Ela é a equipe de Consultório na Rua, uma equipe de Atenção Básica específica para o atendimento da população em situação de rua no Sistema Único de Saúde (SUS). Atualmente, existem 171 dessas equipes atuando em todo o país, com aproximadamente 1.500 trabalhadores, entre enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais, médicos, dentistas, profissionais de educação física e de arte e educação, entre outros. Criadas em 2011 pela Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), essas equipes foram alvo da pesquisa de doutoramento do psicólogo sanitarista Marcelo Pedra, pesquisador do Nupop (Núcleo de Pesquisa Pop Rua) da Fiocruz Brasília.
Defendida em abril deste ano no Instituto de Medicina Social da Uerj, a tese discute objetivos, resolutividade e critérios de monitoramento e avaliação das equipes de Consultório na Rua, em âmbito nacional. O pesquisador estudou documentos e a literatura científica disponível sobre o tema; analisou dados dos prontuários eletrônicos da Atenção Básica (e-SUS AB); e conversou com pesquisadores, gestores, trabalhadores e usuários das equipes. Nesta entrevista da série “Fala aê, pesquisador”, Marcelo Pedra compartilha não só os resultados da tese, como também a experiência de quem já atuou como trabalhador e na gestão de equipes de Consultório na Rua, destacando a potência e os desafios dessas equipes.
Qual o perfil da população em situação de rua hoje no Brasil?
Marcelo Pedra: Sem dúvida, a maneira mais adequada é falar em populações, no plural. Em que pesem todos os elementos da exclusão social brasileira – uma população predominantemente negra, masculina e com baixa escolaridade –, esses dados podem simplificar a questão, como se fossem capazes de explicar o fenômeno da rua de uma maneira geral. Na Política Nacional para a População em Situação de Rua, de 2019, fala-se em uma população em situação de pobreza extrema, rompimento de laço familiar e sem moradia convencional. Os termos usados ainda são muito moralizados. Qual o valor intrínseco do vínculo familiar? Em um país com tantas favelas e periferias, o que é uma moradia convencional? A pesquisa nacional de 2008 mostrou que mais de 70% da população em situação de rua exerciam alguma atividade remunerada, quase 52% tinham familiar na cidade onde estavam em situação de rua e 81% tinham alguma alimentação no dia – a qualidade dessa alimentação é, certamente, discutível. De qualquer modo, esses dados sugerem que voltar para casa, para suas famílias, talvez não seja interessante para muitas dessas pessoas. A gente precisa adensar a discussão e rever conceitos, inclusive o conceito de trabalho e sua relação com o mesmo: afinal, já antes da pandemia, somente 40% dos brasileiros tinham a retaguarda da CLT, a chamada carteira assinada.
No seu trabalho, você destaca que a atenção à saúde das populações em situação de rua é uma política pública e não uma ação assistencialista.
Marcelo Pedra: Sim, é fundamental se deslocar dessa lógica assistencialista. Mesmo existindo equipes de Consultório na Rua, que são equipes específicas, os indivíduos em situação de rua, assim como eu e você, são usuários SUS como um todo. As equipes de Saúde da Família, as Unidades Básicas de Saúde, os Centros de Atenção Psicossocial, os ambulatórios, os hospitais: todos têm que estar atentos à população em situação de rua. As equipes de Consultório na Rua integram a Atenção Primária à Saúde, que é aquela que está no território, próxima da vida das pessoas. Então, quando se cria uma equipe de Consultório na Rua, isso não significa que as outras equipes de Saúde da Família não vão precisar atender à população em situação de rua. A Fiocruz Brasília, por meio do Nupop, e a UNA-SUS acabaram de fazer um curso para profissionais de Saúde da Família sobre o cuidado com a população em situação de rua: não foi um curso para equipes de Consultório na Rua, mas para as outras equipes, porque precisamos dessa formação no SUS de maneira geral.
As equipes de Consultório na Rua estão na Atenção Primária à Saúde, porém têm uma ligação histórica com a área de Saúde Mental. Isso representa um desafio para um cuidado integral à saúde das populações em situação de rua?
