Nathállia Gameiro
A vacina contra o sarampo causa autismo. Bananas infectadas com aids foram encontradas no Brasil. Água gelada fecha as veias do coração. Estas notícias não passam de fake news – informações falsas, já desmentidas inúmeras vezes e que frequentemente voltam a ser compartilhadas nas mídias sociais. Todas elas têm características em comum: caráter alarmante e sensacionalista, surgem como uma novidade, incentivam o compartilhamento para grupos de amigos e familiares, não citam fontes oficiais e seguras e não trazem informações precisas ou o nome do autor do texto.
As fake news na área da saúde foram tema do II Seminário Internacional e VI Seminário Nacional As Relações da Saúde Pública com a Imprensa, realizado entre os dias 18 e 21 de março, pela Assessoria de Comunicação da Fiocruz Brasília. O evento reuniu nomes de peso da comunicação e da saúde, entre pesquisadores, profissionais de saúde, assessores de comunicação e repórteres. O seminário teve financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES.
A probabilidade de uma notícia falsa ser compartilhada na internet é 70% maior que a notícia verdadeira. É o que diz estudo publicado em 2018 por cientistas do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), dos Estados Unidos, e apresentado durante o evento. “Todos nós somos responsáveis pela propagação de fake news. Quantas vezes já compartilhamos informações sem checar a veracidade e não desmentimos depois?”, questionou a coordenadora de multimídia do Ministério da Saúde, Ana Miguel, durante participação em mesa redonda.
A publicitária apresentou dados da ContentTools & Opinion Box: Hábitos de consumo 2018, que mostram que 81% das pessoas compartilham e comentam notícias nas mídias sociais sem ler, por causa da manchete e do título. Para Ana Miguel, a notícia falsa faz mal à sociedade a partir do momento em que muda atitudes. O jornalista e diretor do Instituto Questão de Ciência, Carlos Orsi, afirmou que a intenção de quem produz fake news é espalhar desinformação, e a principal preocupação é o impacto que isso tem na vida das pessoas. Ele não culpabiliza apenas quem produziu a notícia, mas também quem compartilha, e acrescenta que os cientistas contribuem para veicular desinformação ao manipular dados científicos.
A confiança em quem compartilhou a informação foi um dos fatores levantados pelos palestrantes para a rápida propagação das notícias. Geralmente, são recebidas por pessoas próximas e em diferentes grupos, com a mesma linha de pensamento, o que gera redundância e um viés de confirmação e faz com que a aumente a crença de que a notícia falsa repetida diversas vezes pareça verdadeira.
O pesquisador do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnologia em Saúde (Icict/Fiocruz) Igor Sacramento afirmou que o debate sobre fake news está muito centrado nos meios e métricas e que é preciso ouvir as pessoas, o que elas entendem como verdade, além do tipo de sistema de crença. “Acreditamos na pessoa mais próxima. A experiência pessoal vale mais que a credibilidade das instituições”, disse.
O Brasil é o país mais preocupado com a propagação de conteúdo falso no mundo, segundo pesquisa da GlobeScan realizada entre janeiro e abril de 2017 para a BBC, com 92%. Seguido pela Indonésia (90%), Nigéria (88%) e Quênia (85%). Diante dessa preocupação, tem surgido diversas iniciativas para o combate às informações falsas, como agências de checagem e sites de instituições. Um exemplo é o número de WhatsApp disponibilizado pelo Ministério da Saúde para receber mensagens da população, que são apuradas pelas áreas técnicas e respondidas oficialmente se são verdade ou mentira. Ao todo, foram recebidas 7.061 conversas sobre diversos temas. A cidade que mais enviou mensagens desde agosto de 2018 foi São Paulo.
A atuação da Fiocruz foi destacada durante a fala da coordenadora de Comunicação Social da instituição, Elisa Andries. Entre as ações, foram realizadas campanhas publicitárias, vídeo-aulas, criação de site, coletivas de imprensa, peças nas mídias sociais, exposições, criação de aplicativo e jogo e treinamento de jornalistas. A coordenadora da Assessoria de Comunicação de Bio-Manguinhos/Fiocruz, Renata Ribeiro, destacou a experiência do Instituto durante o surto de febre amarela e as ações de esclarecimento da população relacionadas à doença, à vacina e ao fracionamento com diferentes públicos: governo, imprensa, instituições de ensino, funcionários, influenciadores e profissionais de saúde.
