Nathállia Gameiro e Adrielly Reis (Ascom/Fiocruz Brasília)
O cerrado é o segundo maior bioma da América do Sul. Ele abriga uma biodiversidade rica e única, com mais de 12 mil espécies de plantas e animais emblemáticos como o lobo-guará, tamanduá-bandeira, onça-pintada e tatu-canastra, e desempenha um papel essencial no equilíbrio ambiental do país. Conhecido como berço das águas, porque abriga nascentes de oito das doze bacias hidrográficas brasileiras, incluindo o Rio São Francisco e o Rio Tocantins, o cerrado abastece grandes rios do Brasil e da América do Sul.
Mas ele não é apenas um cenário cheio de vida e resistência, com árvores de troncos retorcidos, cascas grossas e folhas resistentes para suportar o clima quente e seco. Para cientistas e ambientalistas, é um laboratório vivo, com descobertas e desafios, e que precisa de atenção. As crescentes ameaças causadas pelo desmatamento e pelas mudanças climáticas acendem um alerta para a necessidade de mais estudos e estratégias de conservação.
Foi com esse foco que especialistas se reuniram, na tarde da última segunda-feira (10/3), para a aula inaugural da Escola de Governo Fiocruz-Brasília (EGF-Brasília), que teve como tema “Ciência, Democracia e Território: Diálogo sobre o Cerrado”. O evento reuniu, em um auditório lotado, pesquisadores, ambientalistas, residentes, tutores, discentes e docentes dos cursos da EGF para discutir os avanços da pesquisa na região e os desafios para a preservação desse ecossistema, destacando temas como a adaptação das espécies, o impacto das atividades humanas e as políticas públicas voltadas para o bioma.
“A qualquer momento o cerrado vai colapsar”, alertou a ecóloga Isabel Benedetti Figueiredo, ao lembrar que o bioma é um dos mais ameaçados do Brasil, com cerca de 50% de sua vegetação original já desmatada devido à expansão da agropecuária, que resulta ainda na falta de água e insegurança alimentar. A saúde mental das pessoas também é impactada, especialmente povos tradicionais que têm uma relação com o território, como povos indígenas, quilombolas, ribeirinhas, quebradeiras de coco babaçu, pescadores artesanais, comunidade de fundo de fecho de pasto, geraizeiros, vazanteiros, caiçaras, raizeiros, torrozeiros e retireiros.
Ela destaca que o agronegócio utiliza de mecanismos de força desigual para expulsão dessas comunidades que já são inivisibilizadas, com força armada e milícias, contaminação pela água ou agrotóxico como arma química, e onde o agronegócio não pode avançar com desmatamento, avança com grilagem verde. “Tudo isso impacta em todos nós, já que está tudo interligado. A gente não vive aqui na cidade sem a água que é produzida nos espaços rurais e sem o clima regulado lá”, ressaltou.
A ecóloga lamentou existir uma construção de pensamento a favor da produção em larga escala, da modernização agrícola, do equilíbrio da balança econômica, da importância das exportações e do cerrado como um celeiro do mundo, destacando que essa narrativa não se sustenta. “O problema da alimentação não é a produção, mas sim a distribuição, a desigualdade social que se agrava a cada dia. A comida do dia a dia não é produzida só pelo agronegócio, mas também pela agricultura familiar, dentro dos assentamentos de reforma agrária e das populações tradicionais”, disse.
A importância do cerrado para a saúde e o futuro do bioma diante de tantas ameaças também foi refletido pela bióloga Márcia Chame, pesquisadora da Fiocruz e diretora científica da Fundação Museu do Homem Americano, criada para garantir a preservação do patrimônio natural e cultural do Parque Nacional da Serra da Capivara, no Piauí. Ela classificou como desafiador manter o cerrado, por ser uma área onde o negócio é extenso e intenso e o uso de agrotóxicos e fertilizantes não é de forma reguladora. De acordo com a pesquisadora, por ano, são despejados cerca de 600 milhões de litros de agrotóxico. Essa água chega nos lençóis freáticos, no solo e volta para consumo humano.
Márcia contou algumas histórias que vivenciou e encontrou durante pesquisas ao longo de todos esses anos, de como isso afeta a saúde das pessoas. “Os impactos dessa perspectiva de obtenção de riqueza fácil são grandes. Quanto isso custa nos hospitais? No SUS? E para a família de cada pessoa?”, indagou ao afirmar que é preciso pensar nas formas de se reverter o processo, e não se adaptar. “Vai chegar um tempo que não teremos mais água. Como a gente faz para viver sem água?”, completou.
