“O bem individual se desenvolve e concretiza no âmbito do bem comum”

Fernanda Marques 16 de julho de 2021


Confira a entrevista com a professora Maria do Céu Patrão Neves, da Universidade dos Açores (Portugal), editora convidada do CIADS, periódico da Fiocruz Brasília que completa 10 anos em 2021

 

O periódico científico Cadernos Ibero-Americanos de Direito Sanitário (CIADS), publicado pelo Programa de Direito Sanitário (Prodisa) da Fiocruz Brasília, completa 10 anos em 2021. Para celebrar, a equipe editorial prepara uma série de novidades, muitas delas que reforçam o processo de internacionalização da revista. A mais recente edição da revista, lançada no final do junho, contou com dois editores convidados internacionais, os professores Maria do Céu Patrão Neves, da Universidade dos Açores, e André Dias Pereira, da Universidade de Coimbra, ambos de Portugal. 

 

Professora catedrática, com pós-doutorado no “Kennedy Institute of Ethics”, nos Estados Unidos, Maria do Céu é especialista em ética da Comissão Europeia e da Unesco, com dezenas de livros e artigos publicados. Nesta entrevista, ela conta como foi o desenvolvimento do projeto com o CIADS, que aborda uma variedade de questões relacionadas à Covid-19, e explica por que compreende este momento de crise como uma oportunidade de mudança. Traz também reflexões sobre solidariedade global, bem individual e comum. Além de editora convidada, Maria do Céu é autora de um artigo que alerta para a exclusão dos mais velhos no cenário da pandemia, defendendo a abordagem ética da racionalização. Saiba mais na entrevista.

 

Sobre seu artigo “Critérios de triagem em pandemia: o factor idade”, em um cenário em que faltam recursos materiais e humanos em saúde, como fazer a triagem de pacientes de modo a garantir a justiça e a equidade?

Maria do Céu Neves: Dos muitos dramas que a pandemia tem sido palco – as filas de ambulâncias durante horas à porta dos hospitais, doentes deitados no chão à espera de assistência, a luta por uma garrafa de oxigénio, sucessivas valas comuns a serem abertas etc. –, um dos primeiros a tocar-me foi a da exclusão dos mais velhos das unidades de cuidados intensivos e de ventilação mecânica, apenas pela sua idade cronológica. No século XXI, em que não admitimos discriminações em função da cor da pele, do gênero, da religião, da nacionalidade ou da orientação sexual, aceitamos tacitamente a discriminação dos mais velhos! Como é possível? Como é admissível? Numa situação de emergência de saúde pública, o critério comum de “primeiro a chegar, primeiro a cuidar” caduca; o critério cotidiano de urgência clínica de “maior gravidade, maior prioridade” caduca. Entra em cena, então, o critério do “racionamento”, em que se distribui o pouco disponível por alguns, excluindo outros, neste caso os mais velhos, como se já não valessem, como se a dignidade humana se gastasse e esgotasse ao longo da vida. A abordagem ética é a da “racionalização”, isto é, a de utilizar os poucos recursos disponíveis nos doentes que mais poderão beneficiar-se desta assistência. Geralmente não são os mais velhos. Mas, então, são excluídos pela escassa possibilidade de recuperação e pelo desvio de recursos para quem tem mais chances, mas não pela sua idade.

 

Em um momento de crise sanitária, econômica e social, como o campo do direito sanitário pode contribuir para a reflexão sobre bem individual e bem comum?

Maria do Céu Neves: A situação de crise ou emergência de saúde pública conduz ao confronto da autonomia e dos direitos individuais, que legitimamente reivindicamos, com a responsabilidade e os deveres sociais, que justamente nos competem. Entre ambos há, inevitavelmente, zonas de atrito e conflito, que têm de ser dirimidas pelo Direito, devendo a decisão jurídica fundamentar-se na deliberação e no consenso ético para mais amplamente lograr a adesão dos cidadãos, que a interpretam, então, não como prepotência, mas como orientação. Neste processo dialógico de construção de consensos sociais, importa desenvolver uma ação pedagógica no sentido de evidenciar como o bem individual se desenvolve e concretiza no âmbito do bem comum, do qual depende. O Direito Sanitário intervém para preservar os equilíbrios alcançados na salvaguarda do bem individual e na promoção do bem comum.

 

Por que a solidariedade global é tão importante para o enfrentamento da pandemia?

Maria do Céu Neves: Uma pandemia é, por definição, global, pelo que toda e qualquer solução, para ser eficaz, terá de ser global também. Ninguém estará totalmente protegido da Covid-19 enquanto não estivermos todos. A principal razão para tal – que o cidadão começa a constatar – não é só a persistência do risco de infecção, mesmo que num suposto lugar remoto, de fato inexistente neste mundo globalizado, mas a manutenção de situações para novas mutações do vírus, tendencialmente mais contagiosas e potencialmente mais virulentas. Neste contexto, diria que a solidariedade global não será apenas uma atitude moralmente desinteressada, mas também um procedimento ditado por um utilitarismo, em função da autoproteção.