O jornalista e editor do site Boatos.org Edgard Matsuki falou sobre o processo de checagem de fatos da plataforma, que recebe de cinco a 10 sugestões de usuários por dia. Em seis anos, o site desmentiu 3.900 notícias. Dessas, 300 da editoria saúde. “Um desmentido não consegue alcançar o número de visualizações da fake”, disse. O monitoramento, para ele, é uma das chaves para diminuir a propagação de notícias falsas.
A responsabilidade social da mídia também foi citada durante o evento. A jornalista da Folha de S. Paulo Natália Cancian, da editoria de saúde, falou sobre os cuidados que o jornal tem tomado na área. “Todo jornalista que cobre saúde tem que tomar cuidado para não gerar pânico desnecessário na população. O jornalista tem o papel de prestar um serviço público, não só de passar a novidade ou informação”, alertou. Na área da saúde, as fake news mais comuns são sobre vacinação, alimentos milagrosos e a cura do câncer, cura da diabetes, banana com vírus HIV, medicamentos, programas do governo e maculopatia (doenças oculares) causada por smartphone.
Queda da cobertura vacinal
As fake news podem interferir diretamente no bem-estar da população. Os boatos se transformarem em um problema de saúde pública. A queda da cobertura vacinal no Brasil acendeu um alerta. Essa questão foi levantada por diversos especialistas e pesquisadores que participaram do evento. A meta de vacinação contra o sarampo é de 95%, mas, em 2017, a cobertura foi de 84,9% na primeira dose e de 71,5% na segunda, de acordo com dado do DataSUS/MS. Em 2014, a cobertura atingiu a marca de 93%. Já no caso da poliomielite, apenas 74% da população foi vacinada em 2017. Em 2011, a marca atingiu 101% da meta de vacinação. As seis vacinas que em 2017 apresentaram maior redução de cobertura em comparação com 2015 foram poliomielite, hepatite A, meningocócica C, rotavírus, pentavalente e hepatite B.
Para os especialistas participantes do Seminário, não é possível afirmar que a baixa cobertura vacinal é culpa do movimento antivacina ou das fake news, mas têm grande interferência. De acordo com dados de monitoramento de mídias sociais apresentados pelo Ministério da Saúde, 89% das fake atacaram a credibilidade dos imunizantes. Destes, 66% foram compartilhados por usuários comuns e 20% autodenominaram antivacina. A maior incidência é no Twitter.
Essas notícias falsas buscam descredibilizar a eficácia das vacinas, questionam o modo de contágio das enfermidades e disseminam que os imunizantes fazem mal à saúde, podendo causar efeitos colaterais que supostamente levariam até à morte. Como consequência, o histórico de vacinação no país ficam em risco e doenças que já foram eliminadas por meio da vacina podem retornar, como é o caso do sarampo. A doença voltou a afetar o Brasil, após dois anos da erradicação.
A queda da cobertura tem outras possíveis causas: o sucesso das ações de imunização, que causa falsa sensação de que certas doenças desapareceram e que, com isso, não há mais necessidade de se vacinar; o desconhecimento individual sobre a importância e benefícios das vacinas e os horários de funcionamento das unidades de saúde incompatíveis com as novas rotinas.
Uma das 10 prioridades de saúde definidas pela Organização Mundial de Saúde (OMS) é a relutância em vacinar. Atualmente, previnem-se cerca de 2 a 3 milhões de mortes por ano. Outras 1,5 milhão de mortes poderiam ser evitadas se a cobertura global de vacinação tivesse maior alcance. A diretora técnica da Divisão de Imunização do Centro de Vigilância Epidemiológica da Secretaria de Estado da Saúde, Helena Sato, ressaltou que a ação de vacinação precisa ser feita em outros países, não só no Brasil. Um grupo consultivo de vacinas para a OMS identificou a “complacência”, a “inconveniência” no acesso às vacinas e a falta de confiança como os principais motivos dessa relutância.
Investimento em educação
“O celular se tornou um apêndice, faz parte do corpo humano. É uma mudança cultural mais profunda do que já notamos. É a sensação de carregar a verdade na mão o tempo todo. É a verdade portátil e instantânea”, opinou o médico sanitarista da Fiocruz Brasília Claudio Maierovitch. Para ele, é preciso investir em educação e informação, pois são elementos capazes de diminuir a vulnerabilidade às notícias falsas. “Uma sociedade bem informada olha para a notícia criticamente”, completou.
