Tecnologia transforma vidas no semiárido cearense

Fiocruz Brasília 19 de julho de 2021


A iniciativa dos Agentes Populares de Saúde do Campo no Ceará é revolucionária porque busca conhecer e interferir positivamente no território, empoderando a comunidade

 

Este artigo foi produzido por Rosely Arantes e Eva Sullivan*, e inaugura a série “Dê Letras à sua Ação” no site da Fiocruz Brasília

 

Imagine você estar no meio do semiárido, longe de uma Unidade Básica de Saúde (UBS), com pouco suporte da rede de internet, em plena pandemia da Covid-19, e, nesse caos, ter sua saúde acompanhada por um grupo de voluntários da comunidade que conta com o apoio de um aplicativo. Esta é a realidade de diversas famílias dos assentamentos da Reforma Agrária no Ceará, dentre eles o Vida Nova-Transval, no município de Canindé.

 

Percebendo a fragilidade dos territórios onde o Sistema Único de Saúde (SUS) ainda não chega, um grupo de voluntárias(os), formado por mulheres e homens dos assentamentos que conheciam a realidade das comunidades, mas quase nada sobre cuidados com a saúde, assumiu o desafio de traduzir o que era a pandemia e os cuidados necessários para o controle da doença.

 

As pessoas voluntárias foram em busca de orientação técnica junto à Rede de Médicas e Médicos Populares (RNMMP) e à Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) para entenderem o que é a doença, como ela se manifesta e os cuidados para evitar a contaminação pelo vírus. Para um território desassistido de saúde pública e com escassez de água, as alternativas recaem sobre a própria comunidade. Assim nasce a experiência das(os) Agentes Populares de Saúde do Campo/CE (APSC-CE).

 

Essa negligência do Estado com a saúde das populações campesinas é motivo de preocupação para o médico Fernando Paixão, um dos idealizadores do projeto. “Diante dessa realidade da pandemia, que já matou mais de 500 mil pessoas, a organização popular para cuidar da saúde da população e das comunidades se torna algo fundamental. E as(os) Agentes Populares têm esse papel de cuidado nos territórios”, enfatiza.

 

Francisca Maria Silva, uma das assentadas que fazem parte do grupo das(os) Agentes Populares, compreende bem essa realidade. Reconhecendo a importância e a necessidade imposta pela ausência dos Agentes Comunitários de Saúde, ela aceitou o convite e se sente feliz com a nova responsabilidade. “É uma forma de poder ajudar as pessoas”, afirma.

 

Para auxiliar nos cuidados com territórios como o Vida Nova-Transval, a comunidade contou com um grupo multidisciplinar formado por educadoras(es) populares, profissionais de saúde e tecnologia da informação. Conjuntamente desenvolveram uma metodologia de formação a distância para qualificar a atuação das(os) Agentes no acompanhamento das 85 famílias durante o distanciamento social. Orientar sobre a saúde a distância e por meio virtual foi algo novo para todas(os) as(os) envolvidas(os).

 

A médica Ana Paula Dias de Sá, também idealizadora do projeto, aponta outros desafios que marcam o processo formativo para além do acesso à tecnologia. “Temos a necessidade de implementação da Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo, das Florestas e das Águas (PNSIPCFA), existente desde 2011 e que pouco se materializou até esses dias. Outra necessidade observada é em relação ao modelo de vigilância em saúde, que ainda se organiza de maneira centralizada e hierarquizada, sem refletir dimensões específicas da população nem dos territórios, colocando determinados grupos populacionais na invisibilidade das políticas públicas”, alerta.