Marcelo Pedra: A criação das equipes de Consultório na Rua bebeu em duas fontes: na Atenção Primária à Saúde, com as equipes de Saúde da Família sem Domicílio, em São Paulo, Belo Horizonte e Rio de Janeiro; e na Saúde Mental, com a experiência capitaneada, sobretudo, pelo Centro de Estudos e Terapia do Abuso de Drogas da Universidade Federal da Bahia (CETAD/UFBA). Em 2011, ocorreu a junção dessas duas experiências, dentro da Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), sobretudo por um pleito do Movimento Nacional da População em Situação de Rua, que defendia que situação de rua não era só problema de drogas. A prevalência é alta, mas é fundamental falar em atenção integral à saúde, pois, do contrário, podemos reforçar preconceitos em relação às pessoas e à relação com álcool e outras drogas.
Qual o papel do Movimento?
Marcelo Pedra: Ele é muito forte em alguns lugares, como em São Paulo, onde vivem 25% da população brasileira em situação de rua do Brasil. Foi lá que o Movimento começou a se estruturar e, hoje, ele tem outros polos importantes, como Bahia, Minas Gerais e Rio Grande do Norte. Eles estão envolvidos agora, por exemplo, com a construção de um plano de vacinação contra a Covid-19 da população em situação de rua. O Movimento é muito bem articulado nacionalmente, e ocupa cadeiras no Conselho Nacional de Saúde, por exemplo. Ele é representado, em geral, por pessoas que já estiveram em situação de rua e não estão mais, mas continuam atuando junto a essa população e conhecem suas demandas.
As equipes de Consultório na Rua têm conseguido ofertar um cuidado integral em saúde?
Marcelo Pedra: Questões com muita prevalência nas populações em situação de rua e em outras populações vulnerabilizadas, como tuberculose, infecções sexualmente transmissíveis, diabetes e hipertensão, praticamente não aparecem nos registros dos prontuários eletrônicos das equipes de Consultório na Rua. O registro de população vacinada pelas equipes também é muito baixo. No período que estudei, entre 2019 e 2020, o atendimento das equipes de Consultório na Rua foi praticamente todo dedicado a problemas de saúde mental, com destaque para aqueles relacionados com álcool e outras drogas. Isso sem dúvida é um traço da transição da Saúde Mental para a Atenção Primária. Mas o trabalhador da Atenção Primária ainda não se apropriou dessa agenda. E isso tem muito a ver com um preceito moral: o trabalhador da saúde, quando vê alguém sob o efeito de uma substância psicoativa ou quando ouve de uma pessoa que ela tem problemas com drogas, toda a atenção se volta para esta situação. Quando você olha a curva dos dados, parece que praticamente só tem gente com problema com álcool e outras drogas. Esse aspecto também surgiu nas entrevistas com pesquisadores, gestores, trabalhadores e usuários.
Os usuários dos serviços das equipes de Consultório na Rua também têm essa percepção?
Marcelo Pedra: Sim, este aspecto também aparece na fala dos usuários. Eles percebem isso na forma como são tratados pelos trabalhadores, como se a rua fosse sinônimo de droga. Percebem que as equipes estão mais atentas às questões relacionadas às drogas do que às demais questões de saúde.
E como os trabalhadores se veem nesse processo?
Marcelo Pedra: “Nós somos tão discriminados quanto a população que a gente atende”. Esta frase surgiu muito nas entrevistas. O gestor também se sente assim. O coordenador das equipes de Consultório na Rua, que fica na Secretaria Municipal de Saúde, reclama que, se vai ter uma reunião para conhecer a Rede Cegonha, todo mundo será convidado, mas não vão se lembrar de chamá-lo, porque acreditam que, para a população em situação de rua, esse tema não é relevante, embora as mulheres já representem 35% da população em situação de rua (em 2008, esse percentual era de 12%). O trabalhador da equipe de Consultório na Rua não se sente inserido na Atenção Básica, de fato. Ele diz que fica como um corpo estranho na Unidade Básica de Saúde.
Qual o impacto dessa não inserção?