O professor do Departamento de Fisiologia e Biofísica da Universidade Federal de Minas Gerais Bruno Souza concorda com Maierovitch, e ressalta: “um dos caminhos mais importantes para combater as fake news é não compartilhando as notícias”. Ele falou sobre os danos biológicos da divulgação de notícias científicas falsas, que podem levar as pessoas a acreditarem em informações erradas e mudarem atitudes.
Para o pesquisador Igor Sacramento é preciso utilizar as estratégias das fake news a favor da comunicação pública. “As fake news buscam a intimidade, o dogma, a crença e não podemos antagonizar na comunicação pública”, disse.
O conteúdo das mesas redondas foi gravado e será divulgado no canal da Fiocruz Brasília no Youtube (www.youtube.com/fiocruzbrasiliaoficial).
Apresentação de trabalhos
Diferentes níveis de graduação e de áreas de atuação: de graduandos a pós-doutores; da tecnologia da informação, enfermeiros, médicos, assistentes sociais, sanitaristas, engenheiros, odontólogos, jornalistas, publicitários e educador físico. E diferentes sotaques: de norte a sul do país, do Ceará ao Rio Grande do Sul, passando pelo Mato Grosso do Sul e por Minas Gerais. A diversidade deu forma às apresentações de trabalhos do Seminário As relações da Saúde Pública com a Imprensa: Fake News e Saúde.
A jornalista Cristiane Bonfim, da Assessoria de Comunicação da Secretaria de Saúde do Ceará, participou dos quatro dias do Seminário e destacou a interdisciplinaridade. “Falamos com colegas jornalistas que estão em redação, agências de checagem e assessorias, vimos a multiplicidade no jornalismo e de outros profissionais de saúde e como podemos contribuir. Essa troca torna o evento muito rico, mais rico que falar entre pares. Saímos daqui com muitas ideias para serem executadas”, afirmou.
O estudante de jornalismo da Universidade Federal de Uberlândia Jhonatan Dias, de 19 anos, contou que sempre teve a Fiocruz como referência em pesquisa e divulgação científica. “Essa característica de uma instituição governamental de trabalhar comunicação é sensacional”, afirmou. O itinerário de Uberlândia a Brasília foi feito de ônibus e ele garante que o esforço valeu a pena, pois o evento foi uma oportunidade de conhecer de perto como é a comunicação em saúde. “Eu tive dificuldade de achar conteúdo sobre fake news e saúde e essa interseção e o Seminário proporcionou isso. A escolha dos palestrantes foi muito certeira, foi sensacional. Superou todas as expectativas”, destacou.
Ao todo, 27 trabalhos foram enviados para sessão científica do evento, que contemplou os eixos: Jornalismo e Saúde, Publicidade e Saúde, Redes sociais virtuais e Saúde, Relações Públicas e Saúde e Comunicação Organizacional e Saúde. Destes, 17 relatos de experiência e pesquisas foram selecionados por uma comissão científica formada por membros da Fiocruz, do Ministério da Saúde, além de professores e pesquisadores de diferentes universidades do Distrito Federal.
Entre os trabalhos, a análise do termo vacina no Youtube, o uso de tecnologia por idosos, a análise do movimento antivacinas na internet, a criação de estratégias para implementação de um projeto sobre arboviroses no Rio de Janeiro, a experiência de Assessorias de Comunicação de Secretarias de Saúde durante as ondas de doenças e fake news sobre vacinação foram alguns temas apresentados. Os trabalhos serão divulgados na segunda edição do e-book do Seminário. Confira a primeira edição que reúne conteúdo do evento anterior, realizado em 2017.
Uma outra novidade da edição do Seminário foi a exposição de cartuns. A mostra foi composta por 30 diferentes obras produzidas por cartunistas de diferentes países, selecionadas a partir de 70 trabalhos de 15 países diferentes – Brasil, China, Austrália, Cuba, Estônia, Irã, Estados Unidos, França, Grécia, Itália, Polônia, República Tcheca, Sérvia, Turquia e Ucrânia. Ao longo do evento, os participantes votaram nos cartuns, e o mais votado ilustrará a capa do e-book sobre o evento.
A Sessão Científica encerrou as atividades do evento, que reuniu, ao longo de quatro dias, cerca de 350 profissionais da saúde e da comunicação na Fiocruz Brasília, que assistiram às mesas redondas e participaram dos debates e do curso. Confira como foi a abertura do evento: https://bit.ly/2UVaJNi