Moradia, escolaridade, renda e cor: maior estudo já feito sobre hanseníase detalha os fatores de risco da doença

Mariella de Oliveira-Costa 14 de agosto de 2019


Ascom Cidacs e Ascom Fiocruz Brasília 

 

Uma doença curável, de baixo contágio, mas que desde a Antiguidade é carregada de estigma, sendo associada ao pecado e à desonra, e, até a década de 1960, era tratada por meio da internação compulsória no Brasil. A hanseníase atinge, ainda hoje, 200 mil pessoas por ano, sendo que a cada dez novos casos no mundo, um ocorre no Brasil, de acordo com dados da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas/ONU).

Agora, um estudo recém-publicado no periódico The Lancet Global Health possibilita compreender, com precisão e escala até então inéditas, os fatores socioeconômicos que elevam a possibilidade de o indivíduo contrair hanseníase: foram analisados dados individuais de 33 milhões de pessoas que utilizaram algum benefício social entre 2007 e 2014, dos quais quase 24 mil eram pessoas com a enfermidade. O tamanho da amostra com dados individuais torna esse o maior estudo já realizado sobre o tema.

A relevância da pesquisa brasileira, que totaliza quatro anos de trabalho, é tamanha que ganhou destaque por meio de comentário publicado em 19 de julho, pelos editores do periódico científico.

O pesquisador do Departamento de Medicina Tropical da Universidade de Brasília (UnB) e assessor da direção da Fiocruz Brasília, Gerson Penna, coordena os estudos e explica sobre o ineditismo da investigação. “Pegamos os grandes bancos de dados e comprovamos que o desenvolvimento social e os programas sociais associados ao acesso à saúde diminuem a quantidade de pessoas que adoecem, diminui a quantidade de pessoas que, quando adoecem, ficam com deficiências físicas, e também a quantidade de pessoas que ficam doentes por conviverem com os doentes. São muito aspectos relacionados à hanseníase que só foram analisados pois cruzamos grandes bancos de dados, comparando informações de quem tem a doença e quem não tem”, disse.  O estudo possibilitou também a formação de outros pesquisadores em nível de doutorado na UnB, bem como em nível de pós-doutorado no exterior.

Estudo anterior, publicado por pesquisadores noruegueses um século atrás, já mostrou que o desenvolvimento social obtido na Noruega em 50 anos fez com que a hanseníase desaparecesse daquele país.  

A pesquisa confirmou que a Hanseníase é uma doença negligenciada, mais suscetível para pessoas que vivem em condições típicas da pobreza: as chances de ser portador da doença dobram quando há ausência de renda, escolaridade e/ou condições inadequadas de habitação. Além disso, a magnitude do estudo permitiu que, pela primeira vez, pudessem ser analisados critérios étnicos com precisão. Após ajustadas todas as outras características, a análise indicou que pessoas autodeclaradas pretas e pardas são mais propensas a ter a doença do que as brancas.

O estudo, o primeiro publicado que utiliza os dados produzidos pela Coorte de 100 Milhões Brasileiros, é fruto da colaboração de pesquisadores Universidade de Brasília, Fiocruz Brasília, Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde (Cidacs/Fiocruz Bahia), Universidade Federal da Bahia (UFBA), London School of Hygiene & Tropical Medicine (LSHTM) e Universidade Federal Fluminense (UFF).  

O estudo

Para produzir o estudo, os pesquisadores cruzaram dados individualizados e anonimizados do Cadastro Único – base utilizada para cadastrar candidatos a qualquer um dos mais de 20 programas sociais do Governo Federal e que chega a ter 114 milhões de pessoas – com os dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) – que registra os casos de Hanseníase no Brasil – durante o período de 2007 a 2014.  É a primeira vez que dados individualizados são utilizados para estudos de saúde nessa magnitude.

A análise dos dados indicou que indivíduos residentes nas regiões Norte ou Centro-Oeste têm de 5 a 8 vezes mais chances de contrair a doença – probabilidade que chega a ser 34 vezes maior em crianças que vivem no norte do país em comparação com as que residem na Região Sul. Pessoas em situação de pobreza (sem renda ou com renda per capita abaixo de R$ 250 por mês) apresentaram um risco 40% maior em relação aos indivíduos que ganham acima de um salário. Pessoas de sexo masculino também estão mais suscetíveis à doença.

Quando analisado somente os dados de pessoas até 15 anos, crianças da raça/cor preta possuem 92% mais risco de adoecer do que os da branca – essa taxa é de 40% quando incluída a população adulta. A aglomeração de pessoas na mesma casa e ausência de energia elétrica também foram consideradas fatores de risco nesta faixa etária.

A ausência de rede pública de saneamento e residir em moradias de materiais como taipa e madeira também foram relacionados com maior risco de adoecimento pela hanseníase.

