Fernanda Marques/ Jacarandá
O que você faria se fosse convidado a criar um curso? Se respondeu que procuraria conhecer melhor as expectativas e necessidades do público desse curso, então, você está alinhado com pesquisadores do Núcleo de Educação e Humanidades em Saúde (Jacarandá) da Escola de Governo Fiocruz – Brasília. Juntamente com colegas da Secretaria de Saúde do Distrito Federal (SES-DF), eles foram chamados a elaborar o Curso de Especialização em Gestão da Estratégia Saúde da Família.
Inspirados pela Educação Permanente em Saúde, o primeiro passo foi justamente compreender as competências envolvidas e os desafios enfrentados no cotidiano do trabalho dos gestores da Atenção Primária à Saúde (APS) do Distrito Federal (DF) – dos que estão em uma esfera mais central, na Secretaria, aos que atuam na ponta no Sistema Único de Saúde (SUS), isto é, nas Unidades Básicas de Saúde (UBS) de todas as regiões do DF.
Após esse diagnóstico, vieram outras etapas igualmente importantes, como montar a estrutura do curso, escolher as metodologias mais adequadas e preparar os materiais didáticos. Até que, em 2022, o curso foi lançado. Todo esse caminho percorrido – desde o planejamento inicial até o início das aulas – está descrito em um artigo publicado recentemente em um número especial da revista científica Saúde em Debate.
Número especial
Com outros três relatos de experiências, duas revisões, dois ensaios e seis artigos originais, esse número temático da revista Saúde em Debate reúne trabalhos realizados no âmbito do Programa de Qualificação da Atenção Primária à Saúde do Distrito Federal (Qualis-APS). Fruto de uma parceria firmada, em 2019, entre a Fiocruz Brasília, a SES-DF e a Universidade de Brasília (UnB), o Qualis-APS foi criado com o objetivo de contribuir para a consolidação da Estratégia Saúde da Família (ESF) no DF.
Para alcançar esse objetivo, o Programa assumiu três compromissos: desenvolver um processo de avaliação da APS baseado na escuta e no diálogo com trabalhadores, gestores, usuários, representantes da sociedade civil organizada e de categorias profissionais; ofertar cursos para os profissionais da ESF no DF; e divulgar os conhecimentos sobre o SUS no DF. O Curso de Especialização é parte do segundo compromisso; e o número especial da revista Saúde em Debate, que teve a equipe do Qualis-APS como coeditora, se relaciona com o terceiro.
“Espera-se que esta edição inspire o desenvolvimento de práticas inovadoras e eficazes, sustentadas por investimentos na valorização do trabalho, na formação dos trabalhadores, na melhoria da estrutura dos serviços de saúde e na construção de processos avaliativos, fundamentais para o fortalecimento da APS e de um SUS crescentemente mais resolutivos”. É o que afirmam, na apresentação do número especial, representantes das três instituições responsáveis pelo Qualis-APS, Luciana Sepúlveda, diretora da Escola de Governo Fiocruz – Brasília; Magda Scherer, da UnB; e Sandro Batista, da SES-DF.
Leia o artigo na íntegra aqui.
APS e ESF
Chamada de porta de entrada do Sistema Único de Saúde (SUS), porque é desenvolvida de forma descentralizada e está mais próxima do dia a dia das pessoas, a Atenção Primária à Saúde (APS) oferece um conjunto de cuidados, individuais e coletivos, com vistas à promoção e proteção da saúde, incluindo prevenção, diagnóstico e tratamento, com vacinas, consultas, exames etc.
A APS resolve a maioria dos problemas de saúde da população e organiza o fluxo dentro do SUS, articulando o cuidado dos usuários na atenção especializada, quando necessário. Existem diferentes modelos de APS. No Brasil, o modelo preconizado é a Estratégia Saúde da Família (ESF), que dispõe de equipes e serviços multiprofissionais fundamentados nas comunidades, tendo como referência as Unidades Básicas de Saúde (UBS). A população do DF conta com 636 equipes de Saúde da Família e 176 UBS.
