Analisar instrumentos normativos propostos pelo Ministério da Saúde para o enfrentamento da Covid-19 e voltados à atenção da população negra: este foi o objetivo de uma pesquisa realizada no Mestrado Profissional em Políticas Públicas em Saúde da Escola de Governo Fiocruz – Brasília. Dos 198 instrumentos analisados pela engenheira ambiental Isabela Coelho Moreira, 20 se destinavam, direta ou indiretamente, à atenção da população negra, que foi severamente afetada durante a pandemia. Os dados, portanto, evidenciam a fragilidade dos avanços alcançados no campo da igualdade racial. Em seu trabalho, Isabela propõe reflexões e estratégias para dirimir esse retrocesso e fazer o Brasil avançar em políticas públicas de combate ao racismo. Saiba mais sobre a pesquisa nesta entrevista da série de divulgação científica “Fala aê, mestre”.
Em sua pesquisa, você fez um levantamento dos determinantes sociais da saúde da população negra no contexto pré-pandêmico. O que revelou esse levantamento? Como a pandemia impactou esses determinantes?
Isabela Coelho: Com a pesquisa, foi possível identificar uma acentuação das iniquidades raciais no campo dos determinantes sociais da saúde com os efeitos da pandemia da Covid-19. Realizei um breve comparativo entre alguns determinantes de saúde no cenário brasileiro pré-pandemia e após a declaração, em março de 2020, do estado de emergência em saúde pública, fazendo o recorte dos dados pesquisados com critério raça/cor. Foram apresentados dados sobre: mercado de trabalho e distribuição de renda; pessoas abaixo da linha da pobreza; violência; educação, participação e gestão política. De modo geral, observou-se uma piora nos dados relativos a esses aspectos para a população negra, demonstrando que os parâmetros analisados foram intensificados para esse grupo da população.
A pesquisa também identificou 20 instrumentos normativos propostos pelo Ministério da Saúde para o enfrentamento da Covid-19 voltados à atenção da população negra. Em linhas gerais, como você descreveria esses documentos?
Isabela Coelho: Foram pesquisados quatro tipos de documentos: portarias, notas técnicas, recomendações e planos. Todos publicados pelo Ministério da Saúde para o enfrentamento da Covid-19, no período entre 3 de fevereiro de 2020 — quando foi publicada a Portaria nº 888, que declarou estado de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional — até o dia 31 de dezembro de 2020. Realizei a busca textual por termos que pudessem identificar ações de enfrentamento da pandemia voltadas à população negra e, após essa busca, classifiquei cada instrumento da seguinte forma: i) contempla plenamente: instrumentos que possuem um ou mais termos identificados e conferem atenção especial à população negra; ii) contempla parcialmente: instrumentos que possuem um ou mais termos identificados e não conferem atenção especial à população negra, destinando-se a outros grupos ou destoando da temática étnico-racial; e iii) não contempla: instrumentos que não possuem os termos identificados e não conferem atenção especial à população negra. Dos 198 instrumentos investigados, em apenas 20 foram identificados aspectos voltados à atenção da população negra, de forma direta ou indireta. Desses 20 instrumentos, 19 eram recomendações. Embora emitidas orientações para atenção especial à população negra, elas não foram acatadas a contento, pois os principais instrumentos, como o Plano de Nacional de Operacionalização da Vacina contra o Vírus da Covid-19, não abordam a população negra como um público vulnerabilizado.
Os instrumentos analisados foram capazes de contribuir para reduzir as desigualdades raciais e de saúde? Por quê?
Isabela Coelho: Os instrumentos analisados demonstraram que, por parte dos gestores públicos à frente das cadeiras decisórias do Ministério da Saúde, à época, ocorreu uma negligência em realizar ações efetivas para combater as desigualdades raciais, intensificadas pela pandemia. Os instrumentos norteadores das ações para o enfrentamento da Covid-19 não contemplavam medidas para redução das desigualdades raciais.
Na dissertação, você aponta a fragilidade dos avanços no campo da igualdade racial e de saúde. Qual reflexão você propõe nesse sentido?
Isabela Coelho: Diante do cenário identificado, proponho que a pauta racial seja tratada de forma transversal pelas Secretarias que compõem o Ministério da Saúde, na tentativa de se obter uma abordagem holística dessa pauta. Uma das mediadas já implementadas na atual gestão foi a criação de uma Assessoria para Equidade Racial em Saúde e, no ano de 2023, também foi publicada a Portaria nº 2.198, que instituiu a Estratégia Antirracista para a Saúde, com o objetivo de “garantir a promoção da equidade étnico-racial e estabelecer que o enfrentamento do racismo contra negros, indígenas e outros grupos minoritários esteja presente em todas as políticas de saúde”. Acredito que ações como essas corroboram para uma estruturação do Ministério da Saúde em prol do enfrentamento das iniquidades raciais.
Que outras estratégias você recomendaria para que, de fato, o Brasil avance nesse campo?
Isabela Coelho: Acredito que setores criados na estrutura organizacional de outros Ministérios (além da Saúde) e dedicados a introduzir a temática racial na abordagem dos diversos temas das políticas públicas seriam a base para disseminar o olhar da perspectiva racial no âmbito da gestão pública de forma geral. No cenário atual, é de extrema importância reconhecer a criação do Ministério da Igualdade Racial, que denota a relevância e a necessidade de que as políticas públicas se voltem para o enfrentamento do racismo. Medidas estruturais na gestão pública, como essa, são fundamentais para uma mudança efetiva da perspectiva racial, inclusive no âmbito da saúde.
Isabela Coelho Moreira é autora da dissertação intitulada “Análise das políticas públicas sanitárias de enfrentamento à Covid-19: um olhar para a população negra brasileira”, defendida em 31/03/2023, no Mestrado Profissional em Políticas Públicas em Saúde da Escola de Governo Fiocruz – Brasília, sob orientação da professora Daniela Sanches Frozi.
Confira aqui outras entrevistas da série de divulgação científica “Fala aê, mestre”