Buscando promover a soberania alimentar e nutricional de grupos sociais vulnerabilizados, a Fiocruz Brasília, em cooperação com o Instituto Federal de Brasília (IFB), realiza o projeto Economia ecológica, saúde, soberania, segurança alimentar e nutricional em territórios religiosos de matriz africana no Distrito Federal. Quatro terreiros do DF, identificados como lideranças, foram contemplados: Ilê Axé Ida Wura, em Sobradinho; Ilê Axé Xaxará de Prata e Ilê Odé Axé Opô Inlé, localizados em Planaltina (DF); e Ilê Eiyelé Ogè Agodò Asé Osumaré, na divisa com o estado de Goiás. A região concentra um número significativo de terreiros de candomblé.
No último sábado, 18 de março, três dos quatro terreiros receberam visitas de representantes da Fiocruz e do IFB. O projeto tem como objetivo contribuir com ações agroecológicas e de pesquisa para fortalecer o reconhecimento dos terreiros como territórios de promoção de saúde e segurança alimentar.
A comida tem grande importância para os povos e comunidades de matriz africana e está presente em todos os momentos. Os pesquisadores do projeto afirmam que estes territórios e as comunidades de terreiros promovem saúde por meio de suas práticas tradicionais e das suas formas de convivência, acolhimento e cuidado entre si e com os outros. “Observamos, reconhecemos e valorizamos os territórios e comunidades tradicionais de matriz africana como espaços de promoção de saúde e cidadania a partir do cuidado desenvolvido por eles. Queremos agora contribuir para formulação de políticas públicas voltadas para essa população, fortalecendo o respeito a essas práticas em articulação com o Sistema Único de Saúde (SUS)”, afirmou uma das coordenadoras do projeto e vice-diretora da Fiocruz Brasília, Denise Oliveira e Silva.
Milho, feijão, quiabo, inhame e abóbora foram os produtos agrícolas plantados nos locais nessa primeira etapa. Desde 2021, os terreiros são acompanhados por equipes de pesquisadores e consultores do IFB e da Fiocruz Brasília com visitas técnicas e de diagnóstico. As atividades realizadas incluem limpeza do terreno, coleta, análise e reparo de solo, adubação de base agroecológica, plantação, instalação de minhocário e de viveiro de mudas, além de oficinas de trato e manejo de plantas. Cada alimento plantado tem um significado para a cultura local, que festeja o dia de plantar e o dia de colher.
Para a líder religiosa Sueli Gama, a experiência foi enriquecedora e transformadora. ”Eu pude ver a concretização de várias lutas das comunidades. Os pesquisadores ouviram as nossas necessidades. Quando o projeto veio, teve uma proposta diferente, e deu oportunidade também a outros territórios. Esse é o ponto mais positivo”, afirmou.
Ela conta que as atividades valorizam o respeito ao tempo da natureza e espera que os terreiros sejam cada vez mais autossustentáveis. “Vamos ver os nossos grãos resistindo e existindo, nos dando a oportunidade de ter nosso banco de sementes. Somos povos com coragem de acordar e transformar a terra todos os dias na própria alimentação, sustentabilidade e força”, destacou.
O professor do curso de Tecnologia em Agroecologia do IFB e também coordenador do projeto, Paulo Cabral, enfatizou a união do conhecimento tradicional e do conhecimento científico e a escuta das comunidades para uma construção conjunta e não impositiva, buscando a autonomia dos territórios. Como próximo passo, será ofertada formação sobre produção animal, produção de energia solar, reuso de água e preservação de nascentes e rios. O projeto conta com recursos de emenda parlamentar.
Cultura
“O candomblé é uma cultura, não apenas uma religião”, afirmou o líder religioso Raimundo Nonato da Silva. Durante roda de conversa, lembrou-se do preconceito e da intolerância religiosa que estes territórios sofrem cotidianamente, resultando em exclusão política, econômica e social, com impactos negativos na segurança alimentar e nutricional dos povos dos terreiros.
Os terreiros têm um grande papel nas comunidades e esse protagonismo foi especialmente expressivo durante o momento mais crítico da pandemia de Covid-19, quando auxiliaram as pessoas mais afetadas com a distribuição de alimentos.
O cuidado com as formas de produzir, colher e comer e com a natureza está entre os princípios desses povos, o que foi destacado durante o evento. Para eles, as pessoas, o território, as plantas, os animais e a natureza são sagrados. Os alimentos colhidos são tanto para a alimentação do dia-a-dia quanto para a alimentação ritual no terreiro.
Para a diretora da Fiocruz Brasília, Fabiana Damásio, o tema evidencia o respeito à terra, aos ciclos produtivos, à natureza e à cultura, reiterando a importância do cultivo baseado nas premissas do bem viver. “Reconhecer a fertilidade dos solos dos terreiros é legitimar o seu lugar produtivo que alimenta sua comunidade. Significa também promover mecanismos de reparação histórica de combate ao racismo e às práticas de escravização do povo negro, que precisou se reinventar para sustentar bravamente a sua sobrevivência. Esperamos que esses locais possam ser reconhecidos como potenciais espaços de fomento às políticas públicas que preservem os patrimônios culturais, que incentivem as práticas de soberania alimentar e nutricional saudável e sustentável, e que contribuam para o cuidado com a população”, completou.
Árvore da vida
Como parte da atividade, na última segunda-feira (20), a Fiocruz Brasília recebeu instituições governamentais e lideranças religiosas para evento comemorativo do Dia Nacional das Tradições das Raízes de Matrizes Africanas e Nações do Candomblé, celebrado no dia 21 de março. Foram debatidas perspectivas para os avanços do projeto como estratégia de formulação de políticas públicas. Entre os participantes, estavam o assessor especial do Ministério da Saúde, Valcler Rangel; o diretor do Departamento de Prevenção e Promoção da Saúde da pasta, Andrey Lemos; o assessor do Gabinete da Presidência da Fiocruz, Valber Frutuoso; o secretário Nacional de Territórios e Sistemas Produtivos Quilombolas e Tradicionais do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, Edmilton Cerqueira; a secretária Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, Lilian Rahal; a pró-reitora de Ensino do Instituto Federal de Brasília (IFB), Veruska Machado; e da deputada federal, Érika Kokay, relatora do projeto da Lei 14.519/23, que instituiu o Dia Nacional das Tradições das Raízes de Matrizes Africanas e Nações do Candomblé.
Na ocasião, uma muda de embiruçu foi plantada no jardim da Fiocruz Brasília e agora passa a integrar o catálogo de árvores típicas do cerrado da instituição. A espécie se assemelha ao baobá, árvore sagrada da cultura africana, presente nos terreiros de candomblé, que simboliza a conexão entre o mundo imaterial e o material.
Fotos: Sergio Velho Junior/Fiocruz Brasília