Plano de ação da Fiocruz Brasília em parceria com a Secretaria de Desenvolvimento Social do DF acolhe e realiza atendimento a pessoas em situação de rua

Nathállia Gameiro

No Distrito Federal, mais de mil pessoas vivem nas ruas, segundo dados da Secretaria de Desenvolvimento Social. Seus lares se tornam os diferentes espaços públicos das áreas centrais de Brasília, como a Rodoviária do Plano Piloto e as proximidades do Setor Comercial Sul, e das regiões administrativas, locais com maior movimentação que podem garantir o alimento e sustento.

No dia 19 de agosto, foi comemorado o Dia Nacional de Luta da População em Situação de Rua. A data foi criada em memória ao episódio conhecido como Massacre da Sé, em 2004, em que sete pessoas que dormiam na Praça da Sé, em São Paulo, foram assassinadas e oito ficaram gravemente feridas. O dia virou marco para essa população e busca sensibilizar a todos quanto à luta por seus direitos e conquistas.

Além das ameaças do dia a dia às pessoas vulneráveis, este ano a preocupação aumentou com a pandemia da Covid-19. As recomendações das autoridades de saúde para conter o avanço do novo coronavírus são claras: distanciamento social, higienização constante das mãos com água e sabão ou álcool 70%. Mas como garantir essas medidas para a população que enfrenta uma realidade ainda mais complicada e não tem acesso aos serviços básicos?

Essas pessoas são invisíveis para muitos, mas não para instituições como a Fiocruz Brasília. Em abril deste ano, depois do início da pandemia do novo coronavírus no Brasil, a unidade da Fundação em Brasília implementou o Plano de Ação Interinstitucional para a População em Situação de Rua, em parceria com a Secretaria de Saúde do DF (SESDF), Secretaria de Desenvolvimento Social do DF (Sedes) e instituições da sociedade civil.

Algumas pessoas que faziam das ruas suas casas, estão alocadas em unidades de acolhimento provisório da Sedes para que fiquem protegidas e não sejam expostas à Covid-19. No local, elas têm acesso à alimentação, água potável, dormitório, banheiro, chuveiro, espaço para lavagem de roupa e área de convivência e lazer. Cerca de 30 profissionais e residentes da Fiocruz Brasília, em Medicina de Família e Comunidade e Multiprofissional em Atenção Primária e de Gestão em Saúde estão presentes em dez alojamentos elencados como prioritários pela assistência social. Dois deles são provisórios, localizados no Autódromo Internacional Nelson Piquet e no Estádio Maria de Lourdes Abadia (Abadião) em Ceilândia.

Ao todo, 1050 pessoas são beneficiadas. O atendimento é tanto para as pessoas abrigadas em unidades de acolhimento como também para as que desejam permanecer nas ruas. Nos abrigos e fora deles, os profissionais da Fiocruz realizam testagem, orientações em saúde sobre isolamento e reconhecimento de sinais e sintomas, consultas de enfermagem e psicologia,atendimentos de serviço social, fisioterapia e nutrição e promoveram roda de conversa sobre o novo coronavírus e ações educativas. Além disso, discutem junto aos profissionais das unidades de acolhimento as melhores estratégias de adesão ao tratamento e melhoria da qualidade de vida dos abrigados.

Em uma ação da Secretaria de Saúde em parceria com a Fiocruz Brasília e a Escola Superior de Ciências da Saúde (Escs), os acolhidos receberam doses de vacina contra o H1N1, hepatite B, febre amarela, tétano e tríplice viral, que protege do sarampo, caxumba e rubéola.

O acolhimento e trabalho nas ruas é feito em parceria com a equipe de consultório na rua, com três equipes, do Plano Piloto, Ceilândia e Taguatinga. A estratégia Consultório na Rua foi instituída em 2011, para ampliar o acesso da população em situação de rua a serviços de saúde. As equipes atuam de forma itinerante e são compostas por profissionais de diferentes áreas: enfermeiro, psicólogo, assistente social, terapeuta ocupacional, agente social, técnico ou auxiliar de enfermagem, entre outros.

