Fala aê, mestre: quem tem amor não precisa de convênio

Mariella de Oliveira-Costa 24 de agosto de 2022


Essa frase, escrita nas paredes de uma associação localizada na cidade Estrutural, em 2011, e  ocupada à época, por trabalhadores, após a demissão arbitrária de funcionários de lá, intitula a dissertação apresentada em abril deste ano, pela psicóloga Giulia Bedê Bomfim, no Mestrado Profissional em Políticas Públicas em Saúde. Sob a orientação da diretora da Fiocruz Brasília, Fabiana Damásio, a jovem pesquisou o papel de uma organização da sociedade civil para o desenvolvimento de cidades saudáveis, estudando o caso do Coletivo da Cidade, fundado por parte daqueles trabalhadores demitidos, e que atua na região, localizada a 15 quilômetros do centro da capital federal. 

 

De seu surgimento, após essa ocupação, até que pudesse pleitear um convênio com o governo do DF, o trabalho com  crianças e adolescentes  foi mantido por meio de outras entidades. Atualmente, atende esse público no contraturno da escola, e está vinculado ao Sistema de Proteção Básica da Secretaria de Assistência Social do DF.  

 

A pesquisa desenvolvida durante a pandemia na Escola de Governo Fiocruz – Brasília apresenta um histórico do Coletivo da Cidade, com suas dificuldades e estratégias de atuação. A análise de documentos e realização de entrevistas com oito participantes deste coletivo (metade deles foi da diretoria), foram utilizadas para garimpar os dados. Com uma técnica conhecida como “bola de neve”, em que um entrevistado indica outro, que indica outro, e assim sucessivamente, a estudante foi construindo uma história e montou um complicado quebra-cabeça que explica de maneira singular, a realidade desta organização, dos seus interlocutores e também seu projeto político-pedagógico.  

 

Após o mestrado, a psicóloga exerce a profissão clínica e manteve vínculo com a Fiocruz Brasília, por meio de seu trabalho no Núcleo de Pessoas em Situação de Vulnerabilidade e Saúde Mental na Atenção Básica (Nupop), à frente do projeto de Comunidade de Práticas em Atenção Primária a População de Rua no contexto da Covid-19 (Compaps). Nesta entrevista para o Fala Aê, Mestre, Giulia comenta que observou como o Coletivo da Cidade promove a saúde e está comprometido com transformações sociais. 

 

O que te motivou a estudar o coletivo da Cidade? 

Giulia Bomfim: Eu era vinculada ao Coletivo da Cidade quando entrei no mestrado, e foi a partir de uma relação construída entre o Coletivo e a Fiocruz que houve essa aproximação, na época do projeto Cidade Saudáveis e Sustentáveis na Estrutural (em 2018). Até então eu não sabia do programa de mestrado da Fiocruz. E aí, depois do meu ingresso, houve um choque durante as aulas, porque eu atuava na área de assistência social e não atuava em um órgão público. No entanto, tínhamos uma forte participação junto à rede da Estrutural, também com ações na área da saúde. Essas inquietações foram tomando forma ao longo da minha trajetória no mestrado, para olhar de forma mais sistemática sobre  essa relação entre uma organização da sociedade civil e o território em que atua, além da relação da organização os diferentes agentes (públicos e não públicos) que também desenvolviam formas mais sustentáveis de vida na Estrutural.  

 

Qual é o resultado mais interessante do seu estudo? 

Giulia Bomfim: Verifiquei uma atuação da organização para a promoção de saúde mental, pensada a partir de uma perspectiva ampla de saúde e vinculada a uma política de proteção social, de produção de identidades periféricas, da qualidade dos vínculos estabelecidos, para além da própria presença de profissionais de saúde, como o próprio psicólogo, na instituição.  

 

Por que este coletivo pode ser considerado como espaço de promoção da saúde? 

Giulia Bomfim: Porque sua atuação é comprometida com transformações sociais. O Coletivo possui uma postura diante das desigualdades sociais sem ignorar ou negligenciar dimensões concretas da vida das pessoas e do território. Trata-se de um território com um alto índice de crianças e adolescentes em comparação com outras Regiões Administrativas do DF, mas que ao mesmo tempo possui, proporcionalmente falando, poucos aparelhos públicos voltados para eles. O Coletivo levanta a bandeira do protagonismo e da participação cidadã de crianças e adolescentes, dentro e fora da Estrutural. Mesmo sabendo da existência de outras iniciativas, muitas de cunho religioso, com pouco espaço de discussão sobre gênero e racismo, por exemplo. A questão da identidade, da relação com o território e a participação social são aspectos essenciais para a promoção da saúde. O Coletivo também tem sido um importante interlocutor para o fortalecimento de outras iniciativas que chegam no território, tendo uma participação ativa com órgãos públicos, serviços e iniciativas que buscam trazer mais recursos e tecnologias sociais para a Estrutural. Isso permite uma ampliação das ações voltadas para o território, de forma organizada e integrada.  

