Refletir sobre a dimensão política do fenômeno do confinamento no Brasil a partir da análise de termos e expressões utilizados para se referir a indivíduos confinados e respectivas instituições. Este foi o objetivo de um estudo publicado na última edição dos Cadernos Ibero-Americanos de Direito Sanitário (CIADS), periódico científico do Programa de Direito Sanitário (Prodisa) da Fiocruz Brasília.
Os termos e expressões empregados em cada situação são carregados de significados sociais e políticos, e mudam ao longo do tempo. A decisão de não mais utilizar o nome lepra e substituí-lo por hanseníase teve como propósito reduzir o estigma da doença. Igualmente, tem sido recomendado o uso da palavra superencarceramento, em vez de superlotação: esta apontaria para o caminho de criação de novas unidades prisionais, enquanto a primeira indica a necessidade de reduzir a aplicação de penas privativas de liberdade, por meio de outras alternativas de sanções penais.
“Materiais educativos podem colaborar para que mudanças na terminologia governamental sejam incorporadas pelo público leigo e essas mudanças podem legitimar discursos e procedimentos médico-sanitários, como também jurídico-penais”, diz o artigo, assinado por Martinho Braga Batista e Silva e Helena Salgueiro Lermen, do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), e Adriana Kelly Santos, do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz).
Os pesquisadores estudaram a terminologia usada para se referir a indivíduos que vivem confinados – como privados de liberdade, com transtorno mental em conflito com a lei e com necessidades decorrentes do uso nocivo ou prejudicial de álcool e outras drogas – e às instituições responsáveis pela custódia desses indivíduos. O estudo se baseou na análise de documentos coletados nos sites do Ministério da Saúde e no Ministério da Justiça e Segurança Pública, que datavam do período de 1988 a 2018.
Entre leis, políticas, relatórios, manuais, cartazes e cartilhas, entre outros, foram analisados, ao todo, 147 documentos, muitos deles direcionados a trabalhadores e gestores, sendo 26 do site do Ministério da Justiça e Segurança Pública, e 121 do Ministério da Saúde. Os pesquisadores encontraram muito mais expressões que se referiam aos indivíduos do que às instituições: 412 contra 274, no caso dos documentos do site do Ministério da Justiça e Segurança Pública, e 619 contra 390, no caso dos documentos do site do Ministério da Saúde.
“Há mais categorias para se referir às populações-alvo das políticas sanitárias e penitenciárias do que aos espaços nos quais se recomenda que elas sejam alocadas. Em algumas áreas técnicas, quase cinco vezes mais, como se o processo de formulação dessas formas de ação estatal colaborasse para visibilizar indivíduos e ocultar instituições”, resume o artigo.
Os resultados também mostraram que, nos documentos mais recentes do setor da justiça, as instituições são frequentemente chamadas de estabelecimentos, unidades e sistemas, enquanto termos como cadeia, prisão ou presídio passam a ser menos utilizados. Já no setor da saúde, “observamos o apagamento de designações estigmatizantes como leprosários, manicômios e asilos”, comentam os autores no artigo.
Em relação aos indivíduos, são chamados principalmente de populações e pessoas, como nas expressões pessoas privadas de liberdades ou pessoas com transtornos mentais. Os pesquisadores verificaram que, no setor da justiça, em 2014, ano em que foi promulgada a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde no Sistema Prisional (PNAISP), a palavra população começou a ser mais empregada, “sobretudo quando vinculada aos segmentos minoritários dentro das prisões, como população carcerária feminina e população LGBTQIA+ em situação de privação de liberdade”. A análise documental revelou, contudo, a ausência de espaços específicos para a população LGBTQIA+, assim como improvisos no processo de confinamento de mulheres.
Ainda de acordo com o artigo, “no setor da saúde, a ênfase aos marcadores etários parece acentuada”, aí incluídos registros como instituições de longa permanência para idosos e descrições de processos de vulnerabilização, como adolescentes vítimas de maus tratos e de violência. Observaram-se também registros com ênfase em termos biomédicos, como doente ou pessoa que tem hanseníase.
Trazendo como exemplo a permanência da palavra preso nos documentos governamentais, o artigo conclui que, “mesmo com a orientação das normativas para adoção de terminologias mais amplas e a inclusão de grupos sociais distintos, alguns termos resistem ao tempo e às novas convenções”.