A negação de direitos pelo racismo, entre eles o direito à terra, tem marcado historicamente as Comunidades Quilombolas. Elas carregam um legado cultural e material, e são uma referência histórica e ancestral, mas estão constantemente ameaçadas em sua existência e reprodução física, social, econômica e cultural. A racialização da terra está ligada a conflitos que acometem a vida e a saúde da população negra, em especial da população Quilombola, em um processo de invisibilidade que afronta os direitos mais básicos e fundamentais.
Investigar como aspectos em torno dos conflitos fundiários afetam negativamente a saúde física e mental das Comunidades Quilombolas e, sobretudo, de suas lideranças foi o objetivo de um estudo conduzido pela administradora e especialista em gestão de projetos Ana Paula dos Santos Siqueira, egressa do Mestrado em Políticas Públicas em Saúde da Fiocruz Brasília. Ana Paula entrevistou lideranças Quilombolas das Comunidades Marobá dos Teixeiras (MG), Santa Tereza do Matupiri (AM) e Quilombo Carrasco (AL). Nesta entrevista, ela compartilha os aprendizados da pesquisa e destaca a necessidade de que as violências impostas às Comunidades Quilombolas sejam consideradas na pauta das políticas de saúde.
O que motivou a realização da pesquisa?
Ana Paula: Meus avós paternos eram de comunidade tradicional, mas passaram por processo de desterritorialização, que impacta e influencia profundamente a vida e a saúde das pessoas. Em 2012, trabalhei na Ouvidoria Nacional da Igualdade Racial e pude ter uma visão mais macro da situação de extrema violência e cerceamento de direitos a que as Comunidades Quilombolas são submetidas. Desde então, passei a colaborar voluntariamente com essas Comunidades, por exemplo, auxiliando no encaminhamento das denúncias de conflitos fundiários aos órgãos competentes. Quando ingressei no Mestrado, conversei muito com as lideranças de diversas Comunidades para saber o que seria mais oportuno estudarmos, visto ser um muito difícil estudos voltados para a saúde da população Quilombola, sem contar a grande oportunidade que tínhamos de inserir essa temática em uma instituição tão importante, que é a Fiocruz. Assim, por consenso, decidimos a temática, com o objetivo de evidenciar a relevância dos impactos e consequências dos conflitos fundiários, em territórios Quilombolas, na saúde desta população, principalmente na saúde das lideranças, as quais encontram-se na linha de frente pela defesa da vida e do direito de existir.
Como você descreveria as Comunidades Quilombolas e sua importância?
Ana Paula: Comunidades Quilombolas representam a memória viva de luta e resistência; são o espaço onde há possibilidade de ser, de existir. É preciso compreender que não se trata de uma definição descontextualizada, mas que o Quilombo também faz parte da pré-diáspora, que o africano foi forçado a fazer, o que sustenta a hipótese da anterioridade histórica do Quilombo, como forma de organização política de resistência pré-diaspórica. O dr. Kabengele Munanga traz uma importante contribuição ao dizer que os primeiros Quilombos brasileiros, “imitando o modelo africano, transformaram esses territórios em espécie de campos de iniciação à resistência, campos esses abertos a todos os oprimidos da sociedade (negros, índios e brancos), prefigurando um modelo de democracia plurirracial que o Brasil ainda está a buscar”. Essa definição é muito forte e simbólica, pois, até hoje, as mais de seis mil Comunidades Quilombolas representam essa resistência e esse modelo tão desejado de democracia.
Quais os principais desafios para a preservação e a reprodução dessas Comunidades?
Ana Paula: Acredito que as Comunidades Quilombolas representam a maior frente de luta e resistência negra no Brasil; todavia, nesses processos de resistência, os conflitos têm como elemento central os territórios, os quais são objetos de disputas e interesses ilegítimos e inconstitucionais de terceiros, que, na disputa pela propriedade da terra, têm marcado os últimos anos com massacres e assassinatos cometidos com crueldade. Como menciono na pesquisa, de acordo com a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) e a Terra por Direitos, no ano de 2017, houve um aumento de 350% de Quilombolas assassinados, em comparação a 2016, e sabemos que ainda há muita subnotificação – logo, os números podem ser maiores. É importante mencionar que a luta histórica das Comunidades Quilombolas pela propriedade – acesso à terra –, desde a colonização aos dias atuais, passa a ser um direito fundamental ao território, inscrito no texto constitucional de 1988, no art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT). A morosidade nos processos de titulação das terras Quilombolas pode ser entendida como uma afirmação do racismo institucional, que, ao não garantir o pertencimento territorial, mantém a condição de escravização da população negra, negando-lhe a condição de sujeitos constitucionais, sendo exatamente o oposto da democracia declarada na Constituição Federal de 1988.
