Você já ouviu falar do Previne Brasil? Este foi o nome dado ao novo modelo de financiamento da Atenção Primária à Saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Instituído pela Portaria nº 2.979, de 12/11/2019, o Previne Brasil fez algumas alterações na forma dos repasses de recursos federais para os municípios. Avaliar os impactos desse novo modelo foi o objetivo de uma dissertação defendida no Mestrado Profissional em Políticas Públicas em Saúde da Escola de Governo Fiocruz – Brasília. Em sua pesquisa, o analista e consultor em saúde pública Akeni Lobo Coelho mostrou que, no geral, houve um aumento nos recursos transferidos de 2019 a 2022, embora muitos municípios ainda enfrentem déficits. Para evitar perdas financeiras, foram tomadas algumas medidas excepcionais, mas nem sempre eficazes. Os desafios dos gestores municipais, bem como sugestões para enfrentá-los, são discutidos por Akeni nesta entrevista da série de divulgação científica “Fala aê, mestre”.
No mestrado, você estudou os repasses federais para a Atenção Primária à Saúde (APS) em municípios brasileiros. E o título do trabalho já traz o questionamento: quem ganha e quem perde? Após concluir a pesquisa, como você resumiria a resposta a essa pergunta?
Akeni Coelho: A partir de toda a análise feita, identificamos muitos municípios que ganharam mais recursos em relação aos repasses realizados no ano de 2019; porém, também verificamos um número considerável de municípios que apresentaram diminuição dos recursos recebidos. Então, a resposta é: houve ganhos e perdas durante o período analisado.
De quem é a responsabilidade de financiar o SUS, em especial suas ações e serviços de APS?
Akeni Coelho: Constitucionalmente, a responsabilidade é compartilhada entre os entes da federação, isso quer dizer que os municípios, os estados, o DF e a União são responsáveis por financiar o SUS. Essa responsabilidade é tripartida, em que cada ente apresenta um percentual obrigatório para investir em saúde. Os percentuais de investimento financeiro de municípios, estados, DF e União no SUS são definidos pela Lei Complementar nº 141, de 13 de janeiro de 2012. Municípios e DF devem aplicar anualmente, no mínimo, 15% da arrecadação dos impostos em ações e serviços públicos de saúde, cabendo aos estados o percentual de 12%. Para a União, o valor corresponde ao que foi empenhado no exercício financeiro anterior, somado com o percentual da variação do Produto Interno Bruto (PIB) do ano antecedente ao da lei orçamentária anual. Em relação à Atenção Primária à Saúde, a responsabilidade se mantém, visto que faz parte das atribuições dos entes dentro do SUS. De acordo com a Constituição Federal de 1988, aos municípios compete “prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população”. Trata-se do atendimento básico, na Atenção Primária e imediata, assegurando o direito de todos à saúde.
Como funciona o atual modelo de financiamento Previne Brasil?
Akeni Coelho: O atual modelo de financiamento funciona a partir de “eixos” com seus diferentes critérios, definidos como prioritários, que fazem parte da estratégia e do plano da Atenção Básica. Resumidamente, o Previne Brasil alterou a forma de distribuição de recursos federais com base em três critérios: captação ponderada (cadastro de pessoas), pagamento por desempenho (indicadores de saúde) e incentivo para ações estratégicas (credenciamentos/adesão a programas e ações do Ministério da Saúde).
Como você descreveria a evolução dos modelos de financiamento até chegar ao atual?
Akeni Coelho: A evolução do financiamento público brasileiro tem influência de vários modelos de outros países. A nossa concepção social foi transformada ao longo dos anos a partir também da nossa evolução como sociedade. Os direitos dos cidadãos, a responsabilização do Estado e o nosso dever como povo de cuidar uns dos outros têm uma grande influência na história de financiamento. Eu descreveria essa evolução como constante, volátil e progressista. Acredito que temos um longo caminho a percorrer para alcançarmos um financiamento adequado às nossas necessidades, mas reconheço que a volatilidade tem assumido um papel importante nessa caminhada. É necessário um maior fortalecimento das ideias sociais para que possamos juntos assistir toda a população de uma maneira melhor, e fazer crescer um dos maiores sistemas públicos de saúde do mundo.
Quais os principais desafios dos gestores municipais de saúde, hoje, em relação à política de financiamento da Atenção Primária à Saúde?
