“É fundamental construir com a comunidade um diálogo e alternativas de cuidado”

Fernanda Marques 14 de maio de 2021


Para medidas efetivas de enfrentamento à Covid-19, em vez de receitas do que as pessoas devem ou não fazer, é necessário investir no diálogo entre as comunidades, as instituições de ciência e os serviços de saúde. Só assim é possível construir ações compartilhadas que, de fato, respondam às demandas da população, levando em conta as situações de vida e as especificidades de cada território. A vigilância popular em saúde, a epidemiologia comunitária e a pedagogia do cuidado são caminhos que conduzem a esse diálogo e, apesar dos nomes diferentes, na verdade, todos esses conceitos se referem, basicamente, à aplicação dos conhecimentos da saúde pública. É o que afirma o coordenador do Programa de Promoção da Saúde, Ambiente e Trabalho (PSAT) da Fiocruz Brasília, Jorge Machado.

 

Jorge avalia que, além do estímulo ao autocuidado, é preciso garantir o direito à saúde de forma ampliada, o que inclui o direito ao trabalho, à moradia, ao saneamento e à educação, entre outros. Destaca também a importância da organização da sociedade e o papel das associações comunitárias na construção de territórios saudáveis e sustentáveis. Comenta, ainda, como a articulação comunitária e institucional pode contribuir para a reorganização dos serviços da Atenção Primária à Saúde, a equidade da vacinação de grupos vulnerabilizados, o fortalecimento do SUS e um novo modelo de economia mais solidária. Confira a seguir em mais uma entrevista da série “Fala aê, pesquisador”.

 

Por que apenas massificar mensagens como “fique em casa”, “lave as mãos” e “use máscara” não é suficiente para engajar as pessoas na prevenção à Covid-19?

Jorge Machado: A área da saúde, em geral, ainda tem esse viés institucional de uma ação prescritiva, às vezes até imperial, de receitar para as pessoas o que elas devem ou não fazer. Na pandemia, temos falado muito da importância de escutar a ciência, mas ainda produzimos e reproduzimos uma ciência que não se conecta com a população. O cuidado pessoal é relacionado com as situações de vida. Se a ciência produz uma prescrição que não está contextualizada, ela não terá efeito e, às vezes, pode ocorrer uma rejeição da informação científica. Se a mensagem não dialoga com o contexto de vida das pessoas e elas percebem que não conseguem alcançar aquele ideal recomendado, elas vão em busca de alternativas mais fáceis, dentro das suas possibilidades, o que pode torná-las vulneráveis a informações que não são corretas.

 

Existem outras formas de comunicar. No Brasil, existe toda uma discussão da educação popular em geral e da educação popular em saúde. Temos a pedagogia contextualizada e emancipatória, de Paulo Freire, e toda uma construção de informação e formação que é dialogada. Existe uma política de educação popular em saúde, que deveria estar sendo mais acionada neste momento. A pedagogia do cuidado é resultado dessa reflexão, uma forma de olhar e construir medidas de proteção com a educação popular, a ciência e uma epidemiologia comunitária. São medidas construídas de forma compartilhada, a partir de uma informação epidemiológica voltada para uma ação de cuidado, ancorada na realidade local, na dinâmica da doença naquele território, sua transmissão, riscos e situações críticas na comunidade.

 

Como lidar, por exemplo, com a situação de pessoas que precisam sair de casa para trabalhar?

Jorge Machado: Temos que olhar cada caso e ir integrando as ações. Se as pessoas têm que sair de casa para trabalhar, é preciso discutir a trajetória até o trabalho, e construir uma proteção no transporte público, considerando o pulsar da cidade e a circulação das pessoas, algo central na transmissão da doença. Uma epidemiologia do cuidado deve organizar uma ação de proteção e de redução da transmissão que considere a necessidade de circulação das pessoas. Tem que haver medidas de proteção no transporte público, como, por exemplo, aumentar a quantidade de ônibus e metrô, e fazer a testagem de motoristas e cobradores. Mas o que vimos, em alguns lugares, foi o contrário: redução da frota, demissão de trabalhadores e pessoas indo trabalhar doentes, sem direito à quarentena. Essa discussão sobre proteção social precisa ser feita.

 

Principalmente nos terminais rodoviários, onde existe grande concentração de pessoas indo e vindo, pode-se distribuir máscaras, instalar pontos de lavagem das mãos e ofertar produtos de higiene. Se a pessoa não tem dinheiro para adquirir esses produtos, eles podem ser distribuídos pelo poder público, inclusive a partir de uma produção que estimule a economia popular, gerando renda nas periferias. Houve iniciativas assim em vários locais, em um processo articulado entre proteção e ação social.

 

O debate sobre a abertura das escolas deveria seguir esse mesmo princípio?

Jorge Machado: A escola precisa estar protegida, por exemplo, com protocolos definidos de testagem dos professores e de comunicação caso alguém fique doente, e vigilância de quem teve contato com a pessoa que adoeceu. Esses protocolos deveriam ser discutidos no comitê de pais e mestres, mas eles não foram devidamente acionados. A própria inclusão digital, a formação dos professores e várias outras alternativas de intervenção protetora não foram construídas de uma forma dialogada e compartilhada, ficando o debate limitado ao abre e fecha a escola. Isso não funciona, deixando a escola permeável à transmissão. Toda vez que se flexibiliza, sem um debate ampliado e integrado sobre medidas de controle viáveis e constantes, os casos aumentam.