A pesquisadora lembrou ainda que o conhecimento cientifico precisa sair do seu núcleo e da academia para chegar à população e ao tomador de decisão, para que os resultados de pesquisas possam ser incluídos nas políticas públicas. Ela citou o sucesso do Sistema de Informação em Saúde Silvestre (SISGeo), do qual é fundadora. Uma pessoa comum com um celular na mão consegue, ao encontrar um macaco morto durante uma trilha, por exemplo, inserir a informação no aplicativo e alertar em tempo real o sistema de vigilância do SUS sobre a possibilidade de uma emergência de zoonoses em determinada região. O processo possibilita ações de vigilância e prevenção à saúde em animais e em pessoas com mais celeridade.
“A sociedade é fundamental. Hoje trabalhamos com os municípios, estados, mas quando a pessoa participa, ela se enxerga como parte da sua própria saúde, e isso é o mais precioso de todo o processo. Que a sociedade se empodere desse conhecimento, se emancipe e tenha capacidade crítica de entender o que é bom a curto, médio e longo prazo. Não tem como o SUS fazer saúde para todo mundo em um país deste tamanho e com essa diversidade, as pessoas têm que ajudar. Isso muda o mundo”, finalizou a pesquisadora.
O evento foi transmitido ao vivo pelo canal da Fiocruz Brasília no YouTube. Assista aqui.
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Um olhar para o território
Participando da mesa de abertura da aula inaugural, a vice-diretora da Fiocruz Brasília, Denise Oliveira, defendeu que a ciência precisa criticar o modelo civilizador do século XX, que trouxe guerras, racismo e intolerância, e valorizar a sabedoria local, as experiências natas à nossa própria cultura e vivência. “Que a gente possa construir o que a gente precisa: uma ciência que liberta, não só do ponto de vista acadêmico, mas a nossa vida”, afirmou.
A importância do evento para a pluralidade de olhares voltados para a saúde, território e políticas públicas, e solucionar problemas e formular agendas foi destaque na fala da diretora da EGF-Brasília, Luciana Sepúlveda. Ela enfatizou a necessidade de um diálogo cultural e epistêmico entre o que a ciência produz, as falas do território, os saberes e práticas sociais diante de desafios tão complexos. Para a pesquisadora, pensar saúde a partir de determinantes sociais, culturais, políticos e econômicos é também pensar as relações individual e coletiva com a natureza.
“Refletir sobre o cerrado é uma proposta não só da nossa Escola, mas uma proposta institucional de toda a Fiocruz. Quero chamar a atenção para a importância da nossa capacidade de imaginar nos deslocarmos das nossas humanidades conhecidas. Começamos este ano abraçando o tema da justiça ambiental, da importância de vislumbrar possibilidades de múltiplas humanidades e múltiplas formas de nos relacionarmos com o nosso maior patrimônio, que somos nós, natureza, planeta e vida”, finalizou.
O debate contou com a participação ativa dos alunos e foi mediado pela jornalista e pesquisadora da Fiocruz Brasília Mariella de Oliveira-Costa.
“Sonhos de um discente”
Quantos sonhos carrega o coração de um discente? Foi inspirada na paixão que move os alunos das Residências Multiprofissionais, Especializações e do Mestrado Profissional que a Escola de Governo Fiocruz-Brasília (EGF) deu início ao acolhimento dos novos alunos para o ano letivo de 2025, realizado na manhã de segunda-feira (10/3), com o tema “Sonhos de um discente”.
“Meu sonho é aproveitar tudo o que a instituição tem a oferecer, submeter artigos, participar de congressos, conhecer pessoas, enriquecer o meu currículo para, futuramente, trabalhar na minha área”, afirmou Larissa Santos, residente do 1º ano de Residência Multiprofissional em Vigilância em Saúde.
Já o sonho da aluna Verciane Gomes da Silva, residente do 1º ano do Programa de Residência Multiprofissional em Saúde da Família com ênfase em Saúde da População do Campo, é uma saúde mais equânime. “Como discente, o meu sonho, assim como de muitos, é uma saúde mais integral em defesa dos nossos territórios e dos direitos humanos”.
A diretora da EGF-Brasília, Luciana Sepúlveda, espera que os discentes aproveitem a Fiocruz Brasília e a Escola como espaços de vida, de aprendizagem, para construírem não só o conhecimento, mas que possam contribuir para o fortalecimento do SUS.
“Que a gente possa ter sonhos individuais e, principalmente, possamos construir um sonho coletivo em defesa do fortalecimento do SUS e de uma agenda mais diversa e equânime dentro da nossa Escola”, sublinhou Fabiana Damásio, diretora da Fiocruz Brasília, que pediu aos presentes uma salva de palmas em homenagem ao pesquisador Isaac Roitman, falecido no último dia 7 de março, e às pesquisadoras Celina Roitman e Nísia Trindade em celebração ao Dia Internacional da Mulher.
Para este ano letivo, a Escola tem 132 alunos matriculados nos cursos de Especialização, 114 nas Residências Multiprofissionais e 20 no Mestrado Profissional.
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