Com a pandemia do novo coronavírus, para além dos desafios no enfrentamento à doença, a população vive constantemente em luto e com medo da morte, o que indica a importância de se falar sobre o tema
Nayane Taniguchi
91.263 mortes no Brasil por Covid-19, segundo dados do Ministério da Saúde da última quinta-feira (30/7). Por trás de cada um desses números devastadores, estão pessoas, famílias, comunidades. Uma nação. A pandemia do novo coronavírus trouxe desafios em âmbito mundial que ultrapassam as paredes dos hospitais, o acesso aos atendimentos, a busca por tratamentos e a sobrecarga dos sistemas de saúde em contexto internacional. Somente no Brasil, seriam 211.850.826 pessoas em luto, ou seja, o total da população brasileira. Uma nação inteira em luto, dentro de suas casas, nos locais de trabalho e na linha de frente do enfrentamento à pandemia. Jovens, idosos, crianças, homens e mulheres. De acordo com a psicóloga Elaine Alves, doutora e pós-doutora com ênfase em perdas e lutos, emergências e desastres pela Universidade de São Paulo (USP), o mundo está em luto.
“Temos uma população mundial enlutada. Existe o luto concreto, pela morte concreta, e o luto simbólico, por perdas significativas. O luto simbólico ou o luto em vida, pelas mortes simbólicas ou pelas mortes significativas. É o mesmo luto da morte. Toda vez que você perde algo e essa perda é irreversível, não tem como voltar atrás, você sofre por isso e tem que reaprender a viver de outro jeito, estamos falando de luto”, explicou, durante Roda de Conversa Virtual, promovida pela Fiocruz Brasília nesta sexta-feira (31/7), por meio do Serviço de Gestão do Trabalho (Segest), que reuniu trabalhadores da instituição, psicólogos e profissionais da área da saúde de diferentes partes do Brasil.
Conforme a especialista em gestão de risco e desastre pela Organização Internacional do Trabalho das Nações Unidas – OIT/ONU (Turim, Itália), com a pandemia, “estamos enlutados por tudo que perdemos. Não sabemos quando vamos nos recuperar e nem mesmo o que vamos recuperar. E todo mundo dentro da nossa casa está enlutado, cada um tem o seu luto”, disse, exemplificando o caso das crianças, enlutadas por aquilo que perderam, enquanto os adultos, pela diferença de idade, não entendem o que elas estão sentindo. “Tudo o que nós temos e estamos vivendo são reações de luto: crise de ansiedade, crise de pânico, insônia, pesadelos, comer demais, comer de menos, falta de vontade de levantar da cama. Na verdade, na maioria das vezes, a gente tem reações de luto”, comentou a psicóloga.
Com a pandemia de Covid-19, Elaine explica que a diferença é a presença de um luto crônico, pela falta de perspectiva. “No começo, a gente pensava: isso vai durar uns dois, três meses, depois a gente volta ao normal. E isso mudou. Agora tem uma falta de perspectiva, que mexe também com os nossos lutos”, acrescentou. A especialista ressaltou que o luto existe não apenas em situações de morte. É associado também a mudanças significativas, além de se apresentar de diversas formas, como o luto antecipatório – que não tira a dor, mas prepara para a perda.
A partir do tema “Conviver com o luto”, Elaine abordou as diferentes situações e tipos de luto, em contextos mais particulares e que atinge, atualmente, populações inteiras: os trabalhadores da saúde, que vivenciam diariamente perdas e têm contato com os familiares; as próprias famílias, que perderam entes queridos; situações em que pais perdem os filhos; as mudanças nos ritos de despedidas impostos pela pandemia do novo coronavírus; e a importância de se respeitar o luto na pessoa que o vivencia. “Todos estamos muito atravessados pela pandemia. Quando escutamos o outro falar, muitas vezes, nos remete aos nossos medos também e aos nossos próprios pensamentos. Como acolher as pessoas, se estamos entrando no mesmo pensamento e movimento que elas?”, questionou.
A psicóloga explicou que estamos vivendo um momento de desastre, como um tsunami, terremoto ou deslizamento, mas de forma diferenciada, o que dificulta o reconhecimento desta situação. Conforme Elaine, a diferença é que esses fenômenos ocorrem de forma rápida, diferente da pandemia. “Quando tudo isso acontece, é rápido. Fica aquela paisagem de destruição, número de mortes, feridos, perdas irreparáveis. A diferença deste tsunami [a pandemia de Covid-19] é que estamos embaixo de uma onda que não para de passar e não termina nunca. No nosso caso, esperamos que ela vá embora, mas não sabemos quando, e há momentos em que até duvidamos de que ela vá embora, porque existe uma falta de perspectiva neste momento”. Para a especialista, estamos dentro de um desastre que está acontecendo e vivenciando todos os sintomas instalados em uma pessoa no momento em que ela se vê no desastre e vê a vida em risco.
Outra diferença apontada por Elaine se refere ao cuidado com o outro, pois, em outros desastres, o outro não é risco para quem cuida e o cuidador está seguro e preparado para o cuidado, por não estar em sofrimento. “É diferentre agora, o cuidador está vivendo a mesma coisa que a pessoa que recebe o cuidado. A diferença é que ele não está, naquele momento, adoecido fisicamente, mas ele está adoecido psicologicamente com todos os medos e angústias das pessoas para quem ele está oferecendo o cuidado. E quem você cuida é um risco para você”, afirmou.
Para Elaine, essas questões são importantes para compreender por que o luto atravessa a população como um todo. “O desastre nos atravessa, a morte e o luto também nos atravessam. Não é só a morte do outro, o luto do outro, mas a nossa morte e o nosso luto porque estamos com medo de também ser infectados, de passar o vírus para alguém, de ter alguém da família infectado e de perder essas pessoas. Não estamos à parte de todo o adoecimento e de toda a morte e luto com que lidamos no nosso cotidiano. Esse é um momento diferente, estamos completamente envolvidos”, reforçou. Para ela, por isso é tão importante entender mais sobre morte e luto.