 

O foco da discussão, então, passa a ser o direito constitucional à saúde?

Jorge Machado: É preciso garantir o exercício do direito à saúde de forma ampla, o que inclui o direito à educação, ao transporte, ao trabalho digno, à habitação, ao acesso à agua em quantidade e qualidade adequada etc. Em relação ao direito à moradia, ainda temos um grande déficit no Brasil. O que se faz em política pública localizada para essas populações que, sabidamente, não têm acesso à moradia adequada? Muito se fala do surgimento de novas cepas. Mas o déficit de moradias, associado à aglomeração e à falta de acesso à agua, aumenta a transmissão do vírus e, consequentemente, o risco de aparecimento de uma nova cepa.

 

O direito à saúde é um direito que está na Constituição, é um dever do Estado. Existe hoje um debate sobre judicialização, mas o que está sendo judicializado? Recorre-se à Justiça por causa dos decretos que abrem e fecham o comércio, mas não para a construção de ações articuladas de enfrentamento à pandemia. Não se entra a fundo na discussão da reorganização da Atenção Básica junto com a ação comunitária e a epidemiologia. E é isso que temos buscado fazer na Picaps: aproximar a ação da epidemiologia, no território, com a Atenção Primaria à Saúde.

 

Essa seria uma ação dentro da pedagogia do cuidado?

Jorge Machado: É fundamental construir com a comunidade um diálogo e alternativas de cuidado. Essa interface é possível, por exemplo, a partir da Atenção Primária, com os agentes comunitários de saúde, e a partir dos grupos organizados das periferias. Aqui no Distrito Federal muitos grupos foram acionados, em uma ação que ainda não é totalmente articulada, mas pode ser, dentro da lógica da pedagogia do cuidado, considerando a distribuição da doença e seus condicionantes na comunidade. O doente é um indivíduo que precisa ser cuidado e não uma ameaça. Temos visto pessoas que negam estar com sintomas, para não serem segregadas ou porque não têm direito à quarentena, e precisam trabalhar. A pedagogia do cuidado aborda essas situações, junto com as pessoas e comunidades, fazendo o diálogo entre o serviço de saúde e o território, com base na educação popular em saúde e na epidemiologia, organizando várias formas possíveis de proteção, e trabalhando cada questão identificada.

 

Questões, inclusive, de saúde mental. As mulheres, especialmente, têm tido uma sobrecarga durante a pandemia, com o trabalho, a casa e as crianças, e muitas ainda enfrentam a violência doméstica. A pedagogia do cuidado lida com os problemas e as necessidades de saúde a partir da comunidade. Nos lugares em que essa interface com a comunidade foi acionada, nós vemos resultados concretos de redução da mortalidade, geração de renda e articulação com os serviços, não só de saúde, mas de assistência social, educação e outros.

 

E o que seria a epidemiologia comunitária?

Jorge Machado: No Brasil, existe uma informação em saúde bastante consolidada, e isso é uma das fortalezas do SUS. Mas, além dessa informação existente, existe outra informação necessária, ligada à escala comunitária, e que se direciona para as populações. Em geral, no fluxo tradicional de informação, o registro de um óbito causado pela doença vem de um serviço de saúde e vai subindo para uma secretaria municipal de saúde, uma secretaria estadual e chega ao nível nacional. Esse fluxo é importante, mas ele não tem agilidade para gerar uma ação local. Por isso, é fundamental a informação local destinada ao próprio local, sendo usada pelo território para construir uma ação comunitária, que transforme aquela realidade. A epidemiologia, por definição, trata da distribuição de agravos e seus determinantes, o que ajuda na organização de sistemas de saúde. Mas, se essa discussão dos agravos e seus determinantes é feita apenas a partir daquela consolidação de dados que vai subindo, e se ela nunca se volta para a comunidade, então o sistema não se organiza a partir das necessidades da população, inclusive no que se refere às articulações intersetoriais.

 

Os organismos que trabalham indicadores sociais e econômicos sinalizam de forma bastante clara a existência de zonas de vulnerabilidade, mas, para fazer uma intervenção que reduza essa vulnerabilidade, é preciso uma informação mais comunitária, discutida com a população local, para construir alternativas de ação efetiva em um determinado território, levando em conta suas especificidades. A epidemiologia comunitária, popular ou crítica é epidemiologia na sua essência, só que aplicada nas comunidades, na discussão das vulnerabilidades. Os territórios, sobretudo os mais vulnerabilizados, têm necessidade de uma informação que não seja uma média, mas que aponte o foco dos problemas, sua heterogeneidade e seus aspectos críticos, para que se possa construir uma ação individualizada, sob medida para enfrentar as questões de cada localidade. As ações de vigilância popular em saúde, que movem essa epidemiologia e integram a pedagogia do cuidado, precisam ter um reconhecimento institucional. Os nomes são diferentes, mas, basicamente, isso é saúde pública, nada além de uma aplicação dos conhecimentos da saúde pública.

