Fala aê, mestre: pandemia, hábitos alimentares e serviço público

Fernanda Marques 3 de setembro de 2021


A necessidade de distanciamento como medida de controle da Covid-19 pode ter como consequência, para algumas pessoas, hábitos alimentares não saudáveis, acarretando um aumento da carga de doenças relacionadas à nutrição. Para outras pessoas, porém, essa necessidade de distanciamento pode ter como efeito melhores comportamentos nutricionais, como cozinhar refeições caseiras. Compreender como funcionaram essas questões, durante a pandemia, para um grupo de servidores públicos federais foi o objetivo da dissertação da nutricionista Ana Carolina Floresta, egressa do Mestrado Profissional em Políticas Públicas em Saúde da Fiocruz Brasília.

 

De acordo com Ana Carolina, “se essas pessoas foram, de certa forma, ‘obrigadas’ a fazer as refeições em casa, é importante aproveitar esse movimento para estimular a manutenção desse e de outros hábitos saudáveis em longo prazo, e tentar tirar o máximo de proveito desse impulso, em uma escala mais ampla no futuro, com menor consumo de alimentos ultraprocessados e escolhas alimentares mais conscientes”. A pesquisadora destaca também a importância da saúde mental, que sofreu grande impacto durante a pandemia, com possíveis reflexos negativos nos hábitos alimentares. “Merecem atenção ações educativas que promovam controle da ansiedade e do estresse, que foram exacerbados para uma parcela significativa da população”, ressalta.

 

Nesta entrevista da série “Fala aê, mestre”, Ana Carolina comenta diferentes aspectos do seu estudo e como ele contribui para reforçar as recomendações do Guia Alimentar para a População Brasileira.

 

O que motivou a escolha de realizar um estudo com servidores de instituições públicas federais?

Ana Carolina: Por tratar-se de um mestrado profissional, busquei o público que fazia parte da minha rotina laboral, em especial os atendidos pelo Programa Equilíbrio. Ao sermos surpreendidos pela Covid-19, vimos a oportunidade de investigar os impactos da pandemia na saúde desses servidores, uma vez que muitos aspectos da rotina e do estilo de vida dos indivíduos foram alterados com a institucionalização do trabalho remoto.

 

O que é o Programa Equilíbrio?

Ana Carolina: É uma atividade de educação em saúde realizada em grupo, com o objetivo de promover a alimentação saudável, a prática regular de exercícios físicos e a saúde mental, com uma visão integral dos sujeitos. O Programa é realizado por equipe multiprofissional (nutricionistas, psicólogos e educador físico) e destinado a servidores públicos de instituições públicas de Brasília que mantêm acordo de cooperação técnica para programas de promoção à saúde, como o Ibama, a Universidade de Brasília e a Fiocruz. O Programa Equilíbrio, que vem sendo executado desde 2012, foi desenvolvido em consonância com a Política de Atenção à Saúde do Servidor e as diretrizes gerais de promoção da saúde do servidor público federal. O ambiente de trabalho tem sido descrito como promissor para a educação em saúde direcionada a adultos, assim como a escola é para as crianças. .

 

Na primeira parte do estudo, com os 55 questionários online respondidos, quais foram os principais resultados?

Ana Carolina: A maioria dos respondentes foram mulheres de 41 a 60 anos, casadas ou em união estável, com pós-graduação, excesso de peso e pelo menos um fator de risco para Covid-19. Com a pandemia, houve aumento nos hábitos de cozinhar, higienizar os alimentos e praticar exercícios físicos. Durante o confinamento, houve ligeiro aumento no consumo de frutas e hortaliças, e redução de doces, fast-food, frituras e alimentos industrializados. Os participantes da pesquisa, em sua maioria, revelaram hábitos e práticas alimentares congruentes às recomendações do Guia Alimentar da População Brasileira. No entanto, destaca-se que a piora dos hábitos alimentares foi associada a maiores níveis de ansiedade, ao ganho de peso e à convivência com filhos menores de idade.

 

O que é o Guia Alimentar e, a partir da pesquisa, quais ações poderiam ser desenvolvidas para uma maior adesão às recomendações do Guia?