“Os gestores assumem a responsabilidade de organização dos serviços e coordenação do trabalho das equipes de saúde em atividades preconizadas pela Política Nacional de Atenção Básica (PNAB)”, afirmam os autores no artigo, destacando que os profissionais precisam desenvolver uma série de competências para que não realizem uma gestão meramente burocrática. Entretanto, “a literatura aponta uma insuficiência de processos formativos prévios para a atuação na gestão da APS”, completam. O Curso de Especialização em Gestão da Estratégia Saúde da Família veio, então, preencher essa lacuna no DF.
Para a elaboração do Curso, entre 2019 e 2021, foram consideradas as normativas existentes, em especial a PNAB e a Política Distrital de APS do DF; a literatura científica; a observação de discussões realizadas em eventos da gestão da SES-DF; os dados dos territórios; e o perfil dos gestores a quem se destinaria o Curso. Esse levantamento prévio mostrou a predominância de gestoras mulheres, da área de enfermagem, com atuação prévia na APS e especialização em Atenção Primária ou Saúde da Família, alta rotatividade no cargo (por vezes, saindo para a assistência e, depois, retornando para a gestão), e coordenando várias equipes (em alguns casos, em mais de uma UBS).
Inovações pedagógicas
De março de 2022 a agosto de 2023, 160 gestores da APS atuantes na SES-DF, em duas turmas, realizaram o Curso de Especialização em Gestão da Estratégia Saúde da Família. Dentro de cada turma, os profissionais foram, ainda, divididos em grupos menores, de dez integrantes cada, conforme a região em que atuavam, de modo a fomentar iniciativas coletivas direcionadas às especificidades de cada território. O Curso foi desenvolvido na modalidade híbrida, combinando atividades EaD com encontros síncronos virtuais e presenciais.
O Curso foi formado por dois eixos. Com 300 horas, o eixo estruturante (obrigatório) foi composto por três módulos, após o acolhimento: O Trabalho na Gestão da ESF, que trouxe temas como liderança e gestão de equipes; Conhecimentos Estratégicos para a Gestão da ESF, incluindo aspectos de monitoramento e avaliação, entre outros; e Gestão, Organização, Prática e Comunicação em Redes de Atenção à Saúde, que abordou, por exemplo, tecnologias para o processo de trabalho em rede.
Já no eixo optativo, com um mínimo de 60 horas, foram ofertados minicursos e oficinas, e cada profissional teve autonomia para escolher o conteúdo mais adequado à sua formação. Para facilitar, o Ambiente Virtual de Aprendizagem (AVA) foi organizado no formato de trilhas de aprendizagem. “O sistema de trilhas teve como objetivo agrupar e organizar cursos, módulos e outras atividades, sendo elas realizadas, virtualmente ou não, para permitir aos alunos o acompanhamento mais detalhado e claro do seu percurso formativo”, explicam os autores no artigo.
Os estudantes foram acompanhados de forma processual por tutores de aprendizagem. Ao longo do Curso, a partir das evidências científicas e da troca de experiências, os gestores propuseram intervenções para solucionar ou melhorar situações práticas do trabalho. Esses trabalhos ficavam registrados em seus e-portfólios, uma ferramenta digital que permite organizar e compartilhar uma coletânea de produções. Outros recursos utilizados foram estudos de caso, exemplos contextualizados com a realidade do DF, infográficos, vídeos, podcasts, linha do tempo, fórum de discussão e outras atividades pautadas no diálogo e na colaboração. “Foi possível promover uma formação personalizada centrada nos principais desafios e impasses enfrentados pelos gestores, com o intuito central de avançar na qualidade do cuidado prestado à população”, concluem os autores.
Assinado por Ana Silvia Pavani Lemos, Evelyn de Britto Dutra, Luciana Sepúlveda Köptcke, Aline Guio Cavaca, Missifany Silveira, Kellen Cristina da Silva Gasque e Rafael de Souza Petersen, o artigo “Construção pedagógica de um curso de especialização para gestores da APS sob a perspectiva da Educação Permanente em Saúde” pode ser acessado aqui.
Imagens do Instagram do Programa @qualis_aps.
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