 

Em todos essas processos, é fundamental a organização da sociedade?

Jorge Machado: Onde existe algum tipo de ação comunitária funcionando, é porque houve uma oportunidade de organização ou já havia essa organização de associações comunitárias. A porta de entrada da ação é a comunidade que se organiza e a instituição que se abre ao diálogo e às demandas comunitárias. A Fiocruz, por exemplo, lançou um edital específico para o fomento de ações comunitárias e um dos projetos contemplados foi aqui da Estrutural. Essas redes comunitárias estão sendo construídas e é por isso que a pandemia não é um problema ainda maior. Mas, para funcionar, é preciso uma questão mobilizadora, organização e algum tipo de relação institucional, para conferir maior escala e sustentabilidade à ação e fomentar políticas públicas.

 

O Conselho de Saúde do Distrito Federal, por exemplo, construiu um plano popular de combate à pandemia. Existe também um comitê na Câmara Legislativa do Distrito Federal que tem contribuído para essa discussão comunitária. Há várias iniciativas e espaços, mas não é fácil. São anos de uma ação institucional muito distanciada da comunidade. Muitas vezes, a construção de uma solução não é compartilhada: a comunidade tem uma demanda, a resposta institucional que se oferece não é adequada, e a demanda é forçada a se encaixar artificialmente na resposta existente, o que gera um desgaste dessa relação. A saída real é uma saída para um novo modelo de economia, de habitação, de relações sociais, de fortalecimento da escola, de melhoria do transporte – necessidades sociais que já estavam colocadas desde antes da pandemia. Mas a transformação não vem como mágica. Sendo otimista, vejo a perspectiva de uma nova ordem, com aumento do acesso e da ação comunitária.  

 

Como essa ação comunitária organizada pode contribuir, por exemplo, para a vacinação?

Jorge Machado: Além dos grupos de risco universais, existem os grupos de risco locais, das áreas vulnerabilizadas, e isso não foi discutido nos planos de vacinação. Foram priorizadas algumas populações em vulnerabilidade, como indígenas, quilombolas e ribeirinhos, mas não as populações vulnerabilizadas das periferias. Os idosos das periferias não têm acesso a drive thru e, em alguns locais, a vacinação começou com drive thru. Por meio de um radar de vacinação, a Picaps busca fazer o acompanhamento da cobertura vacinal de grupos de maior vulnerabilidade, dentro dos grupos de maior risco já estabelecidos, como os idosos das periferias, visibilizando esses indivíduos que têm mais dificuldade de ir ao posto de vacinação e tomar as duas doses. Se verificada uma baixa cobertura vacinal dessas pessoas, pode-se estabelecer estratégias como unidades móveis de vacinação ou outras medidas que assegurem a equidade de acesso à vacina.

 

A ação comunitária contribuiria para assegurar a vacinação de populações mais vulnerabilizadas?

Jorge Machado: Existe uma prioridade de vacinação dos idosos devido a um risco bastante real de Covid-19 nas faixas etárias mais altas. Entretanto, nível de renda baixo é um risco tão significativo quanto faixa etária elevada. E o nível de renda baixo potencializa muito fortemente o risco relacionado à faixa etária elevada. Os idosos mais pobres deveriam ser priorizados – a prioridade dentro da prioridade. O nível de pobreza continua sendo o maior extrato de identificação de situações de risco. É muito diferente a situação de risco de uma pessoa que ganha acima de cinco salários mínimos e de outra que ganha menos que um. Essas pessoas já deveriam estar sendo priorizadas no serviço de saúde há muito tempo. O radar de vacinação é uma possibilidade de acompanhamento desses grupos de maior risco e vulnerabilidade.

 

Nesse contexto, como substituir aquelas mensagens prescritivas por uma comunicação mais efetiva?

Jorge Machado: Precisamos de uma comunicação que tenha a intenção de dialogar com os diferentes estratos da população – e não se fala com idosos e jovens de periferia da mesma maneira. Esse diálogo tem que ser iniciado a partir daquilo que mobiliza, interessa e é necessário para as pessoas. Os caminhos da informação e da participação são diferentes em cada grupo, em cada região, e é necessário que a comunicação e sua linguagem sejam permeáveis a esses caminhos comunitários. A informação epidemiológica tem um diálogo midiático, que mostra o número de casos, a curva, a geopolítica dos insumos; falta uma comunicação da epidemiologia mais voltada para a população, que discuta os contextos e soluções mais estruturantes para os problemas, até porque saídas que deram certo em um lugar podem não ter nenhuma viabilidade em outro. Se vigilância é informação para ação, a comunicação é parte ativa e imprescindível para a difusão da informação e para a integração dos diferentes atores e processos.

 

Para conhecer mais sobre a temática, acesse o documento “Territórios Saudáveis e Sustentáveis no Semiárido Brasileiros: vigilância popular em saúde em tempos de pandemia”, fruto de um curso livre organizado pela Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA) e pela Fiocruz Brasília.

 

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