Como a hanseníase é uma doença rara com um longo período de incubação, os pesquisadores afirmam que o tamanho da população estudada e o período de tempo de 8 anos possibilitou realizar “a maior investigação prospectiva em nível individual sobre pobreza e hanseníase, fornecendo uma estimativa mais robusta do efeito da privação na hanseníase do que qualquer outra já realizada”.

Perspectivas

Além desse estudo, está em fase de finalização outra dezena de pesquisas do grupo que se debruçam sobre a avaliação do efeito dos determinantes sociais e impacto de programas sociais na incidência, incapacidade física e tratamento da hanseníase. O principal fator destacado pelos pesquisadores é o potencial desses estudos para subsidiar políticas públicas direcionadas à detecção precoce e tratamento nas populações vulneráveis.

Uma das autoras do estudo, a pesquisadora da Universidade Federal da Bahia Joilda Nery explica que as evidências encontradas ajudam os gestores na tomada de decisão e promovem políticas públicas mais equitativas: “A hanseníase não acontece somente nas populações em situação de pobreza – pessoas com nível de renda maior também podem adoecer. Mas, dentre a parcela da população mais pobre do Brasil (a amostra analisada), as pessoas que apresentaram os piores indicadores (escolaridade, renda, ocupação, moradia) e de raça/cor preta estão em maior risco”.

Já a pesquisadora do Cidacs Julia Pescarini, também uma das principais autoras do estudo, destaca que, além do potencial de subsídio para políticas públicas, os estudos que vêm sendo desenvolvidos pelo Cidacs são importantes para o avanço da Ciência nessas áreas. “A base de dados da Coorte de 100 Milhões fornece uma oportunidade única para a comunidade científica estudar, com detalhes, as doenças que atingem a parcela mais pobre da população brasileira e quais as políticas sociais têm sido mais efetivas para o seu controle”, afirma.

Os estudos do grupo foram financiados por meio de diversas fontes de fomento. Ao nível nacional: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), Conselho Nacional das Fundações Estaduais de Amparo à Pesquisa (Confap), Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal. Já no âmbito internacional, os financiadores foram: Medical Research Council, Wellcome Trust, Economic and Social Research Council e Biotechnology and Biological Sciences Research Council.

Sobre a coorte

A Coorte de 100 Milhões de Brasileiros é uma plataforma de pesquisas que viabiliza o estudo das determinantes sociais e dos efeitos de políticas e programas sociais sobre os diferentes aspectos da saúde na sociedade brasileira em nível inédito no mundo. Para atingir esse objetivo, o Cidacs criou uma plataforma de dados para vincular informações individuais dos programas sociais e de outras bases de dados de sistemas de informação em saúde, como mortalidade, nascimento, doenças infecciosas transmissíveis e não transmissíveis, entre outros desfechos.

Os projetos vinculados a essa coorte processam, analisam e interpretam de forma rigorosa as informações obtidas a partir de grandes bases eletrônicas de dados, gerando novos conhecimentos úteis em processos de tomada de decisões no campo das políticas sociais – em especial aquelas focadas na redução da pobreza e das desigualdades sociais no Brasil.

 Resultados serão apresentados também em Seminário nesta sexta-feira, 16 de agosto

 Os resultados das pesquisas sobre Hanseníase serão apresentados no Seminário de Entrega Hanseníase – Avaliação de Efeitos dos Determinantes sociais e impacto de programas sociais na incidência, percentual de incapacidades físicas e desfechos em uma coorte de 100 milhões de brasileiros. Os pesquisadores demonstraram como as condições sociais influenciam nos processos de hanseníase, e a relação entre políticas sociais de distribuição de renda e seu impacto nas doenças das populações negligenciadas. A atividade será realizada no Auditório do Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para a Saúde (Cidacs/Fiocruz) em Salvador – Bahia, e prevê a apresentação dos métodos e resultados de 11 artigos publicados em periódicos científicos sobre o tema. A atividade é realizada pela Fiocruz, por meio do (Cidacs/Fiocruz Bahia) e da Fiocruz Brasília.

O Seminário será realizado das 9h às 13h30. Entre os temas abordados, estão “Determinantes sociais da detecção de casos novos e abandono no tratamento da hanseníase: uma análise da Coorte de 100 milhões de brasileiros”; “Determinantes sociais das incapacidades físicas e da ocorrência da hanseníase em contatos domiciliares da Coorte de 100 milhões de brasileiros”; “Impacto do Programa Bolsa Família na detecção de casos novos e adesão ao tratamento da hanseníase na Coorte de 100 milhões de brasileiros”; e “Perspectivas de novas pesquisas em Hanseníase”. Também será apresentado o Projeto Coorte de 100 milhões de brasileiros.

O Seminário será transmitido em tempo real, no Canal do Youtube do Cidacs.

Estudo Completo

“Socioeconomic determinants of leprosy new case detection in the 100 Million Brazilian Cohort: a population-based linkage study”