As mulheres representam mais da metade da força de trabalho em saúde no Brasil. E a aula inaugural do ano letivo da Escola de Governo Fiocruz – Brasília, nesta segunda-feira, 8 de março, Dia Internacional da Mulher, teve como tema Mulher, Ciência e Pandemia. A palestrante é trabalhadora da saúde e está, há meses, na linha de frente da pesquisa e assistência aos acometidos pela Covid-19 no Rio de Janeiro-RJ: a médica e pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz) Margareth Dalcolmo.
Sua fala bastante realista e sem rodeios, calcada em 40 anos de profissão, partiu de conceitos elementares em uma pandemia, publicados no início do século passado, na revista Science, em 30 de maio de 1919, e que já naquela época traziam a necessidade de não haver aglomeração de pessoas, e sempre tapar a boca ao tossir ou espirrar, por exemplo. Questões de bom senso em saúde pública e que, um século depois, ainda hoje são questionadas por autoridades nacionais. “Quando tudo começou, estávamos em meio a um tsunami, mas, quando o mar recuou, o Brasil não soube se posicionar,” disse, fazendo referência aos mandos e desmandos nos diferentes níveis da gestão, que não acompanharam os alertas da comunidade científica.
As mulheres na pandemia foram protagonistas na assistência e na pesquisa, e, curiosamente, há fatores genéticos nelas que trazem variáveis de proteção ao vírus a mais que nos homens, mas, segundo a pesquisadora, ainda não se observaram os motivos. Elas são as mães que não voltaram para casa, por meses, e ficaram sem ver suas famílias, para não contaminá-las, em prol das famílias de outras pessoas. São também as três brasileiras que decifraram o genoma do vírus, em um grupo coordenado pela cientista Ester Sabino. “São mulheres de todas as idades, que trabalharam, adoeceram, morreram… Temos um luto por elas que, conosco, vêm trabalhando no dia a dia em todos os órgãos do nosso Sistema Único de Saúde (SUS) e na rede privada também, e que têm algo a dizer. Tenho ouvido depoimentos que incluem os sentimentos, aquilo que não é objetivo, e o medo que as pessoas dizem para nós não é medo de trabalhar, mas medo do que pode lhes acontecer, da ruptura definitiva pelo contágio com uma doença cuja evolução nem sempre nós sabemos”.
Segundo Dalcolmo, as mulheres pobres foram as verdadeiras vítimas da pandemia, independentemente de terem ficado doentes. Uma mãe pobre doente não consegue ficar isolada dos seus filhos, e mora onde é impossível algum isolamento. “Sem dúvida, essas mulheres foram as mais exigidas em termos de excesso de trabalho e compromisso, e convivência com o medo, pois se expõem para manter a casa; então, vale conversar com elas, que lidavam diariamente com o medo de quem trabalha e tem que voltar para casa,” afirmou a palestrante, sugerindo possíveis estudos futuros na área de ciências sociais e pandemia.
Dor, descobertas e incertezas
No cotidiano da assistência aos infectados, fechar a porta da área Covid-19 é uma dor. “Se a pessoa ficar grave, não vai mais rever sua família. A reação dos pacientes foi algo fortíssimo e que alterou áreas inimagináveis, como os cartórios, que passaram a trabalhar sábado e domingo, para atender pessoas internadas. A doença exigiu da sociedade novas modalidades de comunicação e de serviços. Muitos pacientes naquela área Covid-19 dos hospitais nos pediam para alterar o seu testamento”, comentou.
A Covid-19 é uma virose aguda e prescinde de tratamento medicamentoso. Até o fim de fevereiro, mais de 100 mil artigos científicos haviam sido publicados sobre a doença em todo o mundo. Sabe-se que as novas variantes da Covid-19 são mais transmissíveis e causam doença mais longa e fase de complicações mais complexa. Não se sabe quantas pessoas foram infectadas no mundo, nem todos os sintomas ou fatores de risco, muito menos todas as sequelas, e se as vacinas produzirão imunidade duradoura, nem o porquê de algumas infecções evoluírem para formas graves, mesmo sem comorbidades.
Já se tem, porém, algum conhecimento sobre as sequelas, e é fato que medicamentos como cloroquina e ivermectina não servem para tratamento. Os pesquisadores também observaram ao longo da pandemia novas maneiras de otimizar a ventilação não invasiva, sem a necessidade de intubação precoce em todos os casos, bem como o melhor manejo clínico para reduzir mortalidade, por meio das boas práticas de terapia intensiva.
A priorização da Covid-19, porém, alerta para a interrupção do tratamento por doenças crônicas, aumento da síndrome de Bornout em profissionais da saúde, problemas de saúde mental e também as consequências econômicas deste novo “normal” – todos temas que poderão gerar pesquisas futuras.