 

Desafios da comunicação

O campo brasileiro não é carente apenas da saúde pública. Outros direitos, como o acesso à comunicação, também estão no rol das ausências nessas comunidades. O uso da internet nesse território está restrito ao aparelho celular para mais de 85% da população e, na maioria das vezes, se dá por meio de pacotes de dados limitado. Ainda que a rede de telefonia e internet, assim como a posse de equipamentos, seja de baixo acesso, má qualidade ou até mesmo inexistente no território, essas foram as únicas formas possíveis de se comunicar durante o período de distanciamento social da pandemia. Ainda que de forma precária, as ferramentas de tecnologia foram fundamentais, e serviram de base para todo o processo formativo e a produção das informações.

 

Buscando equacionar esses desafios, a estratégia foi desenvolver outros caminhos para além da formação-ação a distância. No dia 11 de julho, as(os) Agentes do assentamento Vida Nova-Transval participaram da Oficina de Tecnologia e conheceram o sistema “Agentes do Campo”. A atividade contou com um momento teórico, em que as ferramentas tecnológicas que farão parte da rotina do grupo foram apresentadas e manuseadas pelas(os) Agentes, e outro prático, quando o grupo visitou famílias acompanhadas pelo projeto para coleta e armazenamento dos dados pelo instrumento. As atividades foram realizadas respeitando todas as orientações sanitárias.

 

O sistema envolve uma série de soluções tecnológicas, como um site, bancos de dados e um aplicativo para dispositivo móvel (App), além de material didático para auxiliar no trabalho das(os) Agentes. Por meio da coleta de dados, via aparelho de celular, as pessoas envolvidas conseguirão monitorar a situação da saúde, as condições socioeconômicas e de infraestrutura das famílias e comunidades. Esses dados expressarão os problemas e potencialidades de cada localidade, embasando, assim, as(os) Agentes e as comunidades na cobrança por políticas e serviços públicos.

 

“Será possível sistematizar um conjunto de dados que hoje estão espalhados e não catalogados, e, por fim, gerar informações para a tomada de decisão coletiva e possibilitar ações mais efetivas. Esperamos também que esse sistema sirva para democratizar as tecnologias da informação”, afirma o analista e desenvolvedor do sistema Ivandro Claudino.

 

Tanto a experiência das(os) Agentes como o App são frutos dos trabalhos de intervenção dos mestrandos em Políticas Públicas em Saúde Ana Paula Dias de Sá e Fernando Paixão, vinculados ao Programa de Pós-graduação da Escola de Governo Fiocruz – Brasília em parceria com a Fiocruz Pernambuco e a Fiocruz Ceará. Para o coordenador do Programa, André Fenner, esta é uma experiência que coloca em prática a teoria da vigilância popular em saúde junto às comunidades mais vulnerabilizadas. “A parceria realizada entre a Fiocruz, a Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares e o Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra (MST) traz uma característica única que possibilita uma prática sanitária de enfrentamento à Covid-19”, afirma Fenner.

 

*Sobre as autoras:

Rosely Arantes é jornalista, comunicadora e educadora popular; militante em Direitos Humanos com foco na comunicação, envelhecimento humano e saúde pública; mestranda em Políticas Públicas em Saúde, com orientação da professora Mariana Olívia Santana dos Santos, da Fiocruz Pernambuco.

Eva Sullivan é jornalista, radialista, designer gráfica e ilustradora; responsável por ilustração, design gráfico e edição do material pedagógico do Curso de APSC/CE.

 

“Dê Letras à sua Ação” busca divulgar artigos assinados por estudantes de pós-graduação da Fiocruz Brasília sobre iniciativas relacionadas a seus trabalhos acadêmicos ou de seus colegas.

 

A mestranda Ana Paula Dias de Sá, citada no artigo, é orientada pelo professor André Fenner e coorientada pelo professor Jorge Machado, ambos do Programa de Promoção da Saúde, Ambiente e Trabalho (PSAT) da Fiocruz Brasília. O mestrando Fernando Paixão, também citado no artigo, é orientado pelo professor Marcelo Ferreira e coorientado por Ivandro Claudino, ambos da Universidade Federal do Ceará (UFC).

 

Crédito das fotos: Eva Sullivan