“Pesquisar sem um propósito de transformação social e impacto positivo não faz sentido e não contribui para um desenvolvimento sustentável.”
Você já ouviu falar em atrizes sociais? Sabe o que é empoderamento social ou o que significa igualdade de gênero? Foi através dessas inquietações que a pesquisadora Flora Fonseca realizou um estudo no âmbito do Mestrado Profissional em Políticas Públicas em Saúde da Fiocruz Brasília. Ela utilizou como sujeitos de pesquisa as atrizes sociais moradoras da Cidade Estrutural, território vulnerabilizado do Distrito Federal, e buscou compreender como essas mulheres foram de fato transformadas e empoderadas, por meio de estratégias educacionais propostas pela Fiocruz, em parceria com o Instituto Federal de Brasília (IFB) e a Universidade de Brasília (UnB). Essas ações foram implementadas pelo Curso de Governança Territorial para o Desenvolvimento Saudável e Sustentável.
Partindo da perspectiva freiriana de que a educação transforma as pessoas e as pessoas transformadas podem transformar o mundo, a pesquisadora analisou as estratégias educacionais propostas e seus modos de implementação, mensurando o empoderamento social e como as estratégias educacionais promoveram o desenvolvimento saudável e sustentável e se poderiam ser replicadas em outros territórios vulneráveis. Flora conta que aprendeu muito com o trabalho das atrizes sociais moradoras da Cidade Estrutural, território de luta e força. “Através da militância comunitária, do empoderamento, dedicação e força dessas mulheres eu me transformei em uma pessoa melhor”, comentou. Ela explica mais detalhes do seu estudo na entrevista da semana da nossa série de divulgação científica “Fala aê, mestre”.
O que são atrizes sociais?
Flora Fonseca: São pessoas ou organizações que possuem um projeto político ou algum tipo de poder, e que conseguem influenciar e transformar de alguma maneira a sociedade em que vivem. Normalmente, as produções científicas utilizam o termo “atores”, no masculino, mas isso acaba fazendo com as mulheres, que com frequência são as protagonistas das lutas sociais, fiquem apagadas nas histórias e nos movimentos de luta, por isso utilizamos o termo no feminino.
O que é empoderamento social?
Flora Fonseca: Existem vários conceitos de empoderamento social. Para a minha pesquisa, utilizamos a definição de Paulo Freire e Ira Shor, pesquisadores referência na área da educação. De acordo com eles, o empoderamento significa dar poder para alguém, possibilitar que essa pessoa aumente suas capacidades de ação (seus poderes). Esse conceito está também muito relacionado ao de “Esperançar”, criado por Paulo Freire, que significa sentir esperança e agir a partir desse sentimento, ter uma capacidade de reação, mesmo quando se vive alguma situação aparentemente impossível de transformar. Quando uma pessoa é empoderada, ela tem mais capacidade de esperançar e de transformar a sociedade em que vive.
E o que é igualdade de gênero?
Flora Fonseca: É uma situação em que todas as pessoas, independentemente do gênero com o qual se identificam, têm as mesmas oportunidades de sonharem e de crescerem, conseguindo atingir todos os seus potenciais. É importante lembrarmos que para que a igualdade seja igualitária, é necessário haver equidade, ou seja, que todas as pessoas recebam as ferramentas específicas e necessárias para se desenvolverem, sendo consideradas e respeitadas as suas características individuais.
O que é Agenda 2030? E quais objetivos desta agenda são apoiados pela Fiocruz?
Flora Fonseca: A Agenda 2030 faz parte de um documento internacional chamado “O futuro que queremos”, assinado pelos países membros da Organização das Nações Unidas (ONU), em 2012. Nesse compromisso, os países declararam a necessidade de um esforço global para conseguirmos alcançar um desenvolvimento mais sustentável, ou seja, que respeite essa e as futuras gerações. Para organizar esse compromisso, foram traçados objetivos e indicadores a serem alcançados até 2030. A Fiocruz, como uma instituição do governo brasileiro que está preocupada com a construção de um mundo mais saudável e mais sustentável, é uma das defensoras de que essa Agenda seja cumprida, considerando todos os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), uma vez que a saúde é sinônimo de vida e que sem o cumprimento de todos os objetivos não é possível alcançarmos uma vida plena, de bem-estar para todas as pessoas.
