Ricardo Valverde (Agência Fiocruz de Notícias)
A Assessoria Especial para Territórios do Ministério da Saúde (MS), a Secretaria de Periferias do Ministério das Cidades e o Laboratório da Inovação na Gestão Pública (Pólen) da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz) organizaram, na última semana,(25/8) uma oficina de trabalho que teve como objetivo elaborar uma abordagem que crie estratégias para aprofundar o enraizamento das políticas públicas nas comunidades. De acordo com os organizadores, o alinhamento de conceitos e visões vai ajudar a solidificar iniciativas no âmbito das três instituições. O assessor especial para Territórios do MS, Valcler Rangel Fernandes, que abriu a reunião, disse que a oficina faz parte do programa Periferia Viva. “Esta é a primeira etapa de um processo de formulação e colaboração mais profundo, que será desenvolvido a médio prazo e ao qual esperamos agregar outras parcerias, incluindo instituições públicas e a sociedade civil”.
Segundo Josué Medeiros, da Secretaria de Periferias do Ministério das Cidades, “o Periferia Viva é uma ação que pretende reconhecer, valorizar, potencializar e premiar iniciativas protagonizadas pela população que vive nas periferias e que contribuam para a redução das desigualdades, a qualificação e a transformação dos territórios periféricos, bem como para o exercício da participação e inserção social”. Podem concorrer iniciativas periféricas nas seguintes categorias: planejamento urbano, gestão de riscos e responsabilidade climática; soberania alimentar e nutricional; saúde integral e dignidade humana; economia solidária; acesso à justiça e combate às desigualdades; comunicação, inclusão digital e educação popular; e cultura e memória.
“O diálogo do Ministério das Cidades com o Ministério da Saúde e a Fiocruz é de grande importância para fortalecermos esta agenda e a ampliarmos. E em uma próxima oficina, provavelmente em Brasília, o objetivo é trazer outras instâncias e órgãos”, comentou Medeiros.
Para a coordenadora do Pólen, Ana Carneiro, a oficina atestou a importância da troca de experiências: “exploramos a essência do território como resultado da nossa participação no espaço geográfico, carregando a história dos movimentos e atores locais. Serviu para debatermos como podemos fortalecer as políticas públicas, trazendo maior efetividade para as periferias e promovendo uma participação ativa da população na construção dessas políticas”.
Segundo ela, a coordenação entre ministérios e a busca por sinergia nas ações são cruciais. “Acredito que, ao abordarmos a complexidade dos territórios, contribuímos significativamente para o programa Periferia Viva, que tem como objetivo criar um Brasil mais inclusivo e saudável para todos. A oficina é apenas o começo de um processo mais profundo e colaborativo que busca transformar realidades e fortalecer os laços entre instituições públicas e a sociedade civil”.
Valcler Fernandes afirmou que “o governo federal encara este momento histórico a partir de um contexto desafiador, já que houve o desmantelamento de muitas políticas públicas. Isso significa reverter processos fragmentados na implementação de programas e ações em nível local e promover uma participação social que traduza o desejo da população na elaboração e implantação dessas políticas. Abordar a questão dos territórios, na sua complexidade, contribui para a capilarização dessa estratégia no campo da saúde”.
Para o assessor especial do MS, é necessário “olhar para as periferias com outra lógica, sem estereótipos que ainda são fortes, como sendo lugares exclusivamente de violência e pobreza. É preciso ver a potência e os arranjos locais próprios de cada território, reconhecendo a diversidade das práticas sociais e assim elaborar as políticas públicas eficazes. E isso para além do recorte urbano, incluindo outros territórios periféricos, como a Amazônia, o campo, as águas etc.”. Fernandes observou que “é urgente fazer mais e melhor, já que os programas sociais foram em grande parte destruídos”.
Fernandes disse que, para uma estratégia com as periferias é importante desenvolver os seguintes elementos: negar um conceito de ordem e de comportamento social aceitos e definidos a partir de uma lógica dos grupos hegemônicos; recusar visões reducionistas, estereotipadas e desqualificadoras dos territórios periféricos; reconhecer as periferias pelo seu conjunto de práticas cotidianas materializadas nas potências inventivas, formas de ocupação do espaço e arranjos comunicativos próprios; reconhecer as práticas sociais e culturais das periferias como formas de afirmação e invenção de direitos, que necessitam ser garantidos na forma de políticas públicas; e refletir o conceito de periferias para além do recorte urbano, incluindo territórios em situação de vulnerabilidade.
