“Quando instituições de pesquisa e da sociedade civil ocupam seu lugar para apresentar alternativas de formas de convívio e vida coletiva mais justa, considerando a beleza da diversidade de todas as pessoas que merecem ter acesso a todos os seus direitos, se exerce uma potência maior e se cumprem a missão e os valores da Fiocruz”. Esta foi parte da fala da diretora da Escola de Governo Fiocruz-Brasília, Luciana Sepúlveda, na abertura do 1º Seminário Brasileiro sobre Avaliação Biopsicossocial da Deficiência, transmitido ao vivo hoje e amanhã (13 e 14 de abril) no canal da Fiocruz Brasília no Youtube. Ela ressaltou que a Fiocruz tem como valor basilar a democracia, entendida como garantia de direitos, e tem se esforçado por ser mais inclusiva e garantir acessibilidade no cotidiano. A instituição possui uma política sobre o tema, um Comitê Nacional de Acessibilidade e Inclusão da Pessoa com Deficiência e também representações desse comitê em diferentes unidades regionais pelo Brasil, como é o caso da Fiocruz Brasília.
O evento foi organizado em parceria da Rede-In com a Fiocruz para discutir a regulamentação da lei brasileira de inclusão, com foco em seu segundo artigo, que trata da necessidade de avaliação da deficiência de maneira biopsicossocial por equipe composta por diferentes profissionais e que deve considerar os impedimentos da pessoa na realização de funções e nas estruturas de seu corpo, os fatores socioambientais, psicológicos e pessoais, a limitação no desempenho de atividades e a restrição de participação. A diversidade de instituições que contribuíram para a realização do evento, 19 no total, demonstra a interdisciplinaridade, o compromisso ético e a força desse campo de ensino, pesquisa e prática em saúde.
Da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Raul Paiva lembrou a necessidade de qualquer avaliação contar com participação da sociedade civil e não ser apenas decidida pelos gestores. Concorda com ele o representante da Associação Nacional de Ensino e Pesquisa em Políticas Públicas e da Rede de Pesquisadores em Gestão Social, professor Edgilson Araújo. Segundo ele, o evento mobiliza uma importante arena de políticas públicas e a avaliação do modelo biopsicossocial em busca de um modelo único é um marco na garantia de direitos. O tema não deve ser tratado com base em interesses privados, por meio de processos de cooptação de uma parte da sociedade civil, do negacionismo, do autoritarismo e do desrespeito ao movimento político das pessoas com deficiência, pois isso nega o direito de existir desses cidadãos. “Não podemos regredir mais, esse seminário marca a posição epistemológica, ontológica, deontológica e política pela defesa do modelo de avaliação biopsicossocial da pessoa com deficiência”, disse.
Da Associação Brasileira de Antropologia, Ana Paula Vencato, lembrou que iniciativas como esse evento online são fundamentais para pesquisas e políticas públicas, e local de aprendizagem com os sujeitos que ocupam diferentes espaços importantes para o debate. A representante da Associação Nacional de Pesquisadores em Educação, Giovana Lunardi, disse que é necessário discutir caminhos para que efetivamente políticas públicas sejam desenvolvidas para garantir o acesso da população com deficiência. Para Cristina Biz, da Sociedade Brasileira de Fonoaudiologia, é importante defender a incorporação do modelo biopsicossocial na pesquisa, na assistência e no ensino, como um compromisso ético. Ela espera que o Seminário se torne um fórum permanente, para que juntos, em um coletivo, se consiga implementar a avaliação nacional pelo modelo biopsicossocial.
Da Associação Brasileira de Saúde Mental, Leonardo Pinho ressaltou que o seminário demonstra uma grande potência de mobilização para o tema da avaliação biopsicossocial, dada a rede nacional para organização, realização e participação no evento. O professor Alcindo Ferla, da Rede Unida, adiantou que o tema da avaliação biopsicossocial deve aparecer na 17ª Conferência Nacional de Saúde, prevista para o ano que vem. Participaram também da abertura do evento Monica Kassar, da Associação Brasileira de Pesquisadores em Educação Especial; Weberson Santos, do Coletivo Brasileiro de Pesquisadores dos Estudos da Deficiência – Mangata; Juliana Melin, da Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social, e Maria Alice Caldas, da Associação Brasileira de Ensino em Fisioterapia.
Aula magna
Duas brasileiras ministraram a primeira parte da conferência de abertura, que apresentou reflexões sobre o modelo social da deficiência e avaliação. A médica, ex-professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro e ex- coordenadora nacional para integração da pessoa com deficiência na Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, Isabel Maior, é pessoa com deficiência, tetraplégica devido a uma lesão medular cervical desde 1976. Ela lembrou o período da ditadura militar, onde houve opressão das ideias, o que, na visão dela, levou – e leva hoje ainda – a uma ampliação da desigualdade. “Se não houvesse tanto preconceito, capacitismo e discriminação, teríamos todas as pessoas com deficiência recebendo atendimento educacional e inclusão cultural, esportiva, no lazer e no mundo do trabalho”, disse. Ela resgatou o histórico e uma série de documentos e legislações internacionais sobre a pessoa com deficiência. Hoje, mais de 180 países já ratificaram a Convenção da ONU sobre o tema e tem legislação sobre a pessoa com deficiência. Ela espera que esse conjunto de profissionais e instituições presentes no evento e representantes da maior parte do conhecimento produzido no Brasil nessa área possam se mobilizar e impedir qualquer retrocesso nos direitos das pessoas com deficiência.
