Caminhões chegam e despejam lixo, que corre em uma longa esteira. Posicionados dos dois lados da esteira, homens e, principalmente, mulheres separam os itens que podem ser reciclados e os distribuem em grandes recipientes. É um trabalho que ajuda a cuidar do meio ambiente, mas feito por pessoas que têm pouco acesso aos serviços básicos e poucas oportunidades de cuidarem da própria saúde. Ausentar-se da esteira significa prejuízo, pois a remuneração depende diretamente da quantidade de material separado. Mas na última terça-feira, 28 de março, cerca de 40 catadoras conseguiram conciliar trabalho e cuidado com a saúde. E levou apenas alguns minutos para fazerem a prevenção do câncer de colo de útero. Santina fazia aniversário naquele dia e comemorou a data com a oportunidade de se prevenir: “Dificilmente eu conseguiria fazer em outro momento”, disse. “A gente não pode perder a chance de se cuidar!”, completou Cleidiane.
Integrantes da Central das Cooperativas de Trabalho de Catadores de Materiais Recicláveis do DF (Centcoop), sediada na Estrutural, são as primeiras de 1.000 mulheres que vão participar do piloto do Projeto Marco (Manejo do Risco de Câncer Cervical), pesquisa inédita da Fiocruz Brasília sobre novos protocolos para rastreio, triagem e tratamento do câncer de colo de útero com base em testes de HPV. O laboratório onde as amostras dessa e de muitas outras pesquisas serão analisadas foi inaugurado no dia seguinte, quarta-feira, 29 de março. “O Centro de Pesquisa Clínica e Molecular Marco vem fortalecer a infraestrutura de pesquisas e serviços para o SUS, com foco em políticas públicas para aperfeiçoar as estratégias de prevenção do câncer de colo de útero “, resumiu uma das pesquisadoras à frente da iniciativa, a bióloga molecular e computacional Tainá Raiol, da Fiocruz Brasília.
Coordenado pela Fiocruz Brasília e localizado no Hospital Universitário da Universidade de Brasília (HUB/UnB), o laboratório – um Centro avançado voltado para pesquisas na área de saúde da mulher – é fruto de um acordo entre o Ministério da Saúde e o National Cancer Institute (NCI), dos Estados Unidos, envolvendo uma extensa rede de parceiros, como a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh), o Instituto Nacional de Câncer (Inca) e diversas instâncias do SUS.
“Infelizmente, ainda temos muitas mulheres desassistidas desde a alta complexidade até a atenção básica em saúde, em uma luta constante para conseguir fazer consultas e exames, um processo que desestimula o cuidado com a saúde. É fundamental alcançar mais mulheres e ofertar um melhor atendimento, com um olhar mais humano. É isso que o Projeto propõe e nossas mulheres merecem”, disse a diretora de Ensino, Pesquisa e Inovação Tecnológica da Ebserh, Cristiane Carvalho. “São várias instituições unidas em pautas importantes para as políticas públicas de saúde no Brasil. O Marco é sobre tecnologias mais rápidas e baratas, mas também sobre formação de estudantes para qualificar o cuidado de mulheres em situação de vulnerabilidade”, afirmou a superintendente do HUB, Elza Ferreira Noronha, na cerimônia de inauguração, que também contou com a presença da reitora da UnB, Márcia Abrahão.
Durante as atividades na Centcoop, sob a orientação atenta e cuidadosa da enfermeira Carla Pintas, professora e pesquisadora da UnB, alunas de enfermagem voluntárias auxiliavam na abordagem e acompanhamento das catadoras. “A gente ouve falar do HPV na escola, no início da adolescência, na época de tomar a vacina, e depois não ouve falar mais. Acho importante dar mais visibilidade a esse tema. Fiquei sabendo do Projeto em grupos de WhatsApp da Universidade e me interessei em participar, principalmente, por poder contribuir para a prevenção em mulheres que estão à margem dos serviços de saúde”, contou a estudante Monique Gabrielle Barcelos, da UnB – campus Ceilândia. Mulheres de 30 a 49 anos, que não estivessem gestantes nem menstruadas e sem histórico de cirurgia no útero eram convidadas a participar da pesquisa. Após o piloto com as catadoras da Estrutural, o Projeto envolverá 10 mil mulheres das comunidades do Pôr do Sol e Sol Nascente (DF), e 10 mil de Manaus, onde o estudo é conduzido pela Fundação Centro de Controle de Oncologia do Amazonas (FCecon), sob a coordenação da pesquisadora Karla Torres.