Qual o significado do processo de racialização da terra?
Ana Paula: Primeiramente, cabe mencionar que a desigualdade racial sempre esteve presente como um projeto de Estado para pessoas negras no Brasil, e, ainda hoje, não é visível um esforço sobre a necessidade de respeito desse outro. A sociedade imperial preparou toda a nação para que houvesse uma perpetuação das desigualdades, tendo como um de seus pilares a racialização. Concordo com o jurista Silvio Almeida e acho importante reforçar que, por trás da raça, sempre há contingência, conflito, poder e decisão. Assim, cabe dizer que a racialização dos seres humanos ocorre em função da criação e circulação de sentidos sociais capazes de afirmar que certos grupos não possuem o mesmo valor social que outros. No que se refere à racialização da terra, é oportuno trazer as contribuições do professor Adilson José Moreira, o qual rejeita completamente a ideia de que a raça é uma mera característica biológica sem implicações na vida dos cidadãos: ele destaca que pessoas negras e brancas têm existência concreta, porém ambas são produtos de ideias que surgiram em um momento no qual os europeus precisavam justificar diferentes aspectos do cruel projeto colonial que se apresentava na conjuntura. Foi preciso criar teorias que embasassem e confirmassem a inferioridade essencial de todos os outros grupos raciais. Um exemplo concreto de racialização da terra é o processo de genocídio e espoliação que conhecemos como o colonialismo.
De que forma os conflitos fundiários afetam a saúde das Comunidades Quilombolas?
Ana Paula: Os conflitos fundiários em territórios Quilombolas são um dos maiores problemas a se enfrentar para a garantia dos direitos destas Comunidades. Para tanto, é preciso compreender que a centralidade dos conflitos e violações de direitos passa pela discriminação em função da raça e pelo racismo, que ocupa a função social de dominação e manutenção de poder. Talvez seja difícil imaginar que o Brasil, sendo uma nação “tão cordial, que vive uma democracia e humanismo racial”, tem como marca principal agressões baseadas no critério de raça. Mas é justamente esse critério que tem afetado significativamente a vida e a saúde da população negra, principalmente da população Quilombola, que, ao não ter seus territórios titulados, é impedida de ter acesso a diversas políticas públicas essenciais à qualidade de vida e à saúde. Ainda merecem destaque os inúmeros assassinatos, violações e agressões diversas a que essa população é submetida em decorrência da luta pelo território. Um exemplo de como o conflito afeta a saúde é o crime que ocorreu com as lideranças da Comunidade Maroba dos Teixeiras, em Almenara (MG): sofreram um ataque desumano, mas simbólico para um país que ainda hoje padece dos resquícios da escravidão. Em 2017, o Sr. Jurandir reviveu em seu corpo a tortura que muitos de seus antepassados viveram; foi espancado, torturado e amarrado em um poste. Sua esposa foi torturada e envenenada. Mesmo com toda a dor, não desistiram da luta e seguem firmes até o fim pela garantia e defesa do território, mas as consequências desse crime persistem até hoje e afetam a saúde física e mental, como pode ser lido na minha dissertação.
Quais os critérios utilizados na escolha das lideranças Quilombolas entrevistadas?
Ana Paula: A escolha das lideranças e das Comunidades Quilombolas se deu pela evidente disputa por direitos que as mesmas enfrentam no presente, assim como pelas graves violações de direitos associadas à morosidade da regularização fundiária dos territórios. Esse processo apresenta formas cruéis de violência física e psicológica, além de cerceamento de direitos essenciais, como acesso à saúde, educação, saneamento e segurança. Além disso, a escolha se fez devido a Minas Gerais ser um dos estados com maior presença de Comunidades Quilombolas, com 388 Comunidades Quilombolas certificadas. Alagoas foi selecionado por ser um estado de muita representatividade na luta Quilombola, graças ao Quilombo dos Palmares, com uma historiografia negra importante de ser considerada para a compreensão da formação social do país. Amazonas foi de extrema importância por ser uma das regiões em que a agência Quilombola é incessantemente anulada, seja pelo imaginário popular, seja pelas políticas públicas, que, em sua maioria, não chegam na Região Norte do país.
