Emergência climática: “A sociedade civil, articulada com o Estado, é fundamental”

Fernanda Marques 17 de maio de 2024


Não é impressão sua: eventos climáticos extremos – como as recentes inundações no Rio Grande do Sul – estão se tornando cada vez mais frequentes, como consequência do nosso modelo hegemônico de produção, pautado pelo acirramento das desigualdades sociais e pelas sistemáticas agressões ao meio ambiente. Nossa sobrevivência depende, portanto, por um lado, de transformações profundas na estrutura social e, por outro, de forma imediata, de uma capacidade de lidar com os efeitos das emergências climáticas. A pergunta não é “se” novas inundações e outros desastres irão ocorrer, pois, infelizmente, é certo que irão – e nenhum local pode se considerar verdadeiramente livre desse risco. A questão central é como empregar os conhecimentos e as experiências acumuladas para se preparar e enfrentar as situações, mapeando vulnerabilidades e potências, articulando parcerias e estabelecendo fluxos de ação. É o que defende o sanitarista Eduardo Hage, especialista em emergências de saúde pública, pesquisador da Fiocruz Brasília e médico da Secretaria de Saúde do Distrito Federal. Nesta entrevista, Hage comenta o cenário atual e sinaliza possíveis estratégias de curto, médio e longo prazo que fortaleçam as relações entre Estado e sociedade, aumentem a resiliência dos territórios, previnam novas crises e contribuam nos processos de reconstrução das regiões atingidas.   

 

Por que emergências sanitárias por eventos climáticos extremos, como as recentes inundações no Estado do Rio Grande do Sul, estão se tornando mais frequentes?

Eduardo Hage: Conforme já evidenciado nos relatórios do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês), organismo da ONU que reúne as mais recentes publicações internacionais sobre o tema, as mudanças climáticas – ou emergências climáticas – relacionadas ao aumento das emissões de gases de efeito estufa já vêm aumentando a frequência e a intensidade dos eventos climáticos extremos, provocando grandes inundações, enchentes, secas, ondas de calor, entre outros. Seus efeitos são agravados em áreas onde há agressão ao meio ambiente, como queimadas, desmatamentos e outras formas. Esses eventos afetam diretamente a saúde humana (por exemplo, mortes e danos à saúde provocados pelo presente desastre no Rio Grande do Sul, bem como os anteriores neste estado e em outras regiões) ou indiretamente, por exemplo, por meio da contaminação da água, escassez de alimentos, proliferação de vetores de doenças etc.

 

É possível prever quando e onde esses eventos extremos ocorrerão? Há algo que possa ser feito antecipadamente para evitar ou, pelo menos, minimizar os impactos negativos?

Eduardo Hage: Hoje existe uma melhor precisão sobre a probabilidade de ocorrência desses eventos, mas ainda estamos falando de probabilidade, ou seja, não é possível termos certeza de quando e onde ocorrerá algum evento específico, para previsões de longo prazo. No curto prazo, a climatologia já dispõe de capacidade de previsão, com um razoável grau de certeza, quando um evento extremo irá ocorrer. Com informações de diversas áreas (ambiente, saúde etc.), é possível identificar os territórios e populações mais vulneráveis e, assim, planejar ações que reduzam o impacto desses eventos. Portanto, é necessário que cada município tenha plano de preparação e resposta a esses eventos, considerando as características do evento previsto e sua realidade específica, o que pode prevenir perdas humanas, ambientais e materiais.

 

Quando uma situação de catástrofe ocorre e existe uma enorme necessidade de respostas rápidas, muitas vezes, o que se observa é uma desorganização dos esforços iniciais de socorro e assistência. O que deve ser feito para uma melhor articulação e um melhor aproveitamento desses esforços?

Eduardo Hage: Preparação e coordenação. Se, antes da ocorrência desses eventos, forem elaborados planos, a resposta a esses eventos ocorrerá de forma mais ágil, eficiente e com maior capacidade de reduzir os danos. Esses planos devem identificar os cenários possíveis; as vulnerabilidades existentes (ambiental, populacional etc.); os recursos disponíveis e os que podem ser mobilizados (tecnológicos, financeiros etc.); os atores (instituições dos governos e sociedade civil organizada) que serão responsáveis por cada atividade; os mecanismos de coordenação entre eles (como a criação de comitês de crise); e as ações específicas a serem adotadas.

 

Uma situação de catástrofe também provoca uma grande reação na sociedade e ativa redes de solidariedade. Como articular essas redes sociais com as ações que são dever do Estado, para um melhor atendimento às vítimas?

Eduardo Hage: A participação da sociedade civil, de forma organizada e articulada com o Estado, é fundamental para uma melhor resposta aos desastres e outras emergências. Essa participação deve ocorrer desde a preparação de planos, e ter continuidade na resposta e na recuperação. Quando a sociedade civil é incluída desde o início na elaboração de planos e em outras atividades de preparação, e os papéis são bem definidos, a sua atuação é potencializada, diminuindo a sobrecarga para as pessoas envolvidas, e as ações de resposta – como atendimento às vítimas – ocorre de forma mais organizada. Nesse aspecto, a coordenação pelo Estado é fundamental, sendo sua responsabilidade acionar ou se articular com as redes já existentes nos territórios, de modo que todos contribuam para uma resposta mais eficaz.