“A sociedade está em grande parte dominada por representações das periferias e de seus moradores que são baseadas em estigmas. Essas representações estereotipadas sobre as periferias orientam, muitas vezes, políticas públicas e investimentos sociais privados”. O assessor do MS disse ainda que “territórios de periferias e favelas, sejam eles urbanos ou rurais, enfrentaram nos últimos seis anos o abandono do poder público e a ausência de investimentos básicos. A qualidade de vida desses coletivos foi drasticamente afetada”.
Ele também lembrou que, apesar dos reveses, houve resistência e que as periferias se mobilizaram para enfrentar situações graves, como as trazidas pela pandemia e suas consequências. “As periferias resistiram como potências amadurecidas. Os territórios se organizaram e, nacionalmente, deram soluções às suas próprias demandas. Houve a construção de várias iniciativas na vigilância territorial em saúde, a orientação de casos suspeitos para unidades de assistência, as redes solidárias para responder à insegurança alimentar, à saúde mental, à falta de informações confiáveis, a compra e entrega de remédios, dentre outras ações que salvaram vidas até a chegada da vacina”, enumerou Fernandes.
“É urgente colocar a periferia no orçamento, como foi enfatizado na Conferência Livre das Favelas e Periferias”, destacou Fernandes, que fez questão de mencionar o assassinato recente da yalorixá e líder quilombola Mãe Bernadete, mais uma vítima da violência contra grupos vulnerabilizados.
Presente à oficina, a deputada estadual do Rio de Janeiro Renata Souza (PSOL), nascida e criada na Favela da Maré, citou os muitos desafios na saúde pública. Ela ressaltou as ações executadas em comunidades e periferias fluminenses com o objetivo de mitigar os efeitos da pandemia sobre as populações mais vulneráveis, nos últimos dois anos. Em 2021, a Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) autorizou a doação de R$ 20 milhões de recursos próprios para a Fiocruz. A verba foi destinada, pela Lei 8972/20, à criação do Plano de Enfrentamento ao Coronavírus.
A Alerj também repassou à Secretaria Estadual de Saúde mais R$ 25 milhões destinados à Fiocruz para continuidade e ampliação das ações de saúde nas favelas em 2023. A iniciativa foi fruto de um esforço que juntou, à Fiocruz, instituições como UFRJ, Uerj, PUC-Rio, Abrasco, SBPC e organizações de favelas de todo o estado. Mais de 100 projetos foram aprovados na primeira etapa, sendo que 54 organizações receberam apoio financeiro e 40 outras estão aguardando liberação orçamentária para convocação.
De acordo com a deputada, “foi naquele momento que vimos a força da comunicação comunitária. Apenas 27% da população das comunidades não enfrentou problemas de insegurança alimentar. Mas, felizmente, mais de 80% das favelas contaram com coletivos de ajuda, que também se engajaram na luta contra as fake news e o negacionismo científico”.
Renata ressaltou que o edital foi inovador, com menos burocracia e facilitando que chegasse à população. “Queremos que o projeto 54 vezes Favela vire política nacional e o governo federal está comprometido com isso, favorecendo o protagonismo de quem está nos territórios”.
O vice-presidente de Ambiente, Atenção e Promoção da Saúde da Fiocruz, Hermano Albuquerque de Castro, disse que é preciso conhecer profundamente e trabalhar na lógica das periferias, que são muito diversas entre si. “Há problemas e potências diferentes em cada uma. No entorno da Fiocruz vemos a violência que massacra as comunidades. É um tema que precisa ser discutido com a população e para esse debate é fundamental a integração de outros ministérios”.
Diretora da Fiocruz Brasília, Fabiana Damásio fez uma apresentação sobre a parceria entre governo e sociedade civil e os desenhos possíveis a partir dessa cooperação. Ela abordou as existências, resistências e re-existências nos territorios, com suas diversidades, histórias, adversidades, violências e potências. E fez um reconhecimento da importância das lideranças comunitárias para o fortalecimento das políticas públicas.
Ela também comentou sobre as novas secretarias criadas no governo Lula, como a Secretaria Nacional de Diálogos Sociais e Articulação de Políticas Públicas e aSecretaria Nacional de Participação Social. A diretora deu exemplos de experiências exitosas promovidas pela Fiocruz Brasília, como o Fundo de Resiliência Solidária, uma inciativa do Movimento de Educação e Cultura da Cidade Estrutural (Mece), entidade gestora do Banco Comunitário Estrutural e criado em 2021. “O objetivo é ajudar pessoas e famílias que estão em condições de vulnerabilidade social e em extrema pobreza, e que sofrem com os impactos socioeconômicos da pandemia de Covid-19”.
