Angélica Almeida/ Vice-Presidência de Ambiente, Atenção e Promoção da Saúde (VPAAPS/Fiocruz)
No tempero das cozinhas, a solidariedade é o ingrediente principal. O senso de urgência comunitário se traduz na ação de mais de 2,6 mil cozinhas que atendem cerca de 1,2 milhão de pessoas em todo o Brasil, a fim de tornar real aquilo que é mais básico, constitucional e, ainda assim, violado: o direito à alimentação adequada e saudável.
Em estruturas muitas vezes improvisadas, são as mulheres, sobretudo as mulheres negras, as personagens-chave para a transformação social. São elas que, com sua força física, suas sabedorias ancestrais e seu poder de mobilização, tingem de esperança os contextos de maior vulnerabilidade.
“A gente cura através da comida. A gente não está levando só um prato de comida. Está levando acolhimento e saúde. Todas as cozinheiras trabalham se doando, trazendo amor”. As palavras de Mãe Kelly D’Angelis, do Instituto Estrela Guia, expressam o entendimento comum de que o trabalho das cozinhas solidárias vai muito além da oferta de refeições.
“A gente está falando de cozinha, mas também está falando de combate à desigualdade, de reconhecimento da importância histórica de cada um dos territórios, de alimentação saudável, de solidariedade, de inclusão, de democracia e de participação social”, como afirma Fabiana Damásio, diretora da Fiocruz Brasília.
A importância desta tecnologia social de combate à fome foi reconhecida “e abraçada” pelo Governo Federal por meio do Programa Cozinha Solidária. O apoio à oferta de refeições, ao abastecimento das cozinhas com alimentos in natura e minimamente processados e à capacitação das pessoas colaboradoras são as três modalidades do Programa.
“Ninguém estuda com fome, ninguém trabalha com fome. É preciso que a gente enfrente esse debate de peito aberto”. Foi o que afirmou Wellington Dias, titular do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS), durante o primeiro Encontro Nacional do Programa Cozinha Solidária: uma política pública em construção.
Realizado na Fiocruz Brasília, nos últimos 12 e 13 de novembro, como parte de uma cooperação selada pelo MDS e pela Fiocruz, o evento reuniu representantes da sociedade civil, de instituições técnico-científicas e de diferentes órgãos do governo para apresentação do panorama atualizado da política e para um diálogo plural sobre o seu monitoramento e avaliação. Na ocasião, relatos da vivência prática das cozinhas solidárias durante a emergência climática no Rio Grande do Sul também foram apresentados.
Nutrir os corpos e alimentar a cidadania
As cozinhas solidárias não só atuam para enfrentar de forma emergencial a fome, mas também para discutir as raízes deste problema e como superá-lo a longo prazo. “São espaços de recuperação da dignidade, do direito de viver bem e de ter acesso a tudo o que necessitamos para ter uma vida digna”, afirma Elisabetta Recine, presidenta do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea).
Mapeamento do MDS identificou que quase 90% das 896 cozinhas solidárias habilitadas pelo Programa promovem outras ações sociais. São atividades esportivas e recreativas, celebrações comunitárias, distribuição de itens, assistência social e jurídica, apoio educacional e pedagógico, diálogos e campanhas, apoio religioso, capacitação e desenvolvimento comunitário.
“O prato de comida deve ser uma das portas da segurança alimentar para que possamos articular uma rede de proteção social”, defende Frei Nailson Neo, do Centro Social Casa Paz e Bem do Instituto Compartilha.
Partindo da iniciativa desenvolvida no Ceará com a população em situação de rua e mais vulnerabilizada, Frei Nailson atua para que “as pessoas comam, trabalhem, estudem e resgatem a sua cidadania, a sua dignidade. Eu tenho uma esperança muito plena nisso”.
Como recordou Hermano Castro, vice-presidente de Ambiente, Atenção e Promoção da Saúde da Fiocruz, a pandemia agravou a desigualdade e é preciso “construir políticas públicas cidadãs, construir um sistema que permaneça e dialogue com os territórios”.
A escuta sobre quais diretrizes a sociedade civil e as instituições defendem para maior efetividade, ampliação e consolidação do Programa, bem como para a estruturação da modalidade de formação, esteve presente ao longo de todo o encontro. O cuidado com as pessoas que colaboram nas cozinhas – em especial com trabalhadoras negras historicamente vulnerabilizadas – e a realidade específica das cozinhas ligadas a terreiros de matriz africana foram destacados.
“A gente precisa entender que uma comunidade não está com a segurança alimentar e nutricional garantida se ela tem outros direitos violados”, relembrou Natalia Tenuta, pesquisadora da Agenda de Saúde e Agroecologia da Fiocruz.
Em contextos em que várias violências e violações de direitos se encontram, é nas cozinhas que alimentos e vidas são transformados. “Ainda que fosse por uma só pessoa, valeria a pena”, resume Frei Nailson, um entre as mais de 6 mil colaboradoras e colaboradores que nutrem a busca por uma vida melhor e com mais saúde no Brasil.
Fotos: Thiago Sousa.
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