O que significa território saudável e sustentável?
Flora Fonseca: O território é o local onde vivemos, no qual acontecem todas as interações entre as pessoas. É nele onde acontece a dinâmica da vida, onde as pessoas criam valores e reconhecem lugares – seus e da coletividade. Um território saudável e sustentável é um lugar onde as pessoas têm uma vida repleta de saúde e bem-estar, com oportunidades de crescimento econômico sustentável, ou seja, que respeite o meio-ambiente e que possibilite a existência dessa geração sem comprometer o futuro das próximas.
Fale do trabalho da Fiocruz com as atrizes sociais, apontando algumas das experiências de transformação e empoderamento.
Flora Fonseca: O trabalho da Fiocruz no território da Cidade Estrutural ganhou força a partir da implementação do curso de Governança Territorial para o Desenvolvimento Saudável e Sustentável (GTDSS). Esse curso teve como objetivo formar Agentes de Governança Territorial (AGTs), pessoas da comunidade que estivessem prontas para realizar ações de pesquisa e para trabalharem em projetos que contribuíssem para a transformação social local. Ainda durante o curso, a Fiocruz apoiou as atrizes sociais locais na realização de projetos como o Comitê Estrutural Saudável e Sustentável, que deu suporte à comunidade em tempos de pandemia, criando campanhas de saúde com base na vigilância comunitária e apoiando mais de duas mil pessoas moradoras diretamente.
A maioria das alunas formadas informaram que se sentiram empoderadas depois do curso e que estavam mais aptas e com mais vontade de trabalhar para a melhoria das suas comunidades. Algumas AGTs, mesmo depois do curso, contribuíram também em outros projetos da Fiocruz, como o Imuniza Estrutural, implementado em parceria com a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS), que levou a vacina e conhecimentos de saúde para a região.
Quais as inovações pedagógicas identificadas com seu estudo?
Flora Fonseca: Inovar tanto significa fazer coisas que não foram feitas antes, como também pode ser fazer as mesmas coisas de um jeito diferente. A proposta do Curso de Governança Territorial se encaixa nas duas formas de inovar.
O fato de não existir um curso similar, nos permite inferir que o curso é uma inovação em si, sendo uma proposta diferente, que apresenta um novo valor para a sociedade. Como proposta educacional promotora do desenvolvimento saudável e sustentável e territorializadora da Agenda 2030, sem dúvida, ele foi inovador. Além disso, o conteúdo do curso é uma estratégia educacional que dá continuidade, acrescentando novidades, às propostas vanguardistas de construção compartilhada em saúde e empoderamento social baseadas na Educação Popular em Saúde (EPS) – campo de conhecimentos, saberes e práticas, permeado pela escuta, diálogo e ação.
Qual a importância da aproximação da academia com a comunidade?
Flora Fonseca: Um dos objetivos principais das pesquisas, da existência da academia, é (ou deveria ser) resolver os problemas das comunidades, contribuir para um mundo melhor. Para cumprirem essa missão, encontrando soluções para os problemas sociais, é fundamental que as pessoas que realizam pesquisas conheçam de verdade as realidades das comunidades, que elas estejam presentes nos territórios, que escutem as reais demandas das pessoas que vivem ali. Pesquisar sem um propósito de transformação social e impacto positivo não faz sentido e não contribui para um desenvolvimento sustentável.
Com o seu estudo você desenvolveu um manual de boas práticas. Conte um pouco sobre essa experiência.
Flora Fonseca: O curso GTDSS foi um projeto piloto e possui muitíssimo potencial para empoderar outras mulheres e para promover o esperançar em outras comunidades. Por esse motivo, a fim de contribuir para as próximas ações e intervenções, a partir da pesquisa realizada e também das experiências compartilhadas no território, identificamos pontos de melhoria e boas práticas. Esperamos que essa visão comunitária possa, de fato, contribuir para o futuro que queremos.
Flora Carvalho de Oliveira e Freitas Fonseca é autora da dissertação “Atrizes sociais empoderadas por meio da educação: a implementação da Agenda 2030 em territórios vulnerabilizados”, defendida em 30 de setembro de 2022, com orientação do professor Wagner de Jesus Martins.
Fotos:
Dentro da matéria: Acervo Pessoal e Karina Zambrana/OPAS/OMS
Destaque: Rafaela Felicciano