Ana Carolina: O Guia Alimentar para a População Brasileira é um instrumento para apoiar e incentivar práticas alimentares saudáveis no âmbito individual e coletivo, bem como para subsidiar políticas, programas e ações que visem incentivar, proteger e promover a saúde e a segurança alimentar e nutricional da população. O Guia Alimentar propõe que alimentos in natura ou minimamente processados, em grande variedade e predominantemente de origem vegetal, sejam a base da alimentação, além de valorizar o ato de comer e a comensalidade, abordando as circunstâncias – tempo, foco, espaço e companhia – que influenciam o aproveitamento dos alimentos e o prazer proporcionado pela alimentação.

 

Quais os objetivos da segunda parte do estudo, com as 18 entrevistas em profundidade?

Ana Carolina: Essa fase investigou a população com sobrepeso e obesidade, que, em sua maioria, também acumulava outro fator de risco para formas graves da Covid-19, como a hipertensão. Estudos recentes demonstraram que pessoas com excesso de peso estão sendo muito impactadas pela pandemia. Tem sido observada uma tendência a comportamentos nutricionais bastante desfavoráveis, com aumento da ansiedade, associação a alimentos com alta densidade energética, especialmente os doces, e consequente ganho de peso. O peso ganho neste curto período de tempo pode se tornar permanente em alguns indivíduos e ainda levar a mais ganho de peso no futuro, sobretudo se os comportamentos nutricionais desfavoráveis observados durante o isolamento não forem revertidos. Isso é preocupante especialmente para aqueles indivíduos que já estavam com sobrepeso ou obesos no início da pandemia, e que já apresentavam dificuldades em adotar hábitos mais saudáveis. As entrevistas em profundidade, portanto, tiveram como objetivo identificar as principais barreiras e obstáculos referidos para escolhas alimentares saudáveis no contexto da pandemia, e também os aspectos positivos, como as estratégias de autocuidado, dietéticas e culinárias adotadas por esses servidores para manterem bons hábitos, apesar do contexto adverso.

 

Como a pandemia afetou as práticas alimentares dos entrevistados?

Ana Carolina: A maior parte dos servidores disse ter mudado seus hábitos alimentares após o início da pandemia. Houve mudanças na forma de aquisição, com uso de aplicativos para compra de alimentos em supermercados ou de refeições prontas; e também mudanças no preparo das refeições, que passaram a ser realizadas com muito mais frequência em casa, além do maior cuidado com a higienização dos alimentos. Do ponto de vista pessoal, para 45,5% os hábitos ficaram mais saudáveis e para 36,4% os hábitos pioraram durante a pandemia. 

 

O que os indivíduos perceberam como melhora e piora em seus hábitos alimentares durante a pandemia?

Ana Carolina: Entre as mudanças positivas, percebeu-se aumento do preparo das refeições em casa, seja pela indisponibilidade dos restaurantes, seja pelo maior tempo disponível, além do maior consumo de frutas e hortaliças, e melhor higienização dos alimentos. Entre aqueles que perceberam piora em seus hábitos alimentares, houve relatos de indivíduos que passaram a comer mais devido à ansiedade, especialmente doces; influência de membros da família para comer alimentos pouco saudáveis; maior consumo de refeições delivery, com opções não saudáveis, na maioria das vezes; e menor variedade de alimentos, entre aqueles que costumavam comer sempre em restaurantes e/ou que não sabiam ou não tinham o hábito de cozinhar.

 

Quais fatores contribuem para hábitos alimentares não saudáveis?

Ana Carolina: A ansiedade foi o principal aspecto relatado para piora dos hábitos alimentares, especialmente para o aumento no consumo de doces. A sobrecarga de trabalho – devido à adaptações ao trabalho remoto ou ao acúmulo com as tarefas domésticas – também foi apontada como responsável pela piora dos hábitos alimentares, mas esses aspectos foram mais evidentes em servidores que ocupavam cargos de gestão e naquelas famílias com filhos em idade escolar.

 

E quais fatores contribuem para a adoção de hábitos alimentares saudáveis?

Ana Carolina: Mais tempo para o autocuidado, como o preparo das refeições em casa e a prática de exercícios físicos. A possibilidade do trabalho remoto foi relatada como positiva pela maioria dos participantes, especialmente por reduzir o tempo de deslocamento, o que é um fator muito relevante em Brasília.

 

Ana Carolina da Cunha Floresta Lima é autora da dissertação “Práticas alimentares de servidores públicos federais com excesso de peso, no contexto da pandemia de Covid-19”, defendida em 11/06/2021, com orientação da professora Denise Oliveira e Silva.

 

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