Fala aê, mestre: valorização da APS para enfrentar emergências sanitárias

Fernanda Marques 19 de abril de 2024


A Atenção Primária à Saúde (APS) desempenha um papel fundamental no Sistema Único de Saúde (SUS): ela é porta de entrada para o sistema de saúde, e pode atender até 90% das necessidades de saúde do cidadão e da comunidade. Portanto, não seria de se estranhar que a APS pudesse contribuir significativamente para o enfrentamento da pandemia de Covid-19. E ela contribuiu, como mostram experiências em diversos países. No Brasil, as equipes e serviços da APS tentaram se manter firmes diante da crise, mas não foram devidamente valorizadas e contempladas nos planos e investimentos do governo federal. O resultado foi uma gestão desarticulada para lidar uma doença grave e até então desconhecida. O fisioterapeuta Leonardo de Souza Oliveira analisou esse quadro à luz da Teoria da Produção Social. Em sua dissertação, realizada no Mestrado Profissional em Políticas Públicas em Saúde da Escola de Governo Fiocruz – Brasília, ele defende que a APS, apesar da baixa densidade tecnológica de que necessita para atuar, pode e deve estar preparada e fortalecida para quaisquer situações de emergência sanitária, seja um novo vírus respiratório, um desastre climático ou uma arbovirose velha conhecida, como a dengue. Com base em seu estudo, o egresso sugere um modelo de reorganização da APS em torno de sete eixos, de modo a contribuir para o enfrentamento de futuras emergências sanitárias. Confira a seguir a entrevista de Leonardo na série de divulgação científica “Fala aê, mestre”.

 

Dentro da estrutura do SUS, qual o papel da Atenção Primária à Saúde (APS)?

Leonardo de Souza Oliveira: Desde a criação do SUS, a APS tem se difundido como elemento fundamental para as ações individuais e coletivas no sistema de saúde, principalmente na promoção, proteção e prevenção de agravos, diagnóstico, tratamento, reabilitação e manutenção da saúde. No Brasil, pode-se dizer que, com a expansão do Programa Agentes Comunitários de Saúde (PACS) e do Programa Saúde da Família (PSF), no início da década de 1990, a APS foi destacada como um dispositivo que tem o propósito de reorganizar o cuidado em saúde, com vistas a garantir uma assistência integral, universal e equitativa. A literatura científica comprova o poder da APS em um sistema de saúde, e traz narrativas que alicerçam o papel desse nível de atenção, principalmente no Brasil, um país continental, miscigenado e com uma conjuntura política adversa que, há alguns anos, vem desmontando o SUS. Desde então, o papel estratégico da APS no SUS se molda na luta pelo direito do cidadão e da comunidade para o acesso às equipes de Saúde da Família (eSF) e Saúde Bucal (eSB), às equipes Multidisciplinares (eMulti) e às equipes atuantes com populações vulnerabilizadas, como as dos Consultórios na Rua (eCR) e as de Saúde da Família Ribeirinhas (eSFR), bem como a todos os demais serviços que a APS deve dispor, associados aos serviços de diferentes densidades tecnológicas que compõem a Rede de Atenção à Saúde (RAS).

 

Por que a APS pode ser considerada um elemento fundamental, também, na contenção de emergências sanitárias?

Leonardo de Souza Oliveira: A APS é porta de entrada para o sistema de saúde, e pode atender de 80 a 90% das necessidades de saúde do cidadão e da comunidade. Os recursos de que a APS dispõe consideram, principalmente, ações voltadas para a manutenção e prevenção da saúde nos dias normais e, também, em uma emergência sanitária.  É necessário que a gestão olhe para a APS como protagonista no enfrentamento de uma emergência sanitária, fomentando estratégias que identifiquem os possíveis riscos e possam mitigar os efeitos do fenômeno. Minha dissertação, ao estudar as ações no contexto da pandemia de Covid-19, mostra como a APS pode ser redesenhada com elementos que vão favorecer o combate a uma nova pandemia.

 

De que forma a APS foi inserida na estratégia do governo federal para o enfrentamento da pandemia de Covid-19?