O psicólogo sanitarista e pesquisador do Núcleo de Pesquisa de População em Situação de Rua da Fiocruz Brasília, Marcelo Pedra, explica que os residentes são acompanhados, sobretudo no primeiro momento, nas chegadas aos abrigos e no início do trabalho com as equipes de consultório na rua. As equipes têm reuniões semanais de supervisão, discussão de casos e de outras formas de atuação. “Estamos monitorando e qualificando todo esse processo. A expectativa é que a Fiocruz seja retaguarda para essa população e para as equipes de consultório na rua e os abrigos de população de rua. Além das nossas idas semanais às unidades de alojamento, eles nos demandam para que possamos atender as necessidades que surgem”, ressaltou.

Antes do começo do trabalho nos espaços de acolhimento, a Fiocruz Brasília realizou capacitação dos residentes para o trabalho com populações vulneráveis com foco maior na população em situação de rua. As aulas abordavam temas como mediação de conflitos, manejo para questões de álcool e outras drogas, saúde mental, tratamento de ferimentos e os agravos mais prevalentes junto à população em situação de rua, explicações sobre a atuação em abrigo e na rua, melhores formas de adesão ao tratamento, estratégias de escuta, entre outros. A formação foi composta por seis aulas com a carga horária total de 30h. Dos 78 profissionais, 46 já estavam distribuídos em Unidades Básicas de Saúde e atualmente 30 residentes estão atuando em três turnos semanais. Em geral, são dois turnos nos abrigos e um turno junto à equipe de consultório na rua.

O convite para a construção do plano foi feito pela SESDF, logo após o Conexão Fiocruz Brasília sobre população em situação de vulnerabilidade e de rua, realizado no dia 2 de abril.  

No plano, a Fiocruz Brasília mediou o espaço e entrou com o conhecimento técnico do Núcleo de Pesquisa População em Situação de Rua, que supervisiona várias equipes em todo o país. O objetivo da equipe é que a parceria seja para além do período da pandemia e que os espaços para lidar com essa população possam ser incorporados no processo de formação do SUS. Espera-se que a relação com os abrigos e os consultórios na rua, a relação com as instituições da sociedade civil que atendem as populações em situação de rua e a agenda dessa população seja incorporada nas unidades básicas de saúde e que os residentes da Fiocruz Brasília possam ser incluídos. O plano demonstrou que ter uma atenção maior sobre a vulnerabilidade e o que isso condiciona, é fundamental para a atuação na atenção primária à saúde e para o papel dos residentes nesse trabalho.

Baixa contaminação

Um dado que tem surpreendido as equipes e será tema de estudo do Núcleo de Pesquisa da Fiocruz Brasília é a baixa contaminação da população em situação de rua em todo o Brasil. O pesquisador explica que o fato acaba engrossando o discurso da própria população de que eles são resistentes e estão acostumados com tudo, inclusive com comida do lixo, e que por isso não serão acometidos pela Covid-19. “Dada a vulnerabilidade, é surpreendente que eles se contaminem tão pouco, mesmo sendo sistematicamente testados, não só aqui, no Brasil inteiro”, afirmou.

Um fator que auxiliou o abrigamento foi a adaptação das unidades de acolhimento, diminuindo exigências anteriores, como não fumar no local e não poder chegar com hálito de bebida alcoólica, resultando em um local mais atraente à população vulnerável. O sanitarista conta que a evasão nos dois maiores abrigos do DF, os provisórios, localizados em Ceilândia e no Plano Piloto, é muito baixa. Ele atribuiu à mudança na forma de acolher as pessoas e à flexibilização do trabalho das equipes, se aproximando mais à realidade dos abrigados. “As pessoas gostam de ser tratadas com respeito e reconhecimento, sem tentar corrigir algum comportamento e sem promover ordenamento de vida a partir dos nossos preceitos. É o que a gente tem aprendido nessa relação. Eles merecem ser escutados, acolhidos do lugar em que estão, sem interferência na vida deles. É um acolhimento das pessoas da maneira como elas chegam”, destacou.

*Fotos: Núcleo de Pesquisa População em Situação de Rua da Fiocruz Brasília