 

De que forma a atual crise provocada pela Covid-19 constitui uma oportunidade de mudança?

Maria do Céu Neves: Todas as crises têm, necessariamente, de se abrir à mudança, de constituir uma oportunidade para uma transformação para melhor – como afirmamos no Editorial, “A metamorfose da crise”. Esta é a única forma da tripla crise que vivemos – sanitária, econômica e social – não nos derrubar ou abater; é a única forma de lhe dar um sentido que nos permita resistir e perseverar. E somos nós, os cidadãos comuns, os autores do sentido das nossas vidas e dos acontecimentos que nos rodeiam. A disrupção que toda crise desencadeia é sempre, invariavelmente, muito dolorosa, por romper com o que nos é conhecido, familiar e, por isso, confortável. Mas é também um momento em que, facilmente, podemos cortar e excluir o que há muito vínhamos criticando, sem capacidade para anular, por uma diversidade possível de razões. Por isso é importante que, perante uma crise, mais do que nos lastimarmos, sejamos criativos para descobrir e inventar novos caminhos redentores, que resgatem um futuro melhor.

 

Por que a opção de abordar a pandemia em uma perspectiva histórica?

Maria do Céu Neves: O projeto que eu e meu colega André Dias Pereira apresentamos ao CIADS foi de organização de uma reflexão ampla e diversificada sobre a pandemia, que não se limitasse à repetição de temáticas reiteradamente abordadas no último ano, mas oferecesse uma visão compreensiva do tema abordado em quatro vertentes: uma histórica, que recuperasse o quadro das grandes pandemias da humanidade, avançando para os seus impactos na evolução civilizacional; uma biomédica, que explorasse os principais procedimentos de promoção da saúde pública, desde a prevenção às medidas de contenção, no contexto das liberdades individuais e das responsabilidades sociais (Direitos Humanos); uma de investigação e inovação, que examinasse as fases de descoberta e/ou criação de vacinas e/ou novos fármacos (e novas tecnologias em geral), contemplando a problemática dos participantes na experimentação; e, por fim, uma internacional, que considerasse modalidades de cooperação e solidariedade (e uma mais rápida e ampla disseminação de doenças infectocontagiosas, bem como a migração de doenças endêmicas para novas geografias), no contexto de uma saúde global. As duas primeiras abordagens compõem a atual edição do CIADS. As outras duas vertentes estarão na próxima edição da revista, também organizada por mim e por André Dias Pereira.

 

Como foi a experiência de atuar como editora convidada do CIADS?

Maria do Céu Neves: A edição de um número especial de uma revista, em particular com o prestígio que o CIADS já alcançou, é sempre um enorme desafio. Primeiramente, impõe-se um projeto temático englobante, interessante e inovador, e o seu desdobramento em subtemas de uma forma lógica e coerente, que conduza o leitor através dos aspectos principais do tema privilegiado. Simultaneamente, importa identificar os potenciais autores para cada temática, contemplando uma diversidade de orientações e de origens geoculturais. Seguem-se os convites, as dúvidas, os prazos, as entregas e sempre, sempre vários imprevistos… Para o sucesso de um projeto como este é fundamental contar com uma equipe muito profissional e disponível, como foi a do CIADS. Trabalhar com esta excelente equipe tornou o difícil possível e o fácil agradável, na medida em que procurava invariavelmente ajudar, mantendo-se inflexível no nível de qualidade exigido. Por todas estas razões, esta foi uma experiência muito gratificante.

 

Qual a importância do CIADS e sua internacionalização?

Maria do Céu Neves: O CIADS é uma publicação importante por uma diversidade de razões, entre as quais se destacam a sua pertença ao Programa de Direito Sanitário (Prodisa) da Fiocruz Brasília, uma instituição de elevada idoneidade e prestígio; a sua publicação trilíngue (português, espanhol e inglês), que se abre a um amplo leque de autores e leitores; o seu modelo eletrônico de fácil produção e disseminação; e a política de acesso aberto, que permite uma expansão alargada. Creio que a sua ampla implantação no Brasil está consolidada. Creio também que a sua implantação na América Latina se tem vindo a fazer, conquistando progressivamente um espaço próprio. No que se refere à Europa, em particular a Portugal e Espanha, considero que uma boa estratégia de divulgação é precisamente a de ter números especiais com editores convidados europeus, que deverão depois assumir serem veículos de divulgação, pelo menos nos seus países. Uma sugestão de reforço da internacionalização seria a de, pelo menos num número por ano, envolver dois editores convidados de países diferentes, como, por exemplo, um europeu e outro sul-americano, exterior ao Brasil.

 

https://youtu.be/rq-mvDY5PtU

 

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