 

Logo após um desastre, existe uma série de ações de curto prazo que precisam ser tomadas em prol da segurança e da saúde das vítimas, seja resgate, abrigo, fornecimento de roupas, alimentos e remédios. E a médio e longo prazo? Quais as principais ações para um adequado processo de reconstrução das áreas afetadas em médio e longo prazo?  

Eduardo Hage: No médio e longo prazo, devem ser identificados os efeitos secundários do desastre na saúde humana e o impacto nos serviços de saúde (inviabilização de serviços, descontinuidade de ações do cuidado à saúde etc.). Inicia-se, então, a fase de recuperação e aumento da resiliência (já pensando na preparação para novos eventos). Por exemplo, os efeitos sobre a saúde mental da população atingida e dos profissionais que atuam na resposta merece um cuidado específico. A ocorrência de doenças que podem vir a ter um aumento na transmissão (como doenças diarreicas, leptospirose e hepatites, no caso de inundações) ou um ressurgimento (como cólera e doenças preveníveis por vacina anteriormente controladas) devem ser objeto de ações de prevenção e controle. Para essas doenças, existem tecnologias de saúde para seu enfrentamento, como ações de vacinação, controle de vetores e reservatórios, abastecimento com água potável, garantia de segurança alimentar etc.

 

Por quanto tempo os impactos negativos de um evento extremo podem ser sentidos?  

Eduardo Hage: O tempo previsto para a ocorrência dos impactos sobre a saúde varia muito, de acordo com cada situação, e depende de vários fatores, como a intensidade do evento climático extremo; o tamanho do território atingido; o número de pessoas desabrigadas ou desalojadas; a quantidade e o tipo da infraestrutura atingida, incluindo a da saúde; a vulnerabilidade da população afetada; a capacidade de resposta das instituições e de outros atores. Alguns efeitos podem ser de longo prazo, como os problemas de saúde mental e as doenças crônicas que tiveram descontinuidade no cuidado devido ao evento extremo.

 

Em que medida as experiências acumuladas no rompimento da barragem de Brumadinho (2019) podem contribuir para o enfrentamento da atual situação no Rio Grande do Sul?

Eduardo Hage: A experiência na resposta ao desastre em Brumadinho evidenciou um protagonismo importante de organizações da sociedade civil local, como a Associação de Familiares de Vítimas e Atingidos pelo Rompimento da Barragem Mina Córrego do Feijão (Avabrum), em articulação com instituições como a Fiocruz e universidades, para programar e executar ações para a fase pós-desastre, incluindo ações na área de saúde mental e desenvolvimento de pesquisas para monitoramento de problemas de saúde. Esse tipo de iniciativa, envolvendo as comunidades locais, pode ser muito útil para a atuação nesta e nas próximas fases frente ao desastre no Rio Grande do Sul.

 

E as experiências no enfrentamento da pandemia de Covid-19?

Eduardo Hage: Por um lado, na pandemia da Covid-19, infelizmente, ocorreram vários problemas relacionados à falta de uma coordenação nacional, que se articulasse com as demais instâncias de governo. Na situação atual do Rio Grande do Sul, tem sido diferente, embora seja necessário uma melhor organização da gestão da resposta ao desastre, especialmente nos municípios. Por outro lado, durante a pandemia, o SUS demonstrou uma capacidade de resiliência e atendimento às demandas urgentes, o que contribuiu para que o impacto negativo na saúde não fosse ainda pior. No presente desastre no Rio Grande do Sul, como houve um  impacto direto também na rede de serviços de saúde, o apoio e a recuperação desses serviços e de sua força de trabalho serão fundamentais para evitar que os efeitos danosos secundários na população sejam elevados. O SUS tem uma capacidade de trabalhar em rede, importante para oferecer serviços de prevenção e cuidado a toda a população, mesmo nos territórios seriamente afetados. Nesse aspecto, o apoio de instituições de ensino, pesquisa e tecnologia de todo o país será fundamental. Destaca-se ainda que, na emergência da Covid-19, a atuação da sociedade civil organizada também foi um diferencial, como, por exemplo, o trabalho desenvolvido pela associação Redes da Maré, no Rio de Janeiro, que, por meio de uma série de iniciativas inovadoras, conseguiu reduzir a transmissão em níveis inferiores às demais áreas do município.

 

Pode-se falar em lições aprendidas mesmo diante da repetição de desastres?

Eduardo Hage: Sim. Eventos como esses evidenciam que emergências sanitárias e desastres, dado que estão mais frequentes, complexos e com alto impacto, merecem ser priorizados no planejamento das ações de saúde pública e de outras áreas envolvidas na sua gestão. O desenvolvimento de processos que possibilitem o contínuo monitoramento das situações de risco e a rápida detecção e intervenção deve fazer parte da rotina das instituições de saúde e de outras organizações. Por fim, é importante reafirmar que desastres como os ocorridos no Rio Grande do Sul, neste e no ano passado, assim como em outros estados, são processos relacionados às agressões ao meio ambiente, que aumentam os riscos dos danos provocados pelos eventos climáticos extremos. Não cabe mais questionar os efeitos da emergência climática, especialmente no campo da saúde, mas utilizarmos nosso conhecimento e dedicarmos nossos esforços para organizar melhor as ações de prevenção, preparação, resposta e recuperação a esses eventos. Novos eventos irão ocorrer e podem surgir em qualquer momento e local, portanto precisamos estar preparados.

 

Fotos: Porto Alegre, 17/05/2024 – Rafa Neddermeyer/Agência Brasil

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