Marcelo Pedra: No Brasil inteiro, por exemplo, existem somente 16 dentistas atuando em equipes de Consultório na Rua, quase todos na Região Sudeste. A equipe de Consultório na Rua não tem um dentista, mas a sua Unidade Básica de Saúde (UBS) tem um dentista. Se, como trabalhador da equipe de Consultório na Rua, eu não me sinto integrado à Unidade, eu não me autorizo a ir bater na porta daquele dentista da UBS e tentar marcar uma consulta para um usuário, o que deveria ser um manejo corriqueiro, cotidiano.
Como são feitos os encaminhamentos entre os serviços?
Marcelo Pedra: Em teoria, só devo encaminhar um paciente quando eu tiver certeza absoluta que a minha equipe de Consultório na Rua já realizou todo o cuidado que era possível e ela não tem mais o que ofertar para aquele caso. No entanto, surgiu nas entrevistas que, muitas vezes, os usuários não são atendidos pela equipe de Consultório na Rua, sendo apenas conduzidos para atendimento por outros serviços. A pesquisa demonstrou que a resolutividade dessas equipes ainda é pequena, infelizmente. Se a equipe atua em um território onde há muitas gestantes, ela tem que cuidar do pré-natal, em vez de somente encaminhar as grávidas para outra equipe de Saúde da Família. Os encaminhamentos, quando necessários, deveriam funcionar como um compartilhamento do cuidado, mas não é assim que acontece ainda. E isso é fruto de uma baixa resolutividade das equipes de Consultório na Rua.
Como seria esse compartilhamento do cuidado?
Marcelo Pedra: Por exemplo, sou psicólogo de uma equipe de Consultório na Rua e tenho um usuário em sofrimento psíquico. Já estou em atendimento individual com ele na rua e na Unidade Básica de Saúde. Ele já participa de uma atividade em grupo que eu faço com música, mas ainda não está bem. Então, me dirijo ao Centro de Atenção Psicossocial e converso com os colegas, avaliamos a necessidade de uma consulta com um psiquiatra e outras alternativas para atender melhor àquele usuário. Aí eu estou compartilhando o caso, e não apenas encaminhando. Mas é raro isso acontecer. Em geral, é feito só o encaminhamento mesmo. E o usuário, muitas vezes, ainda enfrenta o preconceito do serviço para o qual ele é encaminhado, onde nem sempre o deixam entrar, e essa questão apareceu nas entrevistas. Por isso, as equipes de Consultório na Rua, em geral, optam por levar o usuário até o outro serviço, para ir construindo essa relação. Mas as equipes de Consultório na Rua não devem ser como uma “porta giratória”, que roda e vai entregando demandas para outros serviços. Elas devem ser como pontes, que não somente ligam, como fazem o trajeto junto com os outros serviços.
Como é o vínculo dos trabalhadores com o território?
Marcelo Pedra: A rotatividade de profissionais nas equipes de Consultório na Rua é hoje muito menor do que há 10 anos. Os trabalhadores têm maior clareza e consciência da atividade com a população em situação de rua e, no vínculo com o território, destacam-se em relação a outras equipes de Saúde da Família. Podem existir algumas lacunas na perspectiva técnica, mas a maioria dos trabalhadores está ali porque quer estar; existe uma militância também. O vínculo das equipes de Consultório na Rua com a população e o território, em sentido amplo, é muito forte. Por exemplo, um usuário precisa fazer uso de uma medicação diariamente observada (como no caso do tratamento da tuberculose), mas a equipe não consegue estar com ele todos os dias; então, o trabalhador deixa o medicamento em um restaurante ou em uma loja onde aquela pessoa costuma ir para receber uma refeição ou beber água. É muito valioso esse vínculo das equipes com o território, os usuários, os lojistas, a população domiciliada etc.
Existem hoje 171 equipes de Consultório na Rua. Esse número é suficiente?
Marcelo Pedra: Não, certamente não. Em março de 2020, antes da pandemia, foi feita uma estimativa de 220 mil pessoas em situação de rua no Brasil. Cada equipe é para até mil usuários. Ou seja, pelo regramento das portarias, deveriam ser, pelo menos, 220 equipes. Mas, com a Covid-19 e suas consequências, o número de pessoas em situação de rua aumentou. A gente vê isso nas ruas. Mas não há dados sobre o impacto da Covid-19 nessa população. Infelizmente, não temos nem um censo. Isso só reforça a invisibilidade dessas pessoas.