Vacina para todos, não em 2021
“A solução é uma vacina. O tratamento medicamentoso foi usado de maneira perversa, no Brasil, como uns saquinhos de ilusão, promovendo uma banalidade do mal”, afirmou a pesquisadora, em alusão ao termo utilizado pela autora Hanna Arendt. A produção de vacinas esperada em todo o mundo é de três bilhões de doses em 2021. Logo, não haverá vacina para todos este ano, devido à própria capacidade de produção limitada.
Ela também alertou que eventuais efeitos colaterais da vacina devem ser reportados ao Programa Nacional de Imunização (PNI). No país, é difícil garantir a imunidade coletiva, devido às condições desiguais de nossa população. “É importante ter uma vacinação de muita gente, em pouco tempo, cobrindo 70% da população, pelo menos.” A boa notícia é que a vacina Oxford-Fiocruz-Astrazeneca parece ter eficácia também para as novas variantes da Covid-19 circulando no Brasil. De qualquer maneira, é necessário continuar com o uso de medidas protetivas não farmacológicas, como usar máscara, lavar as mãos, impedir aglomerações e manter o distanciamento social.
“Quem está envolvido na pandemia não pode se furtar a auxiliar as pessoas. Não sabemos de muitas coisas, e toda pergunta é genuína e importante”, afirmou ela, que tem trabalhado mais de 14 horas por dia, desdobrando-se entre a pesquisa e a assistência, e organizando a agenda para fazer também divulgação científica em diversas entrevistas diárias para veículos de comunicação. Ela é uma das principais porta-vozes da Fiocruz sobre a pandemia, é a favor da inclusão dos profissionais de educação como prioridade da vacinação, e de que haja o retorno das aulas nas escolas.
Mesa de abertura
A aula magna deu o tom do ano letivo na Escola de Governo Fiocruz (EGF) – Brasília, que faz dez anos em 2021 e é parte do SUS. Segundo a diretora da EFG – Brasília, Luciana Sepúlveda, a gestão da Escola vai promover e apoiar a resiliência comunitária e a coesão social, fortalecer e fazer valer a instituição científica e o SUS, e buscar boas lideranças políticas. “Seremos mais de 500 alunos aqui em 2021, ofertando experiências educativas com mediação tecnológica. Ano passado, aumentamos em 300% as ofertas de cursos à distância, então vamos fortalecer a discussão interdisciplinar sobre os fenômenos sociais, a governança nos espaços públicos e a capacidade dialógica dos gestores, e construir mais conhecimento sobre novas configurações entre ciência e sociedade”, disse.
A vice-presidente de Educação, Informação e Comunicação da Fiocruz, Cristiane Vieira Machado, afirmou que educação é uma das áreas mais transversais da Fiocruz, pois todas as unidades da Fundação têm atividades nesta área, e exaltou as diferentes ações realizadas no Dia das Meninas e Mulheres na Ciência, celebrado em 11 de fevereiro. A coordenadora geral de Educação da Fiocruz, Cristina Guilan, disse que a Fiocruz Brasília é uma unidade bastante potente e que ocupa um espaço no DF bonito, florido, interessante e “repleto de pessoas comprometidas”. A administradora do Plano Piloto do Distrito Federal, Ilka Teodoro, ressaltou a parceria com a Fiocruz Brasília e as ações da instituição no fomento à participação das mulheres na ciência. A representante discente Bruna Ferreira Costa também participou da mesa de abertura e convocou as mulheres a ocuparem os espaços na pesquisa, nos estudos e na gestão.
A diretora da Fiocruz Brasília, Fabiana Damásio, ressaltou que a Escola tem maioria de mulheres em todos os seus cursos e destacou a ação da Vice-Presidência de Educação, Informação e Comunicação (VPEIC/Fiocruz) para que as atividades educacionais permaneçam constantes e em formato remoto. “As mulheres mantiveram o compromisso com a população, durante a pandemia, administrando a casa, os filhos, o trabalho e outras coisas que fazem parte de nosso cotidiano. Precisamos buscar um direito de escolha, e que nenhum dos direitos conquistados por nossas ancestrais seja perdido. Que a gente crie uma rede de mulheres, de solidariedade, autonomia e independência entre as mulheres. Que escrevamos um livro coletivo que reforce a equidade de gênero e raça, e a diversidade, com solidariedade e independência, trilhando caminhos que desejamos fortalecer. Escrevamos muitos capítulos de uma história marcada pela equidade”, finalizou.
A poetisa Cristiane Sobral recitou três de suas obras, Águas, Ele não e Não vou mais lavar os pratos. Ao final do evento, foi apresentada a nova faixa de boas-vindas da EGF – Brasília, que ilustra essa matéria, com a frase ganhadora do concurso entre os docentes, criada pela professora e pesquisadora Aline Guio Cavaca: “No caminho, incertezas. Em sua chegada, alegria. Educação é esperança, muito além da pandemia”.
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