Fala aê, mestre: atendimento de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual

Fernanda Marques 7 de abril de 2023


O silêncio dificulta o atendimento. A ambiência é importante para a comunicação. Recursos lúdicos facilitam que crianças e adolescentes se comuniquem com os técnicos. A construção de vínculos também facilita. As trocas entre os técnicos são informais, mas essenciais. A capacitação dos profissionais é fundamental para aperfeiçoar a comunicação (e, consequentemente, os resultados do atendimento).

 

As crianças e adolescentes atendidas foram vítimas de violência sexual. Os técnicos são assistentes sociais e psicólogos que atendem essas crianças e adolescentes no Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) de Valparaíso de Goiás (GO). Os enunciados que abrem este texto sintetizam os achados de uma pesquisa que entrevistou esses profissionais e analisou suas falas a partir de uma metodologia chamada Discurso do Sujeito Coletivo. O estudo foi realizado pela psicóloga Elaine Carvalho no Mestrado Profissional em Políticas Públicas em Saúde da Escola de Governo Fiocruz-Brasília.

 

Entre os objetivos da dissertação de Elaine estavam conhecer a comunicação desenvolvida no CREAS de Valparaíso durante os atendimentos de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual e contribuir para aperfeiçoar o serviço. “Muitos técnicos têm dificuldade para escutar e compreender o que não é dito verbalmente”, diz a psicóloga. “Os desenhos, o modo de brincar, sentar e olhar, o tom de voz: tudo isso é uma forma de comunicação e sua compreensão deve ser aprimorada”, sublinha a egressa do Mestrado.

 

Elaine defende atendimentos pautados por uma comunicação dialógica, relacional, centrada na pessoa atendida e não na violência sofrida, baseada na escuta qualificada e em ambiente adequado. “Quando um dos profissionais comenta que já ouviu de um adolescente ‘eu achava que morrer era a única solução e você me mostrou que não era’, percebe-se como a comunicação, nesses atendimentos, pode possibilitar o fortalecimento desse indivíduo e apresentar a ele uma nova perspectiva de vida”, afirma. Nesta entrevista da série de divulgação científica “Fala aê, mestre”, a psicóloga comenta os resultados de sua pesquisa, destacando a importância de aumentar a visibilidade do tema e enfrentá-lo para melhor proteger e acolher as crianças e adolescentes.

 

Qual foi a sua principal motivação para realizar a pesquisa? 

Elaine Carvalho: Apesar de todas as campanhas de proteção dos direitos das crianças e adolescentes, ano após ano, não temos visto a redução deste tipo de violência; pelo contrário: de acordo com dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública de 2022, a violência sexual contra crianças e adolescentes ainda está em crescimento. Fui uma dessas crianças que nem entram no registro oficial de vítimas e, como profissional, vi a dificuldade que muitos técnicos têm para desenvolver o atendimento desse público.

 

O que faz um Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS)? Como as pessoas podem ter acesso a esses serviços? 

Elaine Carvalho: Esse equipamento faz o acolhimento, o atendimento e os encaminhamentos de pessoas que estão em ameaça de violações de direitos ou que já tiveram seus direitos violados. A pessoa pode ir ao CREAS e solicitar atendimento psicossocial. Será feita a escuta qualificada e, sendo um atendimento do perfil do CREAS, é aberto prontuário e a pessoa começa o acompanhamento. Não sendo uma demanda do CREAS, os técnicos orientam e encaminham a pessoa para o local que oferta o serviço de que ela necessita.

 

Além do CREAS, que outros órgãos contribuem para o atendimento de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual?  

Elaine Carvalho: Além do CREAS, temos o Conselho Tutelar, as Unidades Básicas de Saúde, o Centro de Referência em Assistência Social (CRAS) e o Ministério Público, entre outros. Esses órgãos, que compõem o Sistema de Garantia de Direitos, podem contribuir para o trabalho em rede com essas crianças e adolescentes.

 

Por que a comunicação é tão importante e, ao mesmo tempo, tão desafiadora no atendimento dessas crianças e adolescentes? 

Elaine Carvalho: Como existe uma barreira inicial, muitas vezes, não é feito um investimento na construção de vínculos e no desenvolvimento de outras formas de comunicação além da verbal. Por isso, muitos técnicos fazem a análise dos dados disponíveis e, se não conseguem estabelecer comunicação, colocam-se à disposição para atendimento futuro e encerram o prontuário.

 

Durante os atendimentos do CREAS, de que maneira uma melhor comunicação dos assistentes sociais e psicólogos com as crianças e adolescentes vítimas de violência sexual pode contribuir para resultados mais efetivos? 

Elaine Carvalho: Se a escuta é feita no tempo das crianças e adolescentes, e feita por meio da confiança, adquirida na aproximação e na construção de vínculos, utilizando os recursos adequados, essa comunicação se torna terapêutica – o técnico consegue alcançar essas crianças e adolescentes, compreender do que necessitam e fazer os encaminhamentos de forma correta. E ele consegue, também, fazer um trabalho mais efetivo com os familiares, a partir do olhar das crianças e adolescentes.

 

Quais aspectos facilitam essa comunicação? 

Elaine Carvalho: São importantes os estudos de caso, em que os técnicos discutem o quadro, trocam referências, se ajudam e, às vezes, passam o atendimento para outro técnico continuar o acompanhamento. Igualmente importante é a disposição dos técnicos para a construção de vínculos durante o atendimento, assim como a ambiência em que ele ocorre, incluindo recursos lúdicos.

 

E quais aspectos dificultam? 

Elaine Carvalho: Nas entrevistas da pesquisa, foram relatados como dificultadores os problemas na acústica da sala de atendimento; o silêncio por parte das crianças; e a falta de capacitação dos técnicos para a execução desse tipo de comunicação.

 

Seu estudo mostra que os técnicos realizavam percursos diferentes para estabelecer a comunicação com as crianças e adolescentes, nos atendimentos. Por que essa falta de um padrão pode ser ruim? 

Elaine Carvalho: Não existe um padrão porque não existe uma capacitação inicial. Então, cada técnico faz do jeito que acha correto. Dessa forma, pode acontecer de um atendimento ser encerrado sem que todas as possibilidades sejam alcançadas.

 

Com base na pesquisa, quais as suas recomendações para melhorar essa comunicação? 

Elaine Carvalho: Trabalhar no CREAS não é fácil. Pontos fundamentais são a capacitação inicial antes do exercício profissional no CREAS e a sistematização de como o atendimento deve ser feito, para que todos os requisitos sejam cumpridos.

 

Em que medida, sistematizar um fluxograma da comunicação entre os técnicos e as pessoas atendidas no serviço, como você propõe no seu trabalho, pode trazer benefícios? 

Elaine Carvalho: O fluxograma é um meio para direcionar o atendimento: o técnico visualiza o fluxograma e vê por onde vai começar, ou em que etapa ele está. Isso permite seguir um percurso, um passo a passo que orienta e garante a completude do atendimento.

 

Elaine Silva de Carvalho é autora da dissertação intitulada “A comunicação no Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) de Valparaíso de Goiás: percepções dos profissionais no atendimento a crianças e adolescentes vítimas de violência sexual”, aprovada em 30 de agosto de 2022 no Mestrado Profissional em Políticas Públicas em Saúde, da Escola de Governo Fiocruz-Brasília, sob a orientação da professora Mariella de Oliveira-Costa.

 

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