Saúde é a capacidade de lutar contra tudo que nos oprime
“Dê Letras à sua Ação” – relato de Rosely Arantes
A pandemia do “novo” coronavírus impactou e mudou a forma como a vida passou a ser vista, sentida e vivida. A Covid-19 chegou deixando um rastro de perdas e sofrimentos, mas também de aprendizados. Descortinou os bastidores de como a saúde pública é definida pelo Ministério da Saúde, estados e municípios, e a responsabilidade de cada ente e de cada pessoa em relação ao cuidado com a vida (a sua e a das outras pessoas). Colocou em prática o conceito de que a relação com o ambiente e as condições socioeconômicas das pessoas precisam ser consideradas por todo profissional de saúde, e não apenas por aqueles da vigilância. Também trouxe para a roda a importância do tratamento da informação e de como orientar as pessoas sobre os cuidados e a prevenção do vírus. Em poucas palavras, evidenciou os direitos e as desigualdades.
Aprendemos que a solidariedade e o companheirismo são palavras que não saíram de moda. Ao contrário, dos quatro cantos do país ouvimos histórias de redes que se construíram para apoiar quem mais necessitava. Mulheres, homens e crianças que perceberam que só por meio do compromisso com a coletividade seria possível enfrentar (e sobreviver a) esse momento inédito na vida de brasileiras(os).
Materializando a ideia poetizada nos versos do terapeuta, educador e artista popular Antônio Edilson, ao afirmar que “o povo cuidando do povo é a nossa saída”, um grupo de voluntários de assentamentos da Reforma Agrária no Ceará, no Nordeste brasileiro, resolveu contribuir para os cuidados, as orientações e o acompanhamento de mais de 700 famílias e quase 2.500 pessoas nos municípios de Amontada, Canindé, Crateús, Miraíma, Santana do Acaraú e Santa Quitéria, comunidades que ficaram com escassa cobertura por parte do Sistema Único de Saúde (SUS) durante a pandemia.
Após 13 meses de formação híbrida, com momentos presenciais e virtuais, o grupo aprendeu sobre saúde popular, conhecimentos sobre o vírus, a vacina, as técnicas de manejo e as estratégias de prevenção, além do monitoramento das pessoas sintomáticas, via aplicativo de WhasApp. A formação contemplou oficinas e encontros locais com ações nos territórios e, no primeiro sábado de outubro (2/10), 35 assentadas(os) foram certificadas(os) como Agentes Populares de Saúde do Campo no Ceará (APSC-CE).
Como todo o processo de formação, o encerramento do Curso de Formação das(os) Agentes mesclou momentos virtuais e presenciais. O evento contou com a presença de parceiros e apoiadores, como a diretora da Escola de Governo Fiocruz – Brasília, Luciana Sepúlveda, que, por meio de um vídeo, destacou a importância do entrelaçamento de parceiros e estudantes na atuação no território, e de estratégias formativas como essa, que apontam o desenvolvimento da atuação da Escola em temas de saúde no contexto da pandemia, especialmente nos locais desassistidos. Ela pontuou a saúde como um campo de exercício de diversos direitos, como educação, saneamento e moradia, entre outros.
O coordenador da iniciativa, André Fenner, chamou a atenção de que essa seja uma das muitas parcerias entre a Fiocruz, a Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares (RNMMP) e o Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra (MST). “Esses encontros são importantes porque deles surgem ações que fortalecem o direito à saúde e o SUS, e materializam a aproximação entre a teoria e a prática”, afirmou.
A dirigente nacional do MST, Kelha Lima, falou sobre a importância dos Agentes Populares nos territórios vulnerabilizados, que, junto com o suporte dos parceiros, RNMMP e Fiocruz, conseguiram se proteger da doença. Para ela, o trabalho ainda não findou: “Precisamos enfrentar esse sistema do capital porque ele não quer que o pobre sobreviva. A nossa luta segue. Nossa resistência é de preparar o futuro, se reinventar e refazer, porque ele é desafiador”, disse.
