complexidade de trabalho e com a precariedade de serviços, que isso transpassa esses momentos. As pessoas deixam para lá coisas como o protagonismo. Produzir protagonismo demanda trabalho, atenção e disponibilidade”, explicou. Outra barreira citada por Bárbara foi o excesso de proteção da família dos usuários, que acaba o impedindo de realizar tarefas, o que dificulta que ele assuma a autonomia da vida.

 

Para ela, o protagonismo precisa estar claro e destinado ao processo de cuidado, já que não é possível falar de cuidado sem os usuários, sem dar voz e ouvir o que eles querem falar.

 

O usuário do CAPS e participante da pesquisa José Alves, também integrou a mesa de debate. Ele contou que durante a pesquisa sentiu que ocupou o lugar de cidadão na sociedade, como as outras pessoas. “Por muito tempo a gente só assistia e não podia falar. Durante a pesquisa as pessoas quiseram me ouvir. Sem nós não existe saúde mental, falar disso sem a gente não faz sentido. Sabemos o que queremos”, disse.

 

Pelo fim dos manicômios

 

As mudanças na Política Nacional de Saúde Mental pela Portaria aprovada em dezembro de 2017 durante reunião da Comissão Intergestores Tripartite (CIT) e pela Nota Técnica Nº 11/2019 do Ministério da Saúde foram elencadas como desafios para o setor.

 

Para o perito no Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) e membro do Movimento Pró-Saúde Mental do DF, Lúcio Costa, a portaria e a nota técnica são frágeis porque estão em contradição com as principais legislações: a Lei 10.2016, a Lei de Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência e a Convenção sobre o Direito das Pessoas com Deficiência. Ele afirma que a Portaria traz o manicômio de volta à rede de saúde.

 

A psicóloga e analista técnica do Núcleo de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas da Fiocruz Brasília, Adélia Capistrano, afirma que os profissionais da área não podem paralisar diante do medo e da crise, que considera potências para a mudança. “Precisamos nos posicionar. Em momentos como este, grandes reformas foram feitas anteriormente”, lembra.

 

Milhares de olhares imploram socorro na esquina. No morro, a fila anda a caminho da guilhotina. Vários ‘queima de arquivo diária’ com a fome, que vão amontoando ‘os corpo’ de quem não tem sobrenome”. O trecho da música Triunfo, dos cantores Criolo e Emicida, foi lido pelo psicólogo Lúcio Costa para reforçar as críticas aos hospitais psiquiátricos e disse ser essa a realidade desses locais: pessoas que perdem suas identidades aglomeradas em um local.

 

Ele denuncia irregularidades encontradas durante uma inspeção nacional nesses estabelecimentos, como maus-tratos, falta de higiene e estrutura, tortura, cárcere privado, pacientes amarrados em macas ou em cadeiras de rodas (com amarras feitas com lençóis) ou com camisas de força em novo formato: feitas de gesso, pacientes que recebem uma quantidade excessiva de medicamentos durante o dia inteiro, equipamentos de eletrochoque sem permissão, além de pacientes que estão residindo nos locais há anos. A legislação 10.2016 proíbe a internação desses pacientes em unidades com caráter asilar.

 

“O hospital que funcionava na década de 80 é o mesmo que funciona hoje. Dentro de um hospital que fiscalizamos, tinha um velório. O indivíduo é institucionalizado de maneira ilegal e quando morre vai para um velório preparado pelo próprio hospital”, contou.

 

Para Costa, a mudança na política não está só associada a questões técnicas, mas atende a interesses econômicos, visando apenas o lucro. Até a década de 90, 93% do orçamento da União era destinado aos hospitais psiquiátricos. Hoje, existem 130 hospitais psiquiátricos habilitados no país, 113 em funcionamento. Destes, 64 são privados e alguns recebem verbas do Sistema Único de Saúde (SUS) por meio da Rede de Atenção Psicossocial.

 

A Nota Técnica nº 11/2019 autoriza, entre outros procedimentos, a compra de aparelhos para aplicação de eletrochoque para o tratamento de pacientes com distúrbios mentais.  “O texto é preocupante, nem de longe a eletroconvulsoterapia é o melhor procedimento para o tratamento dos pacientes. Esse método era usado como tortura na época nazista. Dentro da perspectiva médica não há consenso também sobre os efeitos colaterais desses equipamentos”, explica.

 

O psicólogo destaca também a preocupação com a priorização de investimento da compra de equipamentos, ambulatórios e hospitais psiquiátricos em detrimento do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS). Lúcio criticou também a possibilidade de internação de crianças e adolescentes prevista na nota técnica do Ministério da Saúde.

 

Fotos: Nathállia Gameiro e Francisco Jorlean