Akeni Coelho: A meu ver, esses desafios estão relacionados ainda com a adaptação às normas estabelecidas pelo Governo Federal para o recebimento do recurso de forma integral e abrangente a toda população incluída nos critérios definidos. Esse desafio, em específico, limita a capacidade de ampliação da arrecadação de alguns municípios, e traz a possibilidade de diminuição do recebimento, com impactos no planejamento, na ampliação e na continuidade da prestação de serviços. Outro desafio está no gasto dos recursos. A tomada de decisão da gestão, a capacidade técnica dos atores envolvidos, a arrecadação, a priorização do governo local, as mudanças legislativas e de regras sobre o uso dos recursos, entre outros aspectos, dificultam que os municípios gastem os recursos enviados. É nítida a necessidade de regras para fiscalização, transparência e responsabilização do gasto público, porém, por vezes, as regras não são claras ou não contemplam as realidades e necessidades dos diferentes municípios. Esse desafio se reflete, anualmente, em restos a pagar, saldos em contas e devolução de recursos, entre outros manejos realizados na tentativa de sanar o desafio do gasto desses recursos. Por fim, trazendo uma questão de experiência com a gestão municipal, ouvi algumas vezes de secretários de saúde e até mesmo de alguns prefeitos sobre a dificuldade de desenvolver os projetos na área da saúde dentro de seus municípios por não haver uma relação fluida com os contadores ou administradores financeiros. Essa questão indica uma dificuldade técnica de pessoas capacitadas dentro dos municípios, principalmente aqueles menos desenvolvidos, prejudicando todo o processo de financiamento.
Que medidas têm sido tomadas para superar esses desafios? Elas têm sido eficazes?
Akeni Coelho: As medidas apresentadas pelo Governo para esses desafios foram previstas, em parte, no começo da aplicação do novo modelo, incluindo o mecanismo de compensação dos valores, a adaptabilidade ao modelo e a definição conjunta dos fatores considerados. Essas e outras medidas excepcionais – como portarias de reparação – auxiliaram para que os municípios tivessem menos perdas, porém, ainda assim, houve perdas importantes, mostrando a falta de eficácia dessas medidas específicas. Quanto aos outros desafios, o Ministério da Saúde tenta ampliar a capacitação dos agentes, desenvolvendo materiais, cursos e conferências para discutir o tema e aumentar a capacidade técnica dos municípios.
Com base na sua pesquisa, o que você recomendaria para aperfeiçoar o financiamento da APS?
Akeni Coelho: Com base na pesquisa e na minha experiência, foi possível observar as dificuldades dos gestores municipais na execução dos recursos e, também, nos processos de arrecadação. É preciso, portanto, discutir mais sobre todo o ciclo do financiamento, considerando fatores além dos financeiros, como as necessidades locais, as capacidades técnicas e operacionais da gestão dos municípios, as questões políticas, a força de trabalho, a capacitação contínua dos servidores e a participação social nas decisões, para, então, desenvolver programas essenciais do Governo Federal baseados nessas diferentes realidades. Essas considerações devem entrar na discussão para um aperfeiçoamento da distribuição dos recursos financeiros e, consequentemente, para uma melhora da prestação de serviços.
Poderia citar um exemplo?
Akeni Coelho: Um exemplo claro se dá anualmente com a devolução de recursos – um montante não utilizado devolvido ao Fundo Nacional de Saúde (FNS) por questões técnicas, operacionais ou outras situações que impedem a utilização desses recursos. Essa questão tem um impacto muito grande na realidade de municípios, que por vezes, precisam devolver recursos que poderiam ser aplicados nas necessidades locais. Com isso, eu recomendaria uma maior aproximação do Governo Federal com os municípios, de forma a tratar das necessidades locais. Recomendaria também o desenvolvimento de um sistema mais intuitivo, que pudesse abranger o passo a passo do ciclo da utilização dos recursos, propostas de utilização, exemplos de boas experiências e práticas equiparáveis já realizadas por municípios, prestação de contas de forma mais simples, abertura para registro de parceiros internacionais no apoio a projetos etc. Enfim, um sistema centralizado com todos os componentes que envolvem o financiamento da saúde.
Akeni Lobo Coelho é autor da dissertação intitulada “Avaliação dos repasses federais para Atenção Primária à Saúde em municípios brasileiros: quem ganha e quem perde?”, defendida em 29/09/2023, no Mestrado Profissional em Políticas Públicas em Saúde da Escola de Governo Fiocruz – Brasília, sob orientação do professor Everton Nunes da Silva.
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