Leandro Araújo da Costa, médico de família e comunidade, representante da RNMMP, ressaltou a necessidade de se reafirmar o compromisso com a luta e a classe trabalhadora, e que esse projeto dos Agentes Populares foi um caminho. “Defendemos a vida e a saúde púbica, o SUS, a autonomia e a soberania dos povos do campo. A crise sanitária, política, ética e social e esses momentos fazem a gente se aprofundar no compromisso com essa sociedade. Aqui é um espaço de reafirmação da vida e de um mundo melhor, precisamos manter esse ânimo revolucionário do Curso”, sentenciou.
Ente as assentadas, Fatiele Moura destacou os benefícios da atuação dos Agentes para as diversas famílias. “Em tempos de pandemia e isolamento social, fizemos muitas visitas domiciliares, orientando sobre a importância dos cuidados para as pessoas se conscientizarem. Nós conseguimos”, finalizou com um sorriso.
Quem trabalha com as populações do Campo, da Floresta e das Águas conhece de perto a dificuldade de não ter dados sistematizados sobre esses territórios. Essa invisibilidade, que compromete a elaboração e a execução das políticas públicas, foi pensada pelos estudantes, que, além do processo de formação-ação, desenvolveram o sistema Agentes do Campo, envolvendo uma série de soluções tecnológicas como um website, bancos de dados distribuídos e um aplicativo para dispositivo móvel (App). Por meio da coleta de dados, via aparelho de celular, as pessoas envolvidas conseguirão monitorar a situação da saúde, as condições socioeconômicas e de infraestrutura dessas famílias e das comunidades. “A partir dessas informações, começamos um novo ciclo desse processo”, afirma a médica e idealizadora do projeto, Ana Paula Dias de Sá, mestranda em Políticas Públicas em Saúde – Turma Ceará.
Durante a apresentação, o médico, idealizador do App e mestrando, Fernando Paixão, destacou a necessidade de se pensar sobre o frágil acesso à comunicação e à informação, tão necessárias e vitais em momentos de crise como o que estamos vivendo. Para ele, “a experiência que envolve os Agentes, além de promover a vigilância popular em saúde, contribuirá com o debate da democratização das tecnologias digitais para as populações do Campo, da Floresta e das Águas”, argumentou.
O povo cuidando do povo é a nossa saída
A qualificação das pessoas da comunidade foi um grande diferencial na formação. A maioria das(os) novas(os) Agentes Populares eram egressas(os) de outras intervenções no campo da saúde, igualmente promovidas pela Fiocruz e a RNMMP. Pessoas que já estavam sensibilizados e conscientes dos perigos que as famílias assentadas viveriam durante a pandemia se não recebessem as orientações corretas e em tempo hábil. Foi dessa inquietação que a comunidade provocou as instituições para uma nova atuação e, assim, surgiu o projeto Agente Popular em Saúde do Campo no Ceará.
A formação faz parte do dos trabalhos de intervenção dos estudantes do Mestrado Profissional em Políticas Públicas em Saúde Ana Paula Dias de Sá e Fernando Paixão, da Escola de Governo Fiocruz – Brasília em parceria com as unidades da Fiocruz de Pernambuco e do Ceará. Durante o evento de encerramento do Curso de Agentes Populares, ambos pontuaram a necessidade de se pensar outras formas de se fazer a vigilância em saúde, que reflitam a real condição da população e insiram quem vive à margem.
Além de seguirem no acompanhamento e monitoramento dos territórios, na próxima etapa, os Agentes Populares formados vão levantar e sistematizar dados para possibilitar intervenções mais próximas da realidade e a elaboração de políticas públicas com mais assertividade, possibilitando o fortalecimento do SUS e a Política de Saúde Integral das Populações do Campo, da Florestas e das Águas, voltada a esses territórios.
Texto e fotos: Rosely Arantes – é jornalista, comunicadora e educadora popular; militante em Direitos Humanos com foco na comunicação, envelhecimento humano e saúde pública; mestranda em Políticas Públicas em Saúde, com orientação da professora Mariana Olívia Santana dos Santos, da Fiocruz Pernambuco
“Dê Letras à sua Ação” busca divulgar artigos assinados por estudantes de pós-graduação da Fiocruz Brasília sobre iniciativas relacionadas a seus trabalhos acadêmicos ou de seus colegas. Os relatos são de responsabilidade de seus autores.
Leia mais