Faltam equipes. E o que se pode afirmar sobre a composição dessas equipes?
Marcelo Pedra: Já comentei a falta de dentistas. Outro aspecto é que as equipes de Consultório na Rua são atualmente um espaço hegemonicamente de enfermeiros e técnicos de enfermagem, muito mais do que psicólogos, por exemplo, apesar das questões proeminentes de saúde mental. A presença do médico é também um elemento que faz diferença. Se, por um lado, a equipe que tem médico é mais resolutiva, por outro, essa equipe tende a reduzir o seu trabalho à agenda do médico. A ênfase nos aspectos biomédicos do atendimento não é uma cultura trazida só pelo médico; os trabalhadores das outras categorias também fomentam isso. Estas são questões que estão colocadas atualmente para a discussão da composição destas equipes.
Além da resolutividade, sua pesquisa também analisou os objetivos das equipes de Consultório na Rua. O que os entrevistados indicam como objetivos das equipes?
Marcelo Pedra: O único objetivo que tem algum grau de convergência entre os entrevistados é o acesso, infelizmente. Na fala dos usuários, inclusive, aparece que o acesso já seria suficiente, e isso é muito ruim. Como se o acesso não precisasse estar associado à resolutividade. Para o usuário, a fragilidade é tão grande que só estar no serviço já é visto como muita coisa. Mas é fundamental que ele esteja no serviço e tenha seu problema resolvido.
Quais recomendações você faz a partir dos resultados da pesquisa?
Marcelo Pedra: É fundamental cadastrar a população em situação de rua no SUS. Em julho de 2020, havia 98,5 mil pessoas cadastradas, o que representava em torno de 45% dessa população. Sem esse cadastro, não se consegue dar visibilidade nem estruturar as ações de saúde. Outro ponto é uma formação em saúde, na base, que considere a população em situação de rua. Aqui na Fiocruz Brasília, como parte da Residência Multiprofissional em Atenção Básica, é obrigatório que o residente passe por um período de experiência em uma equipe de Consultório na Rua. Destaco também duas agendas: a saúde da mulher em situação de rua e a saúde metal na Atenção Primária à Saúde, incluindo pessoas que têm problemas na relação com álcool e outras drogas. As equipes de Consultório na Rua precisam ser mais resolutivas em relação a essas agendas, em vez de predominantemente fazerem encaminhamentos. E, para finalizar, recomendo a construção de um programa de avaliação que inclua as equipes de Consultório na Rua na avaliação da Atenção Básica.
Quais critérios poderiam ser usados para o monitoramento e a avaliação das equipes de Consultório na Rua?
Marcelo Pedra: Nunca foi feito um processo de monitoramento e avaliação dessas equipes com critérios pragmáticos, em âmbito nacional. A pesquisa indica como critérios o acompanhamento de pacientes com doenças crônicas, o acompanhamento de gestantes e o acompanhamento de pessoas em sofrimento psíquico, incluindo as questões de álcool e outras drogas. Acompanhar a população é fundamental para a Atenção Básica. Essas equipes não podem ser vistas como um serviço de urgência e emergência. Outro indicador importante, então, é o número de pessoas internadas com problemas que poderiam ter sido resolvidos pelas equipes de Consultório na Rua. Mas, antes de qualquer coisa, é preciso garantir o cadastramento dos usuários. Provavelmente, para alguém que está em situação de rua, o vínculo com a equipe de Consultório na Rua é algo importante: em geral, ela insiste no cuidado, quando todo mundo já desistiu. Se essa equipe cadastra o usuário e lhe dá um Cartão SUS, esse cartão representa uma conexão, um signo de cuidado, e tem mais valor do que um CPF para quem está na rua. Esse é um valor que as equipes ainda aproveitam pouco. Para fazer o cadastro, não precisa de identidade nem de CPF, mas o Cartão representa que aquele indivíduo é um usuário do SUS, que ele tem direitos, que ele é um cidadão, como eu, como você.
Leia mais
“Fala aê”: confira todas as entrevistas da nossa série de divulgação científica