Já a psicóloga e pesquisadora da Universidade de Lucerna, na Suíça, Carla Sabaliego analisou o Índice de Funcionalidade Brasileiro (IFBr) à luz do modelo de deficiência da Organização Mundial da Saúde (OMS). Ela apresentou uma série de pesquisas que desenvolveu fora do Brasil nessa área e ressaltou a necessidade de se compreender a deficiência como algo contínuo, que a pessoa não tem e deixa de ter, mas como um aspecto da vida que vai de deficiências leves a deficiências graves. “Deficiência não é um atributo da pessoa, mas o resultado da interação entre uma pessoa com uma condição de saúde e os fatores contextuais.” Em um de seus estudos, comparou os instrumentos usados para efetivação de direitos das pessoas com deficiência no Brasil e na Alemanha, o Índice de Funcionalidade Brasileiro e o MDS (Modelo de Pesquisa de Deficiência, em inglês Model Disability Survey), respectivamente, e notou que o índice brasileiro é mais completo em determinados itens, tais como os que fazem referência às atividades desenvolvidas pela pessoa e também na descrição muito precisa das funcionalidades, por meio de uma longa bateria de questões. A publicação, de 2016, com os resultados da pesquisa está disponível online.
A brasileira ressaltou que o envolvimento de pessoas com deficiência na construção deste instrumento de avaliação e seu direito de participar, e de fato influenciar o processo de avaliação, é um diferencial que não se observa em outros países. O foco do instrumento na medição da independência da pessoa em relação a diversas áreas e o controle de qualidade, que prevê a possível modificação no instrumento, se necessário, foram pontos elogiados na pesquisa. “O IF-Br também se destaca ao operacionalizar o conceito de deficiência como produto da interação entre um problema de saúde e fatores ambientais, como proposto na Classificação Internacional de Funcionalidade (CIF) que é o quadro da Organização Mundial da Saúde para medir a incapacidade individual ou de uma população, mas que essa classificação é utilizada em diferentes países. A previsão de avaliação multiprofissional, responsabilizando médicos e assistentes sociais, garante perspectivas diferenciadas e complementares sobre a avaliação da deficiência, o que reflete plenamente o modelo biopsicossocial. Além disso, o instrumento altamente padronizado, a ser preenchido por dois profissionais independentemente, com altos níveis altos de confiabilidade e objetividade garantidos é algo que não se vê em outros países”, disse.
Ela sugere que é importante se adicionar ao IF-Br um módulo estruturado sobre fatores ambientais que responderia à Convenção da ONU: Quais adaptações do ambiente são necessárias para que a pessoa com deficiência possa participar plena e efetivamente da sociedade, em igualdade de condições com os demais? Ampliar o escopo do trabalho dos assistentes sociais já envolvidos na avaliação, permitindo maior abrangência dos fatores ambientais, em conformidade com a Convenção, também é algo que, na opinião dela, traria melhorias.
Na segunda parte da aula magna, o professor da Universidade de Lucerne, na Suiça, Jerome Bickenbach, apresentou a experiência de países europeus na avaliação das deficiências e enumerou alguns desafios para essa avaliação, tais como assegurar a validade e confiabilidade das avaliações, a busca de instrumentos que sejam fáceis de se coletar os dados de maneira rápida, científica, sem se ater a um questionário muito longo, e que seja seguro o suficiente para não possibilitar fraude. “Uma avaliação que demore três horas, pode até ser profunda, mas não é factível”, disse. Ele indicou o cronograma de avaliação de deficiência, da Organização Mundial da Saúde (Whodas 2.0) como uma ferramenta genérica, segura e confiável que pode ser adequada a qualquer tipo de deficiência, aplicado para a população em geral ou populações específicas e que mede a funcionalidade em seis aspectos da vida: cognição, mobilidade, autocuidado, interação com outras pessoas, atividades cotidianas e participação. A versão completa tem 36 itens e leva até 25 minutos para preenchimento do questionário.
Na sequência, a professora Aleksandra Posarac , do Banco Mundial, comentou sobre os obstáculos políticos para implementar novos instrumentos para avaliação de deficiências. Segundo ela, existe uma visão muito medicalizada da deficiência, centrada no ponto de vista estritamente médico quando, na verdade, o assunto envolve equipe multiprofissional. Ela citou que há certo preconceito contra a Classificação Internacional de Funcionalidade e ressaltou que um dos importantes benefícios da avaliação das deficiências está na identificação mais ágil de pessoas com transtorno mental, crianças e idosos A partir de sua experiência na área, ressaltou que é importante suporte político e econômico para implementação de um padrão de avaliação que deve estar nos planos dos governos e na mobilização das pessoas.
Clique aqui para assistir à gravação da primeira parte do evento.
O evento também contará com palestras sobre o índice de Funcionalidade Brasileiro Modificado e sobre a perspectiva da sociedade civil para a avaliação da deficiência e direitos humanos .
O encerramento do 1º Seminário Brasileiro sobre Avaliação Biopsicossocial da Deficiência vai ter como tema a Avaliação da deficiência: desafios e perspectivas nas políticas públicas, na tarde de amanhã, 14 de abril.