 

Como seu trabalho auxilia o SUS? 

Giulia Bomfim: O trabalho apresenta como organizações civis podem ser potentes dentro de territórios complexos. Uma organização como o Coletivo pode contribuir para a promoção de uma cidade saudável na Estrutural, mas para isso é preciso que suas ações sejam conhecidas e integradas a outras iniciativas, como por exemplo a política de saúde. O meu mestrado considera a importância do território incorporando seus diferentes agentes presentes, que de alguma forma contribuem para o fortalecimento comunitário, a partir de uma relação muito próxima que é estabelecida entre ambos. O Coletivo lutou junto a outras lideranças para a entrada de políticas públicas na Estrutural e pode ser um colaborador importante para pensar estratégias e tecnologias de saúde que possam ser mais eficazes para a realidade do território. Essa realidade pode ser identificada em outros territórios pelo Brasil, com outras organizações.  

 

Qual a principal dificuldade para a realização de sua pesquisa?  

Giulia Bomfim: Houve uma dificuldade considerável durante o levantamento de dados. Por se tratar de uma metodologia com base em entrevistas durante a pandemia, foi preciso esperar o momento de flexibilização em torno do distanciamento social. Não havia uma restrição de entrevistas de forma virtual, mas as presenciais foram melhores, sem interrupções por causa de falhas de internet e com maior possibilidade de trocas. Algumas pessoas apresentaram resistência em participar do estudo, o que gerou um número menor de participantes.  

 

Fazer o mestrado foi importante para a sua vida profissional? O que mudou depois deste estudo, para você? 

Giulia Bomfim: Foi importantíssimo, tanto do ponto de vista do crescimento acadêmico, a partir da pesquisa e da escrita de um trabalho científico, quanto para uma maior aproximação com a Fiocruz. Hoje eu faço parte do Nupop, relação que estabeleci a partir de uma disciplina. Também pude considerar me inscrever (e me inscrevi) em outras áreas que antes não eram possíveis, como a docência. Essa possibilidade é algo muito positivo.  

 

Por que você quis fazer o mestrado da Fiocruz Brasília? 

Giulia Bomfim: Minha relação com a Fiocruz se deu a partir da Estrutural. Eu realizava um trabalho em uma organização que atua há 10 anos lá e houve aproximação da Fiocruz com o território também. A possibilidade de entrada no mestrado poderia fortalecer as ações e reflexões críticas em torno daquela realidade. Outro aspecto, mais óbvio, é a seriedade do trabalho realizado pela Fundação em Brasília e no Brasil. O fato de se inserir em uma instituição de inovação científica e tecnológica como a Fiocruz ainda é um privilégio. Tenho muito orgulho de ter conseguido um título de mestrado pela Fiocruz.   

 

Saiba mais  

Na época da construção de Brasília, o local que hoje é a Cidade Estrutural foi destinado para o lixo produzido pelas obras da nova capital. Aquele lixão esteve entre os maiores da América Latina e entre os 50 maiores depósitos de lixo do mundo, e,  na década de 1970, já havia famílias abrigadas ao redor do aterro, pois com os resíduos essas pessoas não só levantavam seus barracos para moradia, mas também faziam de lá um local para subsistência, como catadores. Em 2018, o Lixão encerrou as atividades e atualmente recebe apenas materiais da construção civil. Com 35 mil habitantes, a área possui equipamentos públicos como Centro de Referência de Assistência Social, Centro de Convivência, Centro de Referência Especial de Assistência Social, Conselho Tutelar, Unidade Básica de Saúde, Centro Olímpico, Centro de Juventude, Centro de Convivência do Idoso, corpo de bombeiros e escolas públicas, mas permanece como a região administrativa do DF com menor renda per capita (R$569,97) e maior índice de vulnerabilidade social.  

 

Giulia Bedê Bomfim é autora da dissertação “Quem tem amor não precisa de convênio? Um estudo de caso do Coletivo da Cidade como promotor da saúde na Estrutural”, defendida em 01 de abril de 2022, sob orientação da professora Fabiana Damásio. 

 

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