O ano era 2017 e a Fiocruz Brasília sediava o II Encontro da Rede Nacional de Consultórios na Rua e de Rua. À época, havia no país em torno de 130 equipes de Consultório na Rua – equipes multiprofissionais responsáveis por articular e prestar atenção integral à saúde de pessoas em situação de rua. Em 2024, a Fiocruz Brasília voltou a sediar o evento, em sua sétima edição, em um momento em que o número de equipes já ultrapassa 300. Um crescimento que, segundo a diretora da Fiocruz Brasília, Fabiana Damásio, mostra a força da Rede e a importância de uma política pública voltada para o cuidado da população em situação de rua. “O auditório da nossa instituição hoje é o retrato do SUS que queremos: participativo, dialógico e intersetorial, pautado pela equidade e próximo do território”, afirmou a diretora, na manhã desta terça-feira (3/9), saudando os participantes do evento.
O auditório estava repleto de trabalhadores de equipes de Consultório na Rua de diferentes partes do Brasil, representantes de movimentos sociais, pesquisadores, estudantes, gestores, profissionais das áreas de assistência social, direitos humanos e vários outros interessados em fortalecer as estratégias de promoção da saúde e da cidadania de populações vulnerabilizadas. “A caminhada ainda é longa, mas temos o compromisso com esse projeto coletivo”, frisou Fabiana na mesa de abertura do Encontro, realizado nos dias 3, 4 e 5 de setembro. “Precisamos somar essa energia e sinergia para a melhora contínua das nossas equipes de Consultório na Rua”, acrescentou a coordenadora de Atenção Primária da Secretaria de Saúde do Distrito Federal (SES-DF), Sandra França.
Idealizador da Rede Nacional, Daniel de Souza tem quase 14 anos de experiência no Consultório na Rua, no Rio de Janeiro, e ressaltou a urgência de superar a invisibilidade das populações em situação de rua – constituídas, em sua maioria, por pessoas negras. “Não podemos mais aceitar que continuem sendo vistas como corpos sem direitos”, destacou. “Vi vários companheiros de rua morrerem por omissão. A gente com trajetória de rua não é reconhecido se não tiver um crachá”, disse Anderson Miranda, representante do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), onde coordena o Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política Nacional para População em Situação de Rua (Ciamp-Rua).
Para Anderson, o Consultório na Rua faz “resgate de vidas e de cidadania” e, com um papel de tamanha relevância, “não deve ser encarado como gasto, mas como investimento”. O representante do MDHC lembrou ainda que esse investimento precisa ser intensificado com vistas a uma política pública que, além de saúde e assistência social, articule também moradia, trabalho, renda, educação, esporte, cultura e lazer.
Os inúmeros desafios enfrentados pelas populações em situação de rua e pelos trabalhadores que atuam junto a elas foram lembrados por outros componentes da mesa de abertura do evento, como Rosangela Roseno, do Movimento Nacional da População de Rua (MNPR), Maria Beatriz Almeida, da Associação Brasileira de Redução de Danos (Aborda), e Kleidson Bezerra, que hoje atua junto ao Conselho Regional de Psicologia do Distrito Federal (DF). “Vivi em situação de rua e agora vivo na rua ouvindo as pessoas e contribuindo para resolver seus problemas”, contou Kleidson.
De acordo com Vanilson Torres, representante do Conselho Nacional de Saúde (CNS), é necessário produzir dados sobre as populações em situação de rua para que elas deixem se ser invisíveis. “As equipes de Consultório na Rua também sofrem preconceito até por outras equipes da Atenção Básica. Ainda acontece de uma pessoa em situação de rua não ser atendida na Unidade Básica de Saúde (UBS) porque não tem endereço”, assinalou. O representante do CNS levantou ainda outras pautas prioritárias, como a garantia da continuidade da assistência depois que uma pessoa em situação de rua recebe alta hospitalar.
Pautas para as quais o Ministério da Saúde está atento, conforme informou o secretário de Atenção Primária à Saúde, Felipe Proenço. “Não se pode fazer saúde sem pensar no território”, afirmou. O secretário comentou estratégias do Ministério que incluem a aproximação entre o Consultório na Rua e o Mais Médicos, o credenciamento facilitado de novas equipes de Consultório na Rua e a valorização dos trabalhadores, em especial daqueles com trajetória de rua.
Escutando as ruas
Na tarde do dia 3/9, o pesquisador da Fiocruz Brasília Marcelo Pedra, do Núcleo de Populações em Situações de Vulnerabilidade e Saúde Mental na Atenção Básica (Nupop), abordou a construção da intersetorialidade a partir de quatro iniciativas. A primeira é a formação ofertada na Residência Multiprofissional em Atenção Básica, em que abrigos, abordagem social, Consultórios na Rua e Revista Traços são campos de estágio dos residentes, com 50 profissionais já formados.
A segunda é a própria Traços, uma revista cultural vendida por pessoas em situação de rua que, com o acompanhamento de uma equipe social multidisciplinar, tornam porta-vozes da cultura, com acesso a microcrédito, geração de trabalho e renda. Já o Colaboratório Nacional PopRua fomenta estratégias de qualificação das equipes e dos serviços que atendem a pessoas em situação de rua, e oferta formações a pessoas com trajetória de rua, com vistas ao fortalecimento do controle social.
Por fim, o Curso Escutando Ruas integra o Projeto Gente, fruto de uma parceria entre a Fiocruz Brasília e o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJPS), por meio da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas e Gestão de Ativos. O Curso é voltado a guardas municipais com o objetivo de melhor prepará-los para abordar populações vulnerabilizadas e lidar com questões de álcool e outras drogas. Foram realizadas oficinas nas cinco regiões do país para conhecer esses trabalhadores, seus cotidianos de trabalho e suas necessidades. Esse mapeamento servirá de base para a produção de Cadernos Temáticos e para a construção do próprio Curso alinhado à realidade. Com carga horária total de 80 horas e dividido em quatro módulos – População em situação de rua, Intersetorialidade, Saúde mental, álcool e outras drogas, e Equidade e promoção de cidadania -, o Curso terá um ciclo na modalidade a distância seguido de oficinas presenciais.
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