Near miss materno é um conceito que permite avaliar a qualidade da assistência obstétrica. Qual a realidade do near miss materno no Brasil? E qual a situação das mulheres negras? Essas questões foram respondidas pelo mestre em Políticas Públicas em Saúde pela Fiocruz Brasília Carlos Alberto de Souza e Silva Junior, que realizou uma análise descritiva sobre o tema a partir do Sistema de Informações Hospitalares do SUS, entre 2016 e 2019.
A motivação do estudo foi a necessidade de incluir dados sobre a população negra no sistema de saúde, e suprir essa lacuna sobre uma população muito negligenciada, seja pelo racismo, pela desinformação ou pela falta de priorização de políticas públicas. “A minha trajetória profissional me possibilitou dedicar parte da minha vida à luta pela defesa dos direitos da população negra no Brasil”, revelou. Convidamos todos a conhecer mais sobre a pesquisa, em nossa série de divulgação científica “Fala aê, mestre”!
O que é o near miss e por que estudá-lo?
Carlos Alberto: A Organização Mundial da Saúde (OMS) define near miss como “mulher que quase morreu, mas sobreviveu a complicações graves durante a gravidez, o parto ou até 42 dias após o término da gestação”. O motivo de pesquisar sobre o near miss foi o elevado número de casos graves identificados durante e após o parto, e a grande incidência em mulheres negras.
Quais os critérios utilizados na pesquisa?
Carlos Alberto: Utilizamos na pesquisa dois critérios de análise: os “critérios de Waterstone”, mais sensíveis, baseados na ocorrência de, pelo menos, uma complicação do pós-parto, como pré-eclâmpsia ou hemorragia; e os “critérios de Mantel”, mais gerais, baseados em uma disfunção pós-parto que, se continuada, pode evoluir para o óbito.
Mulheres negras sofrem mais o near miss do que as brancas?
Carlos Alberto: Entre 2016 e 2019, o número absoluto de casos de near miss em mulheres negras de 15 a 49 anos foi, em média, cerca de 45.700, conforme os “critérios de Waterstone”, e 11.270, segundo os “critérios de Mantel”. Nas mulheres não negras, essas médias foram 22.290 (Waterstone) e 4.960 (Mantel), aproximadamente. Ou seja, a média foi 2,05 vezes maior para as mulheres negras, conforme os critérios de Waterstone, e 2,27 vezes maior para as mulheres negras, segundo os critérios de Mantel, quando comparadas às médias das mulheres não negras. Contudo, para uma grande quantidade de casos, não havia informação sobre raça/cor, o que aponta para a necessidade do preenchimento desse quesito.
Os resultados da pesquisa sugerem racismo estrutural na saúde. O que isso significa?
Carlos Alberto: Racismo estrutural é o termo usado para reforçar o fato de que há sociedades estruturadas com base na discriminação e que privilegiam algumas raças em detrimento de outras. O racismo estrutural nas instituições é verificado por meio de práticas e comportamentos discriminatórios naturalizados no cotidiano de trabalho, resultantes da ignorância, da falta de atenção, do preconceito ou de estereótipos racistas. Em qualquer situação, o racismo restringe o acesso das pessoas de grupos raciais ou étnicos discriminados aos benefícios gerados pelo Estado e pelas instituições que o representam.
A pesquisa identificou outros fatores relacionados ao near miss materno?
Carlos Alberto: Os dados analisados também mostraram que a proporção de near miss é muito maior entre as mulheres não inscritas no pré-natal, de acordo com ambos os critérios utilizados. Dessa forma, há indícios de que o near miss materno está intimamente ligado a condições socioeconômicas e raciais. É possível que, quanto menor o nível de organização dos serviços de saúde na atenção básica, piores serão os desfechos relacionados à saúde materna, refletindo as iniquidades sociais e raciais em saúde.
Carlos Alberto de Souza e Silva Junior é autor da dissertação “Mulheres negras em near miss materno no Brasil: uma análise descritiva a partir do Sistema de Informações Hospitalares do SUS, entre 2016 e 2019”, defendida em 3 de julho de 2020, com orientação da professora Denise Oliveira e Silva.
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