Pesquisa analisa desnutrição em crianças de Moçambique

Nathállia Gameiro 29 de junho de 2023


Há uma elevada prevalência de desnutrição aguda e crônica em crianças de seis meses a cinco anos residentes da cidade de Beira, província de Sofala (Moçambique), chegando às taxas de 7,9% e 27,9%, respectivamente. Os dados foram apresentados pelo doutorando em saúde pública pelo Instituto Aggeu Magalhães (Fiocruz Pernambuco), Matias Joaquim Culpa na última sexta-feira (24), na edição dos Seminários Internacionais do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas em Saúde. O nutricionista apresentou os resultados preliminares da pesquisa que conta com a participação da Fiocruz Brasília, Fiocruz Pernambuco e da United States Agency for International Development (USAID) e busca identificar as percepções sobre pobreza infantil e a relação com a segurança alimentar e seus determinantes no perfil de consumo alimentar.

Para contextualizar os presentes, Matias iniciou a palestra abordando a independência do país em relação a Portugal, em 1975, e a longa guerra civil que foi desencadeada logo em seguida, resultando em milhares de mortos e desaparecidos. “Em termos de liberdade, somos um país jovem, começamos a nos reerguer em 1992”, explicou. O contexto histórico que resultou na pobreza vivida no país pode explicar esses números, já que diarreias, infecções respiratórias agudas não tratadas, saneamento básico precário, falta de escolaridade e o baixo consumo de proteínas influenciam diretamente na ocorrência da desnutrição.

 

Localizado no continente africano, Moçambique tem uma população de 33 milhões de pessoas e é dividido em 11 províncias. Atualmente, figura na nona posição da lista de países com o IDH baixo, sendo considerado um dos mais pobres do mundo. Doenças transmissíveis como malária, HIV e tuberculose, são frequentes e por todos esses aspectos, a expectativa de vida é de cerca de 61 anos.

A alta prevalência de desnutrição crônica e aguda existe desde 2003 e ao longo dos anos a mudança não foi significativa. “Saímos da faixa de desnutrição extremamente crítica e tivemos uma redução de quase 9%, o que é bastante positivo. Precisamos fazer estudos para provar quais são os fatores determinantes para redução, se são as políticas sociais  implementadas, as políticas de incentivo agrícola ou as melhorias de condições de acesso à água. Mas ainda temos províncias com prevalência extremamente crítica, como Nampula, com 46%. Alguns estudos dizem que a prevalência da desnutrição no Brasil tem cor, em Moçambique é por região: o norte é mais afetado que o sul do país”, contou.

Matias chamou atenção para os dados de obesidade infantil no país africano, que vem crescendo. Embora o maior problema  seja a desnutrição crônica, cerca de 5% das crianças moçambicanas menores de cinco anos são obesas, devido à exposição a alimentos não saudáveis. A província de maior prevalência é a de Gaza, localizada no sul do país, mas também há casos em províncias do norte, como em Nampula e Inhambane, as mesmas em que há altas prevalências de desnutrição crônica e aguda. “É preocupante e requer  olhar e  desenho de políticas e estratégias de enfrentamento para o que virá nos próximos dias”, afirmou.

Um dos grandes desafios enfrentados pelo pesquisador foi obter informações sobre a situação nutricional das crianças, já que o estudo foi realizado seis meses depois da passagem do maior ciclone dos últimos 50 anos. “Como colher informações para a melhoria do estado de saúde, desenho de políticas e estratégias e apoiar o governo no desenho da estratégia de intervenção nesse cenário?”, questionou. Em março de 2019, Moçambique foi o país mais afetado pela catástrofe natural, que causou centenas de mortes e impactou a saúde da população das províncias moçambicanas. Os fortes ventos e chuvas resultaram em casos de cólera e danos na segurança alimentar e nutricional.

“O estudo mostrou a importância da política pública e de  descrever um fenômeno  inédito no mundo, do ponto de vista nutricional. Existiam mais ações emergenciais do que pesquisas. Fazer pesquisa na África é o grande aprendizado que o Matias mostrou”, declarou a vice-diretora da Fiocruz Brasília e coordenadora do Programa de Alimentação, Nutrição e Cultura, Denise Oliveira. Para ela, este é um momento de incentivo de cooperação internacional com países de língua portuguesa em Moçambique.

As coletas de dados envolveram etapas como conversa com governo, líderes comunitários e profissionais de saúde das 16 áreas de saúde; recrutamento de nutricionistas e estudantes de nutrição; capacitação com manuais de padronização como antropometria e questionário socioeconômico e demográfico; além de entrevistas para testar as ferramentas que seriam utilizadas.

Matias destacou que a desnutrição vai além  do acesso e consumo do alimento, mas envolve outros fatores. Os indicadores levados em conta foram distância no acesso a fontes de água potável e vacinas, saneamento básico,  episódios de infecção respiratória ou diarreia não tratados e condições de abrigo.

A metodologia Recordatório de 24 horas (R24h) foi utilizada para coletar informações sobre os alimentos ingeridos nas seis refeições diárias, modo de preparação, local de ingestão e ingredientes. O nutricionista recorreu a guias alimentares e catálogos brasileiros, se espelhando na experiência do país, já que em Moçambique não existem documentos base. “Há  falta de informação e déficit de artigos produzidos para discutir o tema”, lamentou Matias ao destacar a necessidade de produção científica na área da segurança alimentar.

A cultura alimentar também foi um desafio encontrado. Denise explicou que foi utilizado um livro para comparar utensílios básicos como colher, prato e medidas caseiras brasileiras e moçambicanas. As proximidades foram validadas por um grupo focal.

“Toda a relação das seis refeições não se encaixa na realidade de hábitos alimentares africanos. Eles têm outra lógica para comer, além da comensalidade, todos comem juntos. Uma curiosidade é que, em um mesmo prato, comem até sete pessoas. A criança com a mãozinha pega a parte dela enquanto os adultos comem junto e no final todos saem alimentados. Tivemos que fazer uma série de desconstruções nos caminhos metodológicos, já que não se encaixavam em uma realidade de população tradicional”, contou Denise.

A atuação das unidades da Fiocruz em Brasília e Pernambuco já vem de longa data, com diferentes ações em Moçambique. Clique para conferir.

O evento foi transmitido ao vivo pelo Youtube da Fiocruz Brasília. Assista:
Seminário Internacional Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas em Saúde

 

Confira as fotos no Flickr da Fiocruz Brasília.


Fotos: Sergio Velho Junior