Com a pandemia, houve ainda o rompimento do mundo presumido, segundo Elaine, aquele em que há planos e programações, como as celebrações das datas comemorativas, as férias, entre outros. “Quando foi decretada a pandemia, nosso mundo presumido rompeu, e toda morte, na verdade, rompe o mundo presumido. Fica todo mundo extremamente desorganizado, não se sabe como agir com a perda a partir daquele momento”, explicou. Conforme Elaine, esse rompimento resultou em uma desorganização, atualmente, somada à falta de perspectiva.
“O luto é o preço do amor”
Ao falar sobre o processo da morte, Elaine explicou que, no século XXI, há um distanciamento da morte como algo natural, diferente do início do século XX, em que havia essa compreensão que possibilitava conviver e falar sobre morte. “A partir da segunda guerra mundial, isso muda completamente. Hoje vivemos uma medicina em que se troca tudo no corpo para se poder viver mais”, lembrou. A psicóloga explicou que o século XXI lida com a morte de uma maneira completamente diferente, como se a morte fosse uma inimiga a ser evitada: não se deve falar sobre a morte, “falar é como se fosse chamar”, as pessoas enlutadas ou entristecidas pela morte são evitadas, o sofrimento delas não é compreendido, e é exigido que essas pessoas parem de sofrer rapidamente.
Para além da perda do mundo presumido, as pessoas também estão perdendo familiares para o desastre da Covid-19, “que ainda é uma morte diferente de uma morte de desastre, por ser uma morte ‘esperada’, já que, no momento em que se adquire o vírus, você entra no medo e na angústia, e no medo e na esperança. Com a evolução da doença, o medo aumenta e a esperança diminui”, contextualizou, além de citar as outras mortes que não têm como causa o novo coronavírus, mas que tiveram os ritos de despedida modificados em função da doença.
Para Elaine, toda a sociedade vive com medo, mas é preciso entender que o luto é um processo normal, embora “horroroso de ser vivido, o momento mais difícil da vida do ser humano. Em toda a nossa existência, nós não vamos passar por nada pior ou mais difícil ou sofrido que o luto, o que já dá uma dimensão do que é esse momento. E ele não é respeitado, porque as pessoas têm que fazer de conta que estão bem”, pontuou.
A psicóloga ressaltou ainda a importância de se viver o luto intensamente, por ser necessário é saudável. “É preciso viver o luto porque é o tempo que cada um precisa para aprender a viver sem a pessoa que morreu. Primeiro, para entender que a pessoa morreu, e precisamos de um tempo para isso, para perceber que é irreversível. Só quando se entende isso é que se começa a buscar ferramentas internas para aprender a viver sem a pessoa que morreu. E tudo isso com muito sofrimento. Isso é o tempo do luto”, disse. Elaine acrescentou ainda que o processo de luto termina quando a pessoa começa a fazer projetos para a vida dela sem a pessoa que morreu. “O luto tem começo e meio, mas não necessariamente tem fim. O processo se encerra no momento em que se entende que o outro morreu, é irreversível e é preciso viver sem ele, e a pessoa passa a investir energia para viver sem aquele que morreu e ser feliz sem ele, mas muitas vivem enlutadas pelo resto da vida”, afirmou. Um exemplo disso são os pais, cujo luto não se encerra nunca.
“Como você pode amar uma pessoa durante toda a sua vida e depois de quinze dias estar bem? Estamos em um momento em que as pessoas são intolerantes com o sofrimento e esse é o aprendizado que nós temos”, disse. Segundo Elaine, se a pessoa fica um determinado tempo em tristeza profunda, as outras já afirmam ser depressão. “Precisamos autorizar o sofrimento. O que é o luto? O luto é o preço do amor. O luto é o que pagamos por amar”, defendeu.
Na abertura da atividade, a diretora da Fiocruz Brasília, Fabiana Damásio, destacou a importância da discussão do tema em meio à crise sanitária e humanitária vivida atualmente, que tem demandado muitos aprendizados, como lidar com o luto e novos ritos de despedida. “A morte já é uma situação muito dolorosa para todas as pessoas que a vivem, e mais delicada em um momento em que a gente se depara com uma reorganização compulsória dos ritos de despedida por uma questão de cuidado. Há uma ressignificação do próprio processo da morte e do morrer e como lidamos com isso”, afirmou. Para a diretora, também psicóloga, é importante que neste momento se discuta e se reflita sobre o tema, para poder lidar com essas questões. “A morte faz com que reconheçamos que, com aquela pessoa, um pedaço da nossa história também se vai, mas um pedaço da sua história e da sua memória fica, e você relembra a partir das experiências que tem com quem faz parte do seu ciclo de afetos”.
Fabiana ressaltou ainda a atuação do Serviço de Gestão do Trabalho (Segest) da Fiocruz Brasília, que, além de promover rodas de conversa virtual para os trabalhadores da instituição com temas associados à pandemia, tem realizado uma série de atividades voltadas à saúde do trabalhador e o acompanhamento de todos os colaboradores.
Ao comentar sobre outras iniciativas promovidas pela Fiocruz sobre o tema, a diretora destacou a Cartilha sobre Saúde Mental e Atenção Psicossocial (acesse aqui) que aborda, de forma específica, a convivência com o luto, e a recente publicação da Revista Radis (veja aqui) sobre a dor da perda. “Começamos falando de números, mas precisamos falar de pessoas, e do quando essas pessoas que nos movem nos deixam”, finalizou.