Leonardo de Souza Oliveira: De antemão, é importante considerar que a pandemia de Covid-19 evidenciou um conjunto de fatores tanto de conflito como de cooperação entre diversos atores sociais. Observou-se a fragilidade do sistema público de saúde no combate à emergência, principalmente com a disseminação de valores que não estavam de acordo com a ciência. Na APS, isso foi observado com a desvalorização desse nível de atenção, tanto que o plano de contingência do governo federal trazia recomendações fora do escopo das ações rotineiras da APS, desconsiderando, por exemplo, o trabalho dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS), os grupos de hipertensos e diabéticos, o cuidado com as gestantes e o suporte para pacientes crônicos, dentre outros aspectos relevantes para o cuidado. Esses dados reforçam que a APS deve ser lembrada em situações emergenciais, juntamente com outros níveis de atenção, sobretudo para a ampliação do financiamento. Entretanto, mesmo com os desafios identificados, as equipes e serviços da APS tentaram se manter firmes no enfrentamento da pandemia de Covid-19 no Brasil. Diversos países alcançaram bons resultados ao implementar na APS, de forma precoce, medidas de combate ao novo coronavírus, incluindo ações de educação em saúde, rastreamento de contatos, distanciamento social, uso de máscaras e outros cuidados preventivos. A Covid-19 mostrou como a APS é importante em situações de emergência e, no Brasil, deu visibilidade ao quanto nosso sistema de saúde estava despreparado diante da pandemia, apesar da baixa densidade tecnológica que a APS necessita para atuar na mitigação dos riscos de uma nova doença. A experiência brasileira da pandemia de Covid-19 e outras experiências internacionais precisam ser lembradas por todos, em especial nossos gestores e pesquisadores, para que alcancemos êxito em futuras situações de emergência sanitária.

 

O que diz a Teoria da Produção Social? Como essa teoria ajuda a compreender por que a APS não foi priorizada pelo governo federal na resposta à pandemia?

Leonardo de Souza Oliveira: A Teoria da Produção Social, consolidada pelo chileno Carlos Matus, tem alicerçado processos que problematizam a realidade social como um jogo capaz de embasar as ciências e as técnicas de governo. Para o autor, a complexidade do sistema social evidencia fatores políticos que dialogam diretamente com o reflexo do processo de relações intergovernamentais, compreendendo, então, que a gestão estratégica de uma organização deve considerar as relações de cooperação e conflito entre os atores. Tendo em vista a complexidade de governar grandes sistemas públicos de saúde, como o SUS, Matus avalia a necessidade de articular três variáveis, o chamado Triângulo de Governo: projeto de governo, governabilidade e capacidade de governo. Juntas, essas variáveis compreendem a complexidade de governar e, na ausência delas, torna-se impossível alcançar os objetivos estratégicos da organização. Ao analisar os elementos do combate à pandemia na APS com o arcabouço da Teoria da Produção Social, foi possível identificar que houve fragilidade do sistema público de saúde, com falta de articulação das ações propostas no plano do governo federal, assim como de capacidade da própria gestão em intervir no problema.

 

Como a sua pesquisa pode contribuir para melhores estratégias de enfrentamento de futuras emergências sanitárias?

Leonardo de Souza Oliveira: O estudo apresentou como a APS foi incorporada no combate à pandemia da Covid-19, considerando aspectos da Teoria da Produção Social. Nesse sentido, traz também elementos de como podemos estar preparados, nesse nível de atenção, para conter uma doença nova. O Brasil já enfrentou outras situações emergenciais na saúde pública, como a gripe espanhola, no passado, a H1N1, no ano de 2009, e a dengue, nos dias atuais. A pesquisa propõe um caminho focado na resiliência obtida com a Covid-19, voltado para futuras situações, seja no combate a um vírus respiratório, uma arbovirose ou um desastre meteorológico. É preciso que a APS esteja preparada e fortalecida para quaisquer situações de emergência sanitária. A APS sempre terá como contribuir. O trabalho sugere um modelo de reorganização da APS em situações de emergência, indicando sete eixos que, juntos, podem contribuem para o controle de uma pandemia ou outras crises. Esse modelo, além da continuidade das próprias ações da APS, propõe um conjunto de ações para gestão estratégica, vigilância em saúde nos territórios, atenção aos usuários infectados, apoio técnico-científico e educacional aos trabalhadores da APS, suporte emocional a esses trabalhadores, suporte social a grupos vulnerabilizados e um eixo transversal de base territorial e comunitária. Os achados e contribuições da pesquisa apontam para o fortalecimento da APS como medida essencial ao combate de doenças ou situações emergenciais, em parceria com os outros níveis de atenção à saúde.

 

Leonardo de Souza Oliveira é autor da dissertação “A Atenção Primária à Saúde no Combate à Pandemia da Covid-19: o caso brasileiro à luz da teoria da produção social”, defendida em 27/10/2023, no Mestrado Profissional em Políticas Públicas em Saúde da Escola de Governo Fiocruz – Brasília, sob orientação do professor Wagner Martins e coorientação da professora Roberta de Freitas Campos.