A existência de diversas estratégias de resiliência, organizadas desde antes da Covid-19, contribuiu para que agricultores familiares do semiárido brasileiro enfrentassem a pandemia. Essa foi uma das conclusões de uma pesquisa realizada pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), em parceria com a Articulação Semiárido Brasileiro (ASA). Os resultados do estudo, que investigou os impactos da pandemia de Covid-19 na agricultura familiar do semiárido brasileiro, foram apresentados durante um evento on-line na tarde desta quinta-feira (23/9).
A coleta de dados foi realizada em dezembro de 2020. Foram entrevistados mais de 1.800 beneficiários do Programa Uma Terra e Duas Águas (P1+2), que tem como objetivo ampliar o estoque de água das famílias para os plantios e as criações de animais, nos estados de Alagoas, Bahia, Ceará, Minas Gerais, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte e Sergipe. A amostra de entrevistados foi construída de modo a garantir representatividade estatística do público beneficiário do P1+2.
“Os resultados da pesquisa apontam para a importância das estratégias baseadas em autonomia de acesso a insumos, assim como das redes de cooperação já enraizadas”, afirmou Guilherme Brady, da FAO. O acesso e, sobretudo, a produção própria de sementes possibilitaram aos agricultores a manutenção de suas rendas, revelando-se um elemento central para a resiliência no contexto da pandemia de Covid-19.
Conforme os resultados do estudo, os beneficiários do Programa são, em sua maioria, mulheres entre 44 e 47 anos, que integram organizações da sociedade civil, possuem animais e produzem diferentes tipos de cereais, além de flores, oleaginosas e tubérculos, entre outros. Cerca de 60% relataram vendas estáveis, enquanto os demais tiveram vendas abaixo do esperado. Aqueles que reduziram a produção ou a parcela destinada ao mercado tiveram impactos importantes de redução de suas rendas. Entre julho e dezembro de 2020, 70% receberam auxílio de políticas de proteção social; 10% não receberam, mas conheciam as políticas; e 20% desconheciam.
Guilherme lembrou que estamos na Década das Nações Unidas para a Agricultura Familiar (2019-2028), e que dezenas de países estão se mobilizando para pensar em políticas e ações, especialmente neste momento, em que é preciso agir para mitigar as consequências da Covid-19 na população do campo. A agricultora Laura Lavor, de Várzea de Fora (CE), comentou sua experiência durante a pandemia. “Era preciso lutar contra algo novo, quando ninguém sabia o que fazer. Ficou complicado vender o excedente, e vieram as dificuldades. Mas a comunidade se organizou, fez o acompanhamento, houve troca de ideias, todo mundo aprendeu e ensinou”, disse.
Territórios saudáveis e sustentáveis e a convivência com o semiárido no contexto pandêmico e pós-pandêmico foram o tema das falas de Antônio Barbosa, coordenador pedagógico do P1+2 da ASA, e Jorge Machado, coordenador do Programa de Promoção da Saúde, Ambiente e Trabalho (PSAT) da Fiocruz Brasília. Ambas destacaram a importância da continuidade das estratégias de resiliência, de modo que, nos momentos de crise, as comunidades estejam preparadas para acionar seus mecanismos de proteção.
Antônio Barbosa lembrou que hoje 1,7 milhão de famílias agricultoras vivem no semiárido brasileiro. O lugar, que já foi cenário de muita morte e sofrimento, tem mudado sua história e traçado outro caminho, outra relação com a seca, na perspectiva da convivência e da construção de alternativas, envolvendo as famílias, as organizações da sociedade civil e o Estado. Essa trajetória de fortalecimento dos territórios contribuiu para a organização dos esforços de enfrentamento da Covid-19. “Trabalhamos na capacitação a distância, no acesso às políticas, no acompanhamento das famílias, promovendo debates sobre prevenção e cuidado. Buscamos aumentar as capacidades técnicas, fazer a aproximação dos trabalhadores da saúde – agentes comunitários, equipes da atenção básica e da vigilância – com as organizações de agricultores, promover encontros para a análise das práticas e realidades dos territórios, articulando um conjunto de ações de retorno seguro ao campo”, contou, destacando a aproximação com a Fiocruz.
Jorge Mesquita ressaltou a tecnologia social da vigilância popular em saúde, de base territorial e integrada ao Sistema Único de Saúde (SUS) e a outras políticas sociais, para a construção e mobilização de saberes “no manejo do caminho das águas, dos alimentos e das pessoas”, reforçando a importância da sustentabilidade dessa discussão. “Esse legado precisa permanecer mesmo depois da pandemia, porque estratégias de resiliência só podem ser ativadas e funcionar se houver essa organização prévia”, sublinhou. O coordenador do PSAT destacou três eixos da vigilância popular: a inovação, em que a informação epidemiológica pauta a ação; as estratégias, relacionadas às narrativas de participação e conexão em rede dos diferentes atores; e a execução, que ocorre por meio de diálogos múltiplos e populares sobre cuidado individual e coletivo. “O foco da prevenção deixa ser “o que fazer”, que era imposto quase de uma forma imperial, e passa a ser “como fazer”, coletivamente, com base na realidade dos territórios”, afirmou.
O debate foi conduzido pela jornalista Aline Czezacki, da Comunicação da FAO Brasil, e pelo poeta Agnaldo Rocha, membro da ASA – Bahia. A mesa de abertura do webinário foi formada por Cicero Felix, coordenador executivo da ASA, Rafael Zavala representante da FAO no Brasil, e Denise Oliveira, vice-diretora da Fiocruz Brasília.