Durante as entrevistas, quais aspectos mais chamaram sua atenção?
Ana Paula: O momento das entrevistas foi o mais significativo e importante, e que levo como grande aprendizado. Em todo o meu estudo, tive muito cuidado para tornar aquele espaço um lugar de fala de sujeitos que, histórica e academicamente, são silenciados e invisibilizados. Algumas falas, transcritas, ficaram longas, mas, pela importância das informações nelas contidas, tornam-se essenciais para entender o que a literatura diz e o que a realidade vivida aponta; assim, optou-se por sua permanência. Conhecer as origens, a história e as especificidades de cada Comunidade Quilombola é essencial para não cairmos na armadilha colonizadora da história única, como bem definido por Chimamanda Ngozi Adichie. As formações geográficas, estruturais e históricas de cada Quilombo podem revelar como incidem os processos discriminatórios e a carga de violência sobre seus sujeitos. Ainda há que se pensar nas questões de poder que incidem sobre as narrativas das Comunidades: como são contadas, quem as conta, quando e quantas histórias são contadas. O jeito mais simples de dizimar um povo é contar sua história por eles. Foi muito marcante nas falas a luta e a importância de preservar não apenas o território, mas toda a sua territorialidade e a coletividade. Mesmo nas falas que relatam violências e agressões vividas, há esperança de um presente e um futuro de liberdade para toda a Comunidade. Essas lideranças e suas Comunidades resistem à necropolítica (que, com oportunidades desiguais, dita quem pode viver e quem deve morrer), imposta toda vez que respiram. Essa resistência é inspiração. Espero que motive e sensibilize a todos que vierem a ler o resultado desse estudo.
Como seu estudo pode contribuir para a defesa da vida e dos direitos das Comunidades Quilombolas?
Ana Paula: Talvez surjam alguns questionamentos sobre o que o racismo, os conflitos fundiários, a luta por direito ao território, o direito de existir e o pertencimento podem falar sobre a saúde. A resposta se configura em um mosaico de situações, agenciamentos, histórias e lutas das Comunidades Quilombolas. Os esforços feitos nesse trabalho apontam para a relevância de se considerar os impactos e consequências dos conflitos fundiários, em territórios Quilombolas, na saúde desta população, principalmente na saúde das lideranças, as quais encontram-se na linha de frente pela defesa da vida e do direito de existir. A temática da saúde da população negra é muito ampla e, ao mesmo tempo, muito complexa, e remonta a um dos períodos mais cruéis da humanidade, em que seres humanos foram coisificados e escravizados, sem direito à memória, história, raízes e origens. Quando falamos sobre saúde da população negra, não podemos deixar de olhar para o passado e ver que o Brasil foi o último país a se livrar do regime escravocrata, que de forma trágica trouxe seres humanos da África e, de igual forma, foram deixados de ser escravizados. Um dos primeiros impactos sobre a saúde da população negra remete a esse período: são apenas 130 anos da chamada “liberdade”, e suas marcas permanecem afetando significativamente a saúde física e mental dessa população. Basta olharmos para os índices de homicídios, suicídios e mortes evitáveis envolvendo a população negra. Esse estudo foi feito coletivamente na esperança de que toda a violência, sofrimento e apagamentos impostos às Comunidades Quilombolas venham a ser pauta das políticas de saúde, para que estas venham a rever seus pressupostos – da universalidade dos corpos e do entendimento único sobre estes, independentemente de onde estejam e de como vivem. Ainda, esperamos incomodar para que o nosso silêncio não se torne linguagem e para que a saúde da população Quilombola seja levada a sério.
Ana Paula dos Santos Siqueira é autora da dissertação “Conflitos Fundiários e as Repercussões na Saúde das Lideranças Quilombolas”, defendida em 18 de junho de 2021, com orientação da professora Tatiana Oliveira Novais.
Fotos: Revista Radis / Ensp / Fiocruz
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