Fabiana sugeriu a inserção, nos Teds, de estratégias de editais com monitoramentos que viabilizem a execução de recursos de modo colaborativo, o diálogo com a iniciativa privada, a fim de buscar caminhos para captação de recursos, e também com fundações ou institutos empresariais – por meio de busca ativa, ou editais públicos –, a construção de cooperação internacional, a elaboração de acordos com os órgãos governamentais e a organização de projetos para captação de emendas parlamentares individuais, de bancada (impositivas) e de comissão. Fabiana citou, durante a apresentação, um verso da canção Principia, de Emicida: Simbora que o tempo é rei/Viver agora, não há depois.
O professor Pedro Cláudio Cunca Bocayuva, do Programa de Pós-Graduação de Políticas Públicas em Direitos Humanos (PPDH) do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos Suely Souza de Almeida da UFRJ e coordenador do Laboratório do Direito Humano à Cidade da UFRJ, afirmou que é preciso ter como prioridade a promoção de políticas públicas direcionadas à população mais vulnerável. “No Rio de Janeiro vemos sistematicamente ações de genocídio nos territórios, o urbanismo de guerra. É urgente a construção de um bloco que reúna moradores de periferias, universidades e demais instituições públicas para enfrentar problemas que se arrastam sem solução, como a violência contra os pobres, a falta de saneamento, de alimentação adequada, de transporte e outros. E, principalmente, precisamos de um esforço governamental, por meio de investimentos públicos, que garanta a vida das pessoas nesses territórios”.
A pesquisadora Renata Gracie Vanderlei Matos, do Laboratório de Informação em Saúde do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz), discorreu sobre as potencialidades dos territórios periféricos. Ela abordou o geoprocessamento e os sistemas de informações geográficas na saúde pública, relacionando-os ao sistema de informação em saúde no Brasil. “As análises de dados são extremamente importantes e precisamos fazer pontes não apenas na academia, com nossos pares, mas sobretudo com a sociedade civil e os gestores”.
Após as apresentações, os participantes da oficina se dividiram em seis grupos, na parte da manhã e também na parte da tarde, visando propor sugestões para políticas públicas voltadas aos territórios periféricos. Foram discutidos temas como conflito social, resistência, desigualdade, fome, violência, feminicídio, ancestralidade, identidade, violação de direitos, religião e outros. Ao final dos debates, os grupos apresentaram suas conclusões. Todo esse material será sistematizado em um relatório que será enviado aos ministérios
Ações da Fiocruz
A experiência da Fiocruz na execução de iniciativas junto às populações vulnerabilizadas durante a pandemia foram significativas. Entre as muitas ações destacam-se o lançamento da Chamada Pública para Apoio a Ações Emergenciais junto a Populações Vulnerabilizadas para o enfrentamento da pandemia em nível nacional, alcançando 151 projetos distribuídos nas 27 unidades da Federação; o edital voltado para as favelas no Rio de Janeiro em parceria com a Assembleia Legislativa Universidades (54xFavela), ainda em execução, selecionando mais de 100 projetos para execução até 2024; ações solidárias geradas nas unidades da Fiocruz em Rondônia, Amazonas, Piauí, Ceará, Pernambuco, Bahia, Minas Gerais, Brasília, Mato Grosso do Sul e Paraná; a Sala de Situação da Covid-19 nas Favelas, no campo da vigilância em saúde; e a Campanha Se Liga no Corona e o Selo Fiocruz Tá Junto, na esfera da comunicação popular.
Também vale ressaltar o projeto Conexão Saúde, que produziu uma redução de mais de 80% na letalidade na favela da Maré (território com mais de 140 mil habitantes) antes do início da vacinação contra a Covid-19, articulando ações de vigilância em saúde e testagem, atenção à saúde remota, isolamento domiciliar seguro e comunicação popular. O projeto agregou tecnologias no campo da saúde digital e na mobilização social, que poderão servir como modelos para intervenções em outras emergências sanitárias. Estima-se que cerca de 18 milhões de pessoas vivam atualmente em favelas ou em demais territórios precarizados no Brasil.