Adriano De Lavor (Radis)
Sete milhões de pessoas deixaram forçosamente a Venezuela em busca de melhoria de vida, desde 2016. Metade desta população migrante é formada por mulheres e meninas. Suas histórias mostram que a crise humanitária venezuelana, marcada pela fome e pela falta de acesso à saúde, atinge de modo diferente homens e mulheres, principalmente quando se leva em consideração as especificidades e as responsabilidades de cuidado femininas.
A saúde sexual e reprodutiva de mulheres e meninas é particularmente afetada em seu percurso rumo a outro país, seja reforçando os motivos de sua partida, seja nos riscos que se colocam durante o trajeto, ou ainda nos processos de adaptação para onde migram.
Até janeiro de 2023, o Brasil recebeu 414 mil refugiados e migrantes venezuelanos. Entre as mulheres, a maioria deixou o país em busca de alimentos e de saúde. Além das precárias condições de vida, elas não têm, na Venezuela, acesso a informações ou serviços que as orientem e deem assistência nas questões relacionadas à saúde sexual e reprodutiva, como exames preventivos, gravidez ou parto.
No trajeto até o Brasil, ficam expostas ao assédio e à violência, muitas vezes sexual. Muitas partem para a longa jornada já grávidas; outras trazem filhos pequenos, em uma caminhada árdua que combina fome, sede, cansaço e falta de condições de higiene. Ao chegarem ao país, não são compreendidas em suas necessidades e desconhecem como funcionam os serviços públicos de saúde — o que as afasta de políticas e práticas que garantem o seu atendimento no SUS.
Estas são algumas conclusões do projeto Reparando desigualdades de gênero na saúde das mulheres e adolescentes deslocadas em contextos de crise prolongada na América Central e do Sul [conhecido como ReGHID, sigla de Redressing gendered health inequalities of displaced women and girls in contexts of protracted crisis in Central and South America], realizado entre 2020 e 2023 em diferentes países. Acesse o sumário executivo.
O projeto, interdisciplinar e multicêntrico, reúne diferentes organizações e universidades, sob a coordenação geral da Universidade de Southampton, no Reino Unido. Nas Américas, o ReGHID investigou o trânsito de mulheres venezuelanas em direção à Colômbia e ao Brasil e analisou a situação de “retornadas” após tentativas de migração para os Estados Unidos, incluindo aquelas que vivem em El Salvador e Guatemala.
Coordenadora-geral do ReGHID, a pesquisadora argentina Pia Riggirozzi avalia que o projeto fornece importantes ferramentas para fortalecer o diálogo entre pesquisadores, gestores e profissionais que atuam nas áreas de migração e de saúde — bem como em campos relacionados ao tema, como direitos humanos e assistência social — assim como espera que os dados possam ser utilizados na estruturação de políticas públicas e na conformação de estruturas e práticas sociais que atendam as necessidades de mulheres migrantes.
Ela explica que, no Brasil, a pesquisa revela ainda os impactos da migração forçada nos sistemas locais de saúde e apresenta dados sobre os padrões de desigualdade de gênero que afetam meninas e mulheres migrantes. “Os reflexos da migração forçada não se apresentam apenas em situações de violência que ameaçam a vida das mulheres, mas também se refletem na fome e nas barreiras no acesso à saúde”, reflete Pia, que é co-diretora do Centro Interdisciplinar de Saúde Global e Política da Universidade de Southampton.
“As mulheres e meninas em situação de deslocamento enfrentam uma série de desafios e necessidades de saúde que são amplificados pela sua condição de vulnerabilidade”, diz a pesquisadora, em entrevista à Radis. Ela informa que, de acordo com estimativas da ONU, existem mais de 50 milhões de mulheres e meninas deslocadas em todo o mundo, o que representa mais da metade da população mundial de refugiados. “Esta realidade complexa traz consigo uma série de barreiras que impactam profundamente o acesso destas mulheres à saúde e ao bem-estar”.
No Brasil, o ReGHID se desdobrou em uma pesquisa, coordenada pela Fiocruz e pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA), que coletou dados nas duas capitais que mais concentram refugiados venezuelanos (Boa Vista e Manaus), além das cidades de Pacaraima (RR) — principal porta de entrada de venezuelanos no país — e São Luís (MA), que tem recebido muitos migrantes da etnia indígena Warao, também oriundos da Venezuela.
As pesquisadoras realizaram um inquérito com cerca de duas mil mulheres e adolescentes venezuelanas, com idade entre 15 e 49 anos, que migraram para o Brasil entre 2018 e 2021, e que vivem em Manaus e Boa Vista. Também trabalharam em um estudo qualitativo (com entrevistas, grupos focais e histórias de vida), que incluiu gestores, profissionais de saúde e agentes de instituições (governamentais ou não) envolvidos em atividades relacionadas aos contextos migratórios.
Em um segundo inquérito, de base hospitalar, entrevistaram cerca de 900 mulheres que haviam dado à luz entre junho e novembro de 2022, quando compararam a atenção ao parto e as características obstétricas, assim como desfechos clínicos, entre puérperas brasileiras e venezuelanas.
Os resultados permitem não somente identificar as necessidades das mulheres migrantes — e desafios no acesso delas a serviços de saúde sexual e reprodutiva no SUS — bem como avaliam o impacto da alta da demanda nos serviços públicos locais de saúde provocada pelo deslocamento forçado de venezuelanas. Por consequência, a pesquisa indica pistas sobre a efetividade da garantia do direito à saúde de refugiadas e migrantes no país. A partir dos depoimentos de Rossmari, Yesica, Solange, Eudismary, Ivonne e Geisy, colhidos no Encontro sobre direitos sexuais e reprodutivos de mulheres migrantes, que aconteceu em Manaus, em julho de 2024, Radis repercute alguns resultados do projeto e revela como a saúde de mulheres migrantes é afetada em suas jornadas em busca de melhores condições de vida no Brasil.