A infecção pelo HPV – vírus transmitido, sobretudo, por via sexual – pode provocar lesões que são as principais responsáveis pelo desenvolvimento do câncer de colo de útero. A doença é um importante indicador de desigualdade, por tratar-se de um câncer que pode ser facilmente prevenido, mas que ainda causa muitas mortes entre mulheres, notadamente aquelas em situação de maior vulnerabilidade social. “Das pessoas que trabalham nos galpões da Central das Cooperativas, 71% são mulheres, a maioria em idade fértil, com três ou quatro filhos, mãe solo, e atua como catadora há mais de uma década”, informou a diretora social e de projetos da Centcoop, Keysianny Lima. Em 2017, antes do fechamento do lixão da Estrutural, foi feito um levantamento sobre a saúde das pessoas que trabalhavam no local. Foram verificados muitos casos de doenças transmitidas pela água contaminada e também infecções sexualmente transmissíveis, sobretudo a sífilis, “além de vários relatos de mulheres que tiveram câncer de colo de útero”, lembrou Vanessa Cruvinel, professora de Saúde Coletiva da UnB.
Atualmente, além da vacina de HPV – disponível para adolescentes na rotina do SUS -, a prevenção do câncer de colo de útero inclui a realização anual do exame Papanicolaou em mulheres de 25 a 64 anos. Nesse exame, o profissional de saúde coleta uma pequena amostra do colo do útero da mulher e esse material é enviado para análise laboratorial, para verificar se existem alterações nas células. A coleta pode ser um procedimento doloroso ou desconfortável, e o exame acaba não sendo realizado por um grande número de mulheres, por medo, vergonha ou, sobretudo, falta de acesso à informação e aos serviços de saúde. As que não realizam são justamente as que têm maior risco de desenvolver o câncer. Já as que conseguem realizar o exame e recebem o diagnóstico da doença, muitas vezes, não têm oportunidade de retornar ao serviço e, assim, não concluem o tratamento.
O Distrito Federal apresenta uma baixa cobertura do Papanicolaou, isto é, muitas mulheres deixam de realizar o exame, enquanto o Amazonas tem a maior incidência de câncer de colo de útero do Brasil (e uma das maiores do mundo), ou seja, é elevado o número de novos casos da doença registrados anualmente no estado. Esses dados demonstram a importância de Brasília e Manaus sediarem o Projeto Marco, cujos resultados poderão contribuir para o fortalecimento das políticas públicas nacionais de saúde da mulher.
A proposta do Projeto Marco é fazer o rastreio do câncer de colo de útero a partir de testes de HPV. Nessa alternativa, as próprias mulheres podem coletar amostras para análise, sem a necessidade de um consultório ou da intervenção de um profissional de saúde. E foi essa autocoleta – simples, rápida e indolor – que as catadoras realizaram. Após serem informadas sobre a pesquisa, se concordavam em participar, assinavam o termo de consentimento e recebiam um tubo plástico fino e comprido, dentro do qual havia uma espécie de cotonete. Na autocoleta, com as mãos higienizadas, a mulher deve introduzir esse cotonete na vagina, girá-lo algumas vezes e guardá-lo novamente no tubo, que tem um código de identificação. Esse procedimento pode ser feito em casa ou em qualquer ambiente reservado – as catadoras utilizaram os banheiros dos vestiários da Centcoop. Em poucos minutos, a trabalhadora já podia retornar ao serviço. Foi o caso de Elisângela, que teve uma irmã vítima do câncer de colo de útero. “Eu lembro até hoje quando ela me deu a notícia de que estava doente. Ela descobriu tarde”, lamentou a catadora, cuja participação no Projeto Marco pode contribuir para que casos como o da irmã não voltem a se repetir com outras mulheres.
Os tubos com as amostras autocoletadas, devidamente acondicionados em um cooler, foram levados ao laboratório para análise. No Centro de Pesquisa Clínica e Molecular Marco, são feitos testes que permitem identificar a presença do HPV nas amostras e quais os tipos presentes, pois nem todos os vírus estão associados ao câncer. Após essa fase de rastreio, somente as mulheres em cujas amostras forem detectados os tipos mais agressivos de HPV precisarão realizar a etapa de triagem, que consiste em outros exames. Como somente avançam para as fases finais as mulheres que estão em risco, o protocolo se apresenta como uma alternativa mais eficiente também do ponto de vista econômico, outro aspecto que faz parte do estudo. “As estatísticas apontam que de 10 a 15% das mulheres serão positivas para o HPV, mas, dentre essas, poucas terão lesão, e a etapa de triagem serve para identificar quais precisam de tratamento”, explicou a pesquisadora Ana Cecilia Rodríguez, do NCI. A expectativa é que, depois do estudo comparativo dos métodos, seja possível realizar todas as etapas em um único dia. “Rastrear e tratar de forma rápida, factível mesmo em lugares com pouca infraestrutura, sem idas e vindas, tudo de uma vez só, garantindo maior adesão”, destacou a consultora sênior.
No estudo, na fase de triagem, serão utilizados três métodos complementares: a citologia convencional, em que uma amostra do colo do útero é coletada por profissional de saúde, colocada sobre uma lâmina e visualizada ao microscópio, para verificar se há alterações nas células (Papanicolaou); a citologia de base líquida, em que a coleta é similar à convencional, mas, em vez de lâmina e microscópio, o material é colocado em tubo com líquido e analisado com uso de outros equipamentos; e a coleta de imagem. Neste terceiro método, utiliza-se um pequeno instrumento portátil – e de baixo custo – que tira uma foto digital do colo do útero da mulher. Esta foto é enviada para um grande banco de imagens internacional para desenvolver um algoritmo que reconhece imagens de lesões de câncer de colo de útero. A ideia é ‘ensinar’ uma inteligência artificial (IA) a diferenciar imagens com e sem lesões. Dessa forma, no futuro, bastaria tirar uma foto e a IA faria o diagnóstico.
Ainda no estudo, as mulheres que, na fase de triagem, forem identificadas com alterações no colo do útero serão encaminhadas para exames mais detalhados (como a colposcopia) e o tratamento mais adequado, conforme as rotinas já estabelecidas no SUS. Elas serão acolhidas no HUB, no Hospital Materno Infantil de Brasília (HMIB) ou no Hospital Regional de Ceilândia (HRC). No futuro, porém, se confirmadas as expectativas do Projeto Marco, o mesmo aparelho portátil usado para fotografar e, em instantes, fazer o diagnóstico poderá, também, ser aplicado no tratamento. Isso porque ele, além da câmera, pode ser equipado com uma espécie de haste que, posicionada sobre o tecido doente, emite calor e remove as lesões, com baixo risco de efeitos colaterais – o que aumenta seu potencial de uso em locais com poucos recursos profissionais e de infraestrutura de saúde. No entanto, por ora, o aparelho é importado e não está disponível para comercialização, sendo usado somente no âmbito de pesquisas.
Grupos de pesquisa do mundo todo integram esforços para investigar e aperfeiçoar as estratégias de prevenção do câncer de colo de útero. “O nosso estudo é um dos mais completos porque faz todos os comparativos, além de avaliar o custo-efetividade”, comentou a farmacêutica e citologista clínica Ana Ribeiro, outra pesquisadora da Fiocruz Brasília à frente do Projeto Marco. O trabalho também tem como diferencial a constituição de um biobanco, onde ficam armazenadas amostras biológicas humanas contendo HPV com diferentes características moleculares, para fins de pesquisa. “Esse biobanco será importante para o propósito final do trabalho, que é a eliminação do câncer de colo de útero”, adiantou Tainá. A meta da Organização Mundial da Saúde (OMS) é eliminar o câncer de colo de útero até o ano de 2.100. “O Marco é um Projeto de extrema complexidade e importância, com a reunião de muitos esforços em torno do cuidado com a saúde da mulher de forma integral. Um Projeto feito para e com mulheres, que integra pesquisa, ensino e serviço, e coloca a saúde da mulher como prioridade. É muito significativo para todos nós finalizar este mês de março com a inauguração do Marco”, sublinhou a diretora da Fiocruz Brasília, Fabiana Damásio.
Também participaram do lançamento a representante do Ministério das Mulheres, Carla Ramos, o representante da Secretaria de Saúde do Distrito Federal, Farid Sánchez, e a chefe substituta da Divisão de Detecção